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Eu também preferia outros cenários por horizonte!...

Posted: 6 de fev. de 2010 | Publicada por AMC | Etiquetas: ,

Escreve o Miguel Sousa Tavares:

Peço desculpa aos leitores se não falo de coisas pátrias, como a entronização do Benfica como campeão do futebol de túnel, a descoberta de nova fonte legítima de informação que é a escuta de conversas de restaurante, ou a crise da lei de finanças regionais e o jogo de póquer no limite do bluff entre um governo subitamente preocupado com o despesismo público e uma oposição preocupada com as conquistas eleitorais na República Autónoma da Madeira. Peço desculpa, não estou lá, mas aqui, nesta fantástica cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro - que o português Eustácio de Sá fundou em 1565, depois de conquistada a Baía de Guanabara aos franceses instalados em Niterói e que ali pretendiam fundar a "França Antártica", e para a qual enviámos o rei, a corte e o Estado, há 202 anos. 

E depois escreve sobre a cidade do Rio de Janeiro


Mais um ano perdido

Domingo, de manhã cedo, uma bateria de helicópteros militares, com os PM de metralhadoras em punho sentados nas portas abertas, atravessa em voo rasante a praia de Ipanema e dirige-se em direcção à favela de Dona Marta, em Botafogo. Em breve os moradores e vizinhos da favela ficam em estado de pânico, concluindo que reabriu a guerra entre traficantes e polícias no morro - dado oficialmente como pacificado e desarmado há vários meses. Afinal, era falso alarme: apenas uma cena para as filmagens do "Tropa de Élite nº 2", a continuação da saga que tanto marcou o cinema brasileiro recente. Pouco depois, ainda a manhã decorria no areal cheio, emerge da neblina sobre o mar uma série de veleiros fazendo proa ao Leblon. "Olha só, chegaram os portugueses, outra vez!", exclama alguém, e toda a praia se ergue para ver o espectáculo (assim como, todas as tardes, ao pôr-do-sol, se ergue para bater palmas ao sol!). Mais um falso alarme: afinal, era a frota de todos os navios-escola sul-americanos, comandados pelo "Cisne Branco" da Marinha brasileira, seguido pelo "Sebastian Delcano", da armada argentina, que se alinhavam para um desfile único, passando em fila indiana ao longo de Ipanema, rasando a pedra do Arpoador e seguindo ao largo da praia de Copacabana, até ir fundear na Baía de Guanabara. Quem não viu, provavelmente não volta a poder ver. Assim como quem não viu, nesse final de tarde, o sensacional Fla-Flu, num Maracanã com 50.000 pessoas, terminado em 5-3, provavelmente não volta a ver outro igual nas próximas décadas.
Peço desculpa aos leitores se não falo de coisas pátrias, como a entronização do Benfica como campeão do futebol de túnel, a descoberta de nova fonte legítima de informação que é a escuta de conversas de restaurante, ou a crise da lei de finanças regionais e o jogo de póquer no limite do bluff entre um governo subitamente preocupado com o despesismo público e uma oposição preocupada com as conquistas eleitorais na República Autónoma da Madeira. Peço desculpa, mas não estou lá, mas aqui, nesta fantástica cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro - que o português Eustácio de Sá fundou em 1565, depois de conquistada a Baía de Guanabara aos franceses instalados em Niterói e que ali pretendiam fundar a "França Antártica", e para a qual enviámos o rei, a corte e o Estado, há 202 anos.
Dentro de seis anos e meio o Rio vai ser sede dos primeiros Jogos Olímpicos realizados no continente sul-americano. É um motivo de imenso orgulho nacional para o mais emergente de todos os países emergentes (de facto, uma nova potência mundial e não apenas regional), e uma oportunidade de ouro para a cidade outrora capital do país. Aparentemente, nada mudou ainda, desde que, em Setembro passado em Copenhaga, o COI tomou a decisão de entregar ao Rio, ao Brasil e a Lula os jogos Olímpicos de 2016. Na superfície ou nas conversas, nada mudou ainda, mas todos sabem que o tempo agora vai passar num instante e que esta era talvez a oportunidade pela qual o Rio esperava para tomar uma decisão radical: ou continuar a definhar à vista de todos ou renovar-se radicalmente, como fez na década de cinquenta do século passado, sob o governo de Carlos Lacerda. O actual governador, Sérgio Cabral, é quem está no comando das operações e, para começar, anda a arregimentar conselheiros de peso pelo mundo fora: Pasqual Maragall, ex-presidente da Câmara de Barcelona, quando a cidade se transformou e renasceu para os JO de 92; Rudolph Giuliani, ex-mayor de Nova Iorque, que derrotou com estrondo o crime na cidade, também na década de noventa; e, contestado por vários intelectuais, o ex-PM inglês Tony Blair, cuja total ineficácia e até desinteresse na gestão do conflito israelo-palestiniano de que foi entronizado conselheiro especial pelas Nações Unidas, não abona muito a favor da sua competência em questões exóticas.
