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Sugestão de Fotografia: 'Marcel Gautherot: o jeito inédito de ver o Brasil'

Posted: 9 de mar. de 2010 | Publicada por AMC | Etiquetas: , , ,

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Marcel Gautherot na ilha de Marajó, Pará, 1970
foto do acervo do Instituto Moreira Salles


Esse homem que se vê na foto, morava em França onde havia nascido, em 1910, filho de um pedreiro e de uma operária numa fábrica de confecções. Certa vez comprou em Paris uma edição traduzida do Jubiabá de Jorge Amado.Aquilo impressionou-o tanto que em 1939 arranjou forma de ir ver o Brasil com os próprios olhos, ainda sem pista de que um 'simples'  livro acabara de lhe fazer agulha definitiva na vida. No Brasil ficou a morar e durante 57 anos atravessou cada recanto do País, de máquina fotográfica a tira-colo, interessando-se por lugares arredados do circuito turístico.

Quando pela primeira vez me guiaram ao trabalho de Marcel Gautherot senti muitas coisas misturadas em rajada. Confesso que a metade de carne e osso do seu acervo sempre me interessou mais do que os exemplos belíssimos do olhar que, simultaneamente, sempre derramou sobre as humanas construções da arquitectura. Digamos que o gosto também se apura onde certas afinidades confluem e acontece que eu não tenho como desmentir essa vocação para as gentes e as suas histórias. Quando olho os torsos suados, os rostos rugosos, as minúcias que quotidiano e tradição vão imprimindo às figuras retratadas por Marcel sem que nenhum decalque se opere entre a pessoa e o cenário que a anima, a coisa arrebata-me no esplendor de toda a sua pujança.
Essa foi, contudo, a metade confessada. A outra, a que guardei para mim durante todo esse tempo é essa coisa espantosa de trazermos um livro  – exactamente o mesmo livro, por sinal – inscrito no rumo e nas escolhas a decidir aos passos, vindas adiante.
Não sei se entendo ou não Gautherot. Muito provavelmente temos razões diferentes, por todos os motivos e mais alguns. Dos óbvios aos 'nem-tanto-assim'. Seja como for, no momento em que puxei o volume amarelado da estante do meu avô materno, certa tarde quente de Junho, as páginas cosidas a linha, a ilustração de Caribé a bambolear na capa, a lombada meio descarnada já, a ameaçar desfazer-se de tão revirada por usos prévios, tive para mim que a minha vida, ou o que quer que fosse que a inspirava e insuflava, passara a fazer nova rota a partir daquele poiso de descolagem oferecido pela prosa ímpar de Jorge Amado.

Por uns tempos e até haver idade a alçar voos a solo, suponho, ditou-me mergulhos na lusofonia e em africanidades múltiplas. Hoje, porém, sei como imediatamente o soube nessa altura, foi parte orgânica essencial do que me encorajou o pé ao desafio e me aventurou por terras da Grande Mata Verde que pela primeira vez me desembocaram na Amazónia. Novamente num mês de Junho, desta feita por volta das onze e meia da noite, quando as portas do avião se abriram, após uma extenuante ponte aérea de mais de 20h, e o bafo saturado da cidade de Manaus me lambuzou o rosto e os ombros pela primeira vez, deixando-me a indizível certeza de ter enfim chegado a casa, eu soube que fora pela pena do farto baiano da juba branca e alma miscigenada que se operara o milagre.

(...)

Essa foto, em particular, comove-me de uma forma muito íntima. Por mostrar Marcel de peito aberto e nu, como há que seja quando se avança pela grande Floresta Amazónica adentro. Por ter sido tirada num lugar que me é muito especial, a Ilha de Marajó, e pelo simbolismo que para mim representa o ano em que foi tirada. Olho a força majestosa da árvore imensa fincada no chão de água e penso: "Céus!.. tudo isso já estava a acontecer, mal eu acabara de nascer!"  E o 'tudo' é isso que aí se dá a ver e que é muito. Os músculos e tendões do corpo do homem junto com o tronco e a espessura das raízes da árvore. Homem e árvore diluindo-se numa mesma fibra, na mesma massa a preto e branco da foto. Um amparando-se no outro, como é desejável que seja.
Porque mesmo quando, Marcel confessa ao poeta seu amigo, Jacques Prévert «no Brasil, tive vontade de derrubar uma floresta inteira para tirar o retrato de uma certa árvore de que gostei» é sempre só isso que está em causa: uma amor avassalador pela Natureza, um ímpeto de a abarcar inteira, uma intuição imperativa e imperiosa de a abraçar que se nos atravessa ao peito nu. 

