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A propósito de... «olhe...Meta-se!»

Posted: 2 de fev. de 2010 | Publicada por AMC | Etiquetas:

Sacudida, atravessou ao encontrão a fila que se formava no átrio, frente ao balcão de atendimento, serviu-se do enorme malão que trazia enganchado no braço para me forçar a recuar os passos necessários a açambarcar o meu lugar e, como se nada fosse, lá tratou de ser atendida à minha frente. Pensei em dizer-lhe qualquer coisa, chamar-lhe a atenção para a rudeza de passar assim à frente de tanta gente sem ao menos uma satisfação. Mas era cedo e o céu estava azul. Sentia-me despropositadamente bem disposta para quem está a minutos de uma consulta de hospital. Só sei que não me apetecia protestar. Além do mais, olhando a senhora assim – tão vestida da cabeça aos pés para parecer uma senhora e, no entanto, a causar uma impressão tão grosseira dali de onde a observava – pareceu-me que já era castigo suficiente que uma simples atitude lhe tivesse desmoronado a pose que certamente tanto trabalho lhe dera a compor logo de manhã, ainda por cima assim de forma tão vexatória mesmo aos olhos de toda a gente. Mas então a senhora sacudiu a cabeleira e eu dei novo pulo à retaguarda diante daquela moleirinha um tanto ou quanto engordurada que, tal como a atitude de há instantes, também não batia com a perdigota dos sapatos a imitar um modelo da Gucci e o lenço onde em vez de Hermés se lia a assinatura Hernes.


«Está mal disposta??» perguntou desafiante na minha direcção. Era cedo, o céu estava azul, eu bem disposta, como aliás já confessei, e um tanto ou quanto ensonada. Demorei alguns instantes até juntar as sílabas à direcção do olhar dela e perceber que se dirigia a mim. Desculpe??... «Sim você!» Ocorreu-me repetir-lhe o que o meu avô costumava dizer: 'Você', é estrebaria! Mas o Sol continuava do lado de fora das janelas e o céu azul também. «É que se está mal disposta está no lugar certo, queixe-se ao médico quando chegar a sua vez!» Olhei a senhora – tão vestida da cabeça aos pés para parecer uma senhora – com idade para ser minha mãe e dei-lhe o desconto de um possível pico de menopausa matinal que lhe pudesse estar a toldar a simpatia e a boa educação. Nova sacudidela, os cabelos por lavar quase a roçar os meus lábios, novo pulo meu atrás. E eis que a mesma frase desabrida, rude, cuspida na minha direcção por entre aquele baton vermelho a la loja dos 300 que lhe manchava o dente de cima. Pensei no Sol, no céu azul. Pensei que era cedo, tinha sono e acordara bem disposta apesar de não ter nenhuma razão especial para essa alegria a não ser a de estar viva. Mas depois reparei no malão que me tirara da fila tão à má fila. Continuava lá, assim como o dente manchado de baton na boca que me cuspia a provocação. Traçado no braço, naquele braço retesado em forma de manguito para a enganchar. E, de repente, toda ela era a invocação do Zé Povinho, toda ela era um imenso manguito vestido de senhora que quer parecer senhora, a debochar com todos nós, eu e o resto da fila atropelada naquela forma sacudida de quem não se incomoda diante de outros humanos. E as palavras começaram a ameaçar aflorar-me os lábios, finalmente a salvo da melena gordurosa que não parava de se pavonear na minha cara. «Está mal de disposta, você, já lhe perguntei duas vezes?!» Eu não ia responder. Aliás não me apetecia mesmo nada responder-lhe, dirigir-me a ela. A simples ideia de trocar uma palavra com o seu dente manchado de vermelhão da loja dos 300 soava-me de uma estética muito pouco promissora desde o primeiro segundo. Mas depois via-a ir ficando cada vez maior, toda ela transformada num gigantesco manguito que não parava de ir inchando, ali mesmo à nossa frente, ocupando a primeira posição frente ao balcão, o malão traçado no braço, a melena gordurosa a avançar outra vez perigosamente na direcção do meu rosto e o dente, aquele dente manchado que não lhe sossegava atrás da língua. Ocorreu-me que talvez se me ouvisse ao menos umas palavras pudesse sossegar e afastar-se, como se recomenda fazer com os cães raivosos que nos saltam ao caminho a ladrar furiosamente. Experimentei. Não, não estou mal disposta. Só perplexa: a perguntar-me se acaso não teria reparado, quando abriu caminho ao encontrão, que estava uma fila ao balcão antes de si.«Atão, isto é assim mesmo, o que é que quer?! Você se tava para aí com alguma coisa que quer que a atendam, olhe... meta-se!! Qué que quer! Meta-se. Tá para aí especada à espera de quê?!» E nem foi sequer a arrogância, o desplante e a falta de decoro que trespassavam aquela orgulhosa ausência de civismo do conselho ufano que me lançava com mais desprezo do que o que se coloca numa esmola atirada contra vontade à atenção do pedinte. Só sei que aquele «olhe... Meta-se!» não me caiu mesmo nada bem pela manhã. Ainda por cima numa manhã tão cedo, tão cheia de Sol e com o céu azul. Ficou-me atravessado entre a garganta e a boca de estômago, como aquelas azias mesquinhas que nos ficam a roer cá dentro e a impedir a digestão. Somado aos pontapés na gramática e no português, então, aquela expressão pareceu-me verdadeiramente obscena. Pior do que se algum palavrão se tivesse soltado da boca da senhora vestida para parecer uma senhora, foi aquele «olhe...Meta-se!», a deixar cuspo junto ao dente manchado, como se já não bastasse o vermelhão esborratado do baton dos 300 e a melena gordurosa a escorrer da moleirinha, misturada ao lenço Hernes que trazia a fazer pendant com o sapato a imitar um modelo Gucci. Cara senhora, no país em que eu vivo as pessoas não se metem. Colocam-se numa fila e aguardam a sua vez para serem atendidas. E se acaso tiverem muita pressa ou for urgente, pedem licença, dão uma satisfação, desculpam-se. Não se metem. São regras básicas da vida em sociedade. Aprendem-se. Tal como se aprende a tomar banho e a falar português. «A isso chama-se educação, Minha Senhora. E é mais importante do que ser atendida em primeiro lugar. Foi isso que esta menina, com idade para ser sua filha, lhe estava a tentar ensinar ao não lhe responder nem dizer nada., ouviu-se do meio da fila.  E, subitamente, a manhã fez-se ainda mais azul, com um Sol mais quente e radioso. Não pelo facto da senhora vestida para ser senhora ter enfiado o rabo entre as pernas e desaparecido num foguete, com um rompante ainda maior do que à chegada. Mas porque atrás dela além de mim estava uma fila e não uma multidão desencabrestada de outros tantos «olhe...Meta-se!» iguais a ela. E porque quando me voltei para trás vários rostos me sorriam com candura, talvez surpresos por não me ter tornado em mais uma senhora vestida para ser senhora, ao abrigo da indignação, por mais justificada que ela fosse. Quando saí da consulta parei encostada ao muro do pavilhão, satisfeita por voltar a estar a céu aberto, por ele continuar azul à saía, por o sentir o Sol na cara, sob o ar frio da manhã e poder enfim acender um cigarro. Foi então que alguém me tocou brandamente no ombro. Ergui o olhar e descobri uma mulher de faces largas que trazia pelo braço uma outra de muita idade. «Já passou filha. Não pense mais nisso. Siga o seu caminho, vá com Deus e tenha um bom dia», disse-me a velhinha. «E olhe, a mim, deixou-me a pensar: se fosse eu tinha refilado e tornava-me igual a ela. A menina é mais nova e reagiu com a paciência que eu é que já tinha idade para aprender a ter!», disse-e a outra. E eu sorri de volta. Sabe, eu nem tencionava dizer-lhe nada, acredite. Mas depois não sei, acho que foi aquele conselho... «O 'olhe... Meta-se!', não foi?!» Olhei para a velhota espantada por ainda me espantar com a lucidez que vem com os anos. «Eu sei, eu sei, filha! As pessoas não compreendem, mas às vezes, pior do que os actos são as palavras que dizem. Mas não pense mais nisso, é o que lhe digo. Algumas palavras amargam tanto que podem estragar-nos o dia. E cada dia é uma benção que deve ser vivida com felicidade. Sobretudo por quem é jovem. Vá com Deus e tenha um bom dia!». E quando ambas me voltaram a sorrir eu soube por que extraordinária razão acordei tão despropositadamente feliz, esta manhã. Porque o Sol e o céu azul têm o condão de tornar límpidos à intuição argumentos que permanecem tantas vezes toldados ao entendimento consciente que deles temos. E, no caso, mesmo sem nenhuma razão em particular, em manhã de consulta no hospital, com uma melena gordurosa a cuspir-me conselhos em português ruim por entre um dente manchado de baton dos 300, qualquer coisa em mim se mantivera inviolável na convicção de que, apesar de tudo, era mais um dia amanhecido com vida. Um dia que me trouxe logo cedo o sorriso cândido de outras pessoas, um toque brando no ombro a céu aberto, a benção doce de uma velhota que nunca vi e talvez nunca mais volte a ver. Veio-me à ideia, uma última vez, a silhueta da senhora vestida para parecer senhora, a desaparecer do meu campo de visão, ainda mais depressa do que me atravessou o dia, quando furou a fila que se formava no balcão de atendimento. Só então me dei conta de que, além de levar o rabo entre as pernas, também levava o malão a pender do braço murcho. Como se algures, a seguir a ter sido atendida, qualquer coisa lhe tivesse desfeito esse imenso e triunfante manguito que lhe crescia do cotovelo para nos enganchar a todos junto com o malão.

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