Por ora, e com um Verão de temperaturas sempre acima dos 40 graus, sol abrasador e águas transparentes e quentes nas praias, nada parece abalar os sonhos e os pesadelos desta cidade exagerada por Deus. Tanto mais que o Carnaval - esse insuportável acontecimento turístico-popular de que tantos cariocas fogem para o mais longe que podem - já está a tomar conta de tudo, incluindo das ruas da zona sul, invadidas por 'blocos' carnavalescos cuja passagem deixa um rasto de invasões bárbaras e sujidade indescritível. Porém, algumas coisas vão mudando, devagarinho. Dona Marta está, de facto, pacificada e a experiência da introdução das UPP (Unidades de Polícia Pacificadora do Rio) tem provado a sua utilidade, ao ponto de a capitã da PM, comandante da 1ª Unidade da UPP local, ser a grande atracção do desfile de uma das escolas programadas para o Sambódromo. A experiência do muro construído à roda de Dona Marta (oficialmente para conter a expansão da favela à custa da destruição da mata atlântica) e que tanta controvérsia gerou na altura, está agora a ser aplicada também na mais emblemática das favelas, a Rocinha, habitada por 101 mil almas a quem o Governo promete em troca vista desafogada para a mata, algumas infra-estruturas de saneamento e Internet sem fios em toda a favela.
Se a Rocinha for também 'pacificada', isso representará inequivocamente um marco na luta de décadas entre a lei e o crime organizado, a cidade maravilhosa e a degradação dos seus morros. Mas será apenas um primeiro e tímido passo. Há quem preconize que as favelas deveriam, pura e simplesmente, ser arrasadas, defendendo a cidade da construção selvagem que para sempre a desvirtua - como aconteceu com a vista de Ipanema, desfigurada pela explosão da favela do Vidigal, no morro dos Dois Irmãos. Mas isso seria comprar uma guerra civil, cujo desfecho ninguém consegue antever. A questão está em saber se a cidade e o país terão a determinação e os meios para lançar um gigantesco processo de edificação de habitação social, que permita ir destruindo paulatinamente as barracas das favelas até repor a paisagem perdida. Ou se a oportunidade dos Jogos Olímpicos se ficará por algumas medidas de cosmética e a construção de uma aldeia olímpica nos terrenos do autódromo de Jacarépaguá, na zona adjacente da Barra.
O Brasil tem as condições e o Presidente certo para iniciar o processo. Antes da crise (na qual entrou tarde e já saiu), foi dos países que mais beneficiaram com o crescimento do comércio mundial, a um ritmo de 10% ao ano, desde 2003: as exportações saltaram de 60 triliões de dólares/ano para 200 triliões e o país passou a viver numa inédita situação de superávit das contas públicas. Lula aproveitou a onda para tirar milhões de brasileiros da miséria, com a criação da Bolsa Família e os aumentos generosos do salário mínimo - ao mesmo tempo que controlava a inflação e distribuía dinheiro a rodos pelas empresas públicas. Há três dias, no Fórum de Davos, ele foi eleito "estadista global" e não se conteve, no tom um pouco arrogante que vem usando de há uns tempos para cá, de agradecer dizendo que "o Brasil já mudou, agora é o mundo que tem de mudar". Presunção à parte, daqui até Novembro, quando cederá a vez ao seu sucessor (Dilma Roussef ou José Serra), Lula tem a oportunidade e as condições financeiras para resolver dois problemas em simultâneo: a regeneração da cidade e a questão social explosiva que a rodeia. Ou o Rio morrerá lentamente da mais estúpida das mortes: a morte natural.
De resto, e para quem vem cá regularmente há mais de trinta anos, só se notam duas novidades: como efeito da valorização do real, o Brasil está cada vez mais caro (bem mais do que Portugal), e os bem-pensantes foram atingidos por uma esquizofrenia do politicamente correcto, herdada dos tão mal-amados americanos. Do nada, passou-se para uma 'lei seca' que não tolera mais do que 0,1% de álcool ao volante, é proibido fumar em todos os lugares, excepto na rua ou nas esplanadas descobertas (e são todas cobertas por causa do sol e da chuva tropicais), e adeus ostras, peixe frito e camarões à venda na praia (até quiseram proibir os cocos, mas lá recuaram perante os protestos...). Mas nada impede, em contrapartida, que os clientes das esplanadas sejam continuamente gaseados pelos escapes de 'ônibus' sem inspecção técnica ou que o maior crime ambiental jamais cometido contra a cidade (um imenso derrame de petróleo na baía de Guanabara) tenha passado impune no Supremo Tribunal. Para já não falar da moda dos bandidos de moto que aproveitam para fazer 'arrastões' de armas em punho, quando o trânsito está engarrafado.
Mas, trinta anos depois, por mais andanças vividas, continuo a sentir o mesmo que da primeira vez: não há cidade no mundo comparável ao Rio de Janeiro. Nenhuma.

por Miguel Sousa Tavares

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