Por ora, fico por aqui. Em breve voltarei a Gautherot.

(...)

Uma surpresa feliz, há pouco mais de uma semana, ao abrir o suplemento P2 do jornal O Público. A exposição que o Instituto Moreira Salles dedica ao trabalho do fotógrafo Marcel Gautherot, em São Paulo, é notícia por cá, com texto da Isabel Coutinho.

Transportei o texto para aqui e é possível lê-lo na íntegra clicando abaixo, sobre o link para expansão do texto.

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Marcel Gautherot, Congresso Nacional em construção, Brasília, 1958
foto do acervo do Instituto Moreira Salles

Gautherot: o jeito inédito de ver o Brasil

8 Março 2010
No ano em que se comemora o centenário do nascimento do fotógrafo francês Marcel Gautherot e os 50 anos da construção de Brasília que ele fotografou, o Instituto Moreira Salles presta-lhe homenagem. 

Quando, debaixo de um sol quentíssimo, o arquitecto Augusto da Silva Telles, um dos grandes nomes do património histórico brasileiro, foi fazer uma visita de inspecção a um engenho colonial no interior do Rio de Janeiro, encontrou o fotógrafo Marcel Gautherot sentado no meio de um descampado.
Debaixo de uma sombrinha, com a máquina em cima do tripé, o francês comia calmamente uma sanduíche de mortadela. “Marcel, o que você está fazendo aqui?”, perguntou-lhe Telles. Entre “uma mordida e outra”, Gautherot apontou para o céu e disse: “Está vendo aquela nuvem ali? Quando ela estiver bem ali, eu faço a foto.”
Esta é uma das histórias que fazem parte da lenda do fotógrafo francês, que viveu e morreu no Brasil, considerado o “mestre do preto e branco”. Um homem paciente e reservado, que falava pouquíssimo nas entrevistas que deu, por vezes respondendo a resmungar, e que eternizou a utopia arquitectónica que foi a cidade de Brasília, a pedido do arquitecto Oscar Niemeyer.
No ano em que se comemora o centenário do nascimento de Marcel Gautherot (1910-1996) e também os 50 anos da construção de Brasília, o Instituto Moreira Salles (IMS) organizou o livro e a exposição Norte, comissariada pelo professor universitário Samuel Titan Jr. e pelo escritor Milton Hatoum, com as imagens das viagens do fotógrafo à Amazónia. Pode ser visitada até ao dia 21 de Março no IMS, em São Paulo, e deverá seguir para o Rio de Janeiro e para a Europa. Em Abril publicarão o livro A Brasília de Marcel Gautherot, com um ensaio do arquitecto e crítico inglês Kenneth Frampton, que terá uma edição internacional na Thames & Hudson. Na mesma altura será inaugurada no Rio de Janeiro uma exposição dedicada à maneira como a capital brasileira tem sido retratada por fotógrafos.
O acervo de Marcel Gautherot foi comprado à família pelo IMS. São 25 mil fotografias cujos negativos estão em óptimas condições. Além de ser muito metódico, o fotógrafo dedicou os últimos anos de vida a organizar e a catalogar o seu acervo. “Tem uma qualidade estética muito alta, pois ele mesmo se encarregou de descartar aquilo que achava inferior e secundário”, explica numa conversa telefónica a partir de São Paulo Samuel Titan Jr, o coordenador cultural do Instituto Moreira Salles.
Na última Feira do Livro de Frankfurt, em Outubro, Samuel apresentou à Thames & Hudson o projecto deste livro. Estava convencido que seria o projecto do IMS com mais vocação internacional. “Temos um lindo acervo fotográfico, mas sinto sempre que a primeira dificuldade é apresentar José Medeiros, Thomaz Farkas e Marcel Gautherot a um público não-brasileiro. Neste caso, Brasília serviu de isca, e, na sequência, tive que explicar quem era o Gautherot.”
A primeira explicação que Samuel deu aos editores da Hudson foi “a mais folclórica”: um francês que foge da II Guerra Mundial, se instala no Brasil e se deixa fascinar pelo país. “Esse é o lado mais fácil do apelo biográfico, mas também o lado pelo qual Gautherot não se distingue de outros estrangeiros que se apaixonaram pelo Brasil [por exemplo, os fotógrafos Pierre Verger e Jean Manzon].” Depois mostrou-lhes que Marcel Gautherot trouxe para a fotografia brