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'O retrato das fomes de Marina da Silva'

Posted: 6 de fev. de 2010 | Publicada por AMC | Etiquetas: , , , ,

Regresso ao artigo de Ribamar Bessa Freire, publicado no Diário do Amazonas no final de Janeiro, a propósito do pudor tornado público por Rita Lee de votar numa candidata «com cara de fome»:

Talvez Rita Lee tenha razão em ver fome na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia precisa ser delineada. Se for fome, é fome de quê?
A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que roeu sua infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que o capiroto ralou. Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome crônica que nasceu com ela na colocação de Breu Velho, dentro do Seringal Bagaço, no Acre. Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava quilômetros para cortar seringa, fazia roça, remava, carregava água, pescava e até caçava. Três de seus irmãos não agüentaram e acabaram aumentando o alto índice de mortalidade infantil. 
Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos que, mesmo agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne vermelha, frutos do mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma rigorosa dieta prescrita pelos médicos, em razão de doenças contraídas quando cortava seringa no meio da floresta. Aos seis anos, ela teve o sangue contaminado por mercúrio. Contraiu cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose.
A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia escolas no seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da experiência e do mundo mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite, aos 16 anos, foi para a cidade em busca de tratamento médico e aí mitigou o apetite por novos saberes nas aulas do Mobral e no curso de Educação Integrada, onde aprendeu a ler e escrever.  Fez os supletivos de 1º e 2º graus e depois o vestibular para o Curso de História da Universidade Federal do Acre, trabalhando como empregada doméstica, lavando roupa, cozinhando, faxinando.
Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para saciá-la, militou nas Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores de seu bairro, no movimento estudantil e sindical. Junto com Chico Mendes, fundou a CUT no Acre e depois ajudou a construir o PT. Exerceu dois mandatos de vereadora em Rio Branco, quando devolveu o dinheiro das mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais vereadores a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora, também por dois mandatos, defendendo os índios, os trabalhadores rurais e os povos da floresta.  
Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra. A cidadania ambiental faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e estimular o manejo florestal. Combateu, através do IBAMA, as atividades predatórias. Reduziu, em três anos, o desmatamento da Amazônia de 57%, com a apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, prisão de mais 700 criminosos ambientais, desmonte de mais de 1500 empresas ilegais e inibição de 37 mil propriedades de grilagem.

***

Hoje, na mesa de café aqui do bairro onde, sem qualquer obrigação de pontualidade, vamos arrimando a conta-gotas aos sábados da manhã a pretexto de pão fresco, algumas compras de mercearia e uma bica, a conversa seguia, como de costume, o rumo dos jornais de fim-de-semana, que cada um traz do quiosque e depois se vão trocando e comentando com fervor variável. Eis senão quando alguém faz reparo «ao ar da tal Marina Silva, a candidata às presidenciais, lá no Brasil». Não querendo entrar num bate-boca fashion à laia de look-book, lá tentei indagar um certo tom pejorativo que me parecia vir à boleia da expressão. A questão, ao que apurei, era «esse toque castigado», também traduzido por «martirizado», que culminava numa perigosa semelhança com Frida Kahlo e que «certamente» não abonava entre os predicados que um candidato deve reunir «para que se possa considerar elegível».

A conversa guinou, como está bom de ver, para esta coisa de fazer equivaler a aparência dos que bem se parecem à competência para bem governar. Como se uma fosse garante ou correlato da outra.

Bem sei que muito se tem dito e escrito e teorizado e se continua ainda a dizer, escrever e teorizar a respeito do impacto da imagem e do seu valor determinante no Mundo que temos. Por minha parte, não obstante os muitos (e aparentemente) dissuasores exemplos práticos que a realidade soma – e o volume crescente de empresas e novas profissões que em torno da premissa vimos assistindo emergir – sigo cada vez mais desconfiada de que se possa considerar esta razão directa uma evidência assim tão matemática quanto se apregoa. Eleitores e votantes incluídos.

Ainda pensei lembrar que o facto do nosso primeiro-ministro ser um clone do George Clooney de pouco nos tem valido, no que respeita à imagem e aos créditos da nação, já para não falar no resto.
Mas lembrei-me a tempo que a pior traição que se pode cometer contra reflexão é forçá-la a entrar justamente pela senda que ela própria repudia.

E é por isso que volto ao artigo de Ribamar Bessa Freire e o coloco em cima da mesa.
Porque, de modo bem mais inteligente e eficaz, me salva à minha imediata tentação de ripostar. E se desdobro o recorte e o estendo sobre o tampo da mesa do café do bairro é só porque acredito que terá o efeito dos reparos exemplares. Suave e firme. Como é próprio dos mestres. Quando colocam o punho sobre a mão titubeante e a auxiliam na geografia do traço, em nome de um contorno menos imperfeito porque mais preciso.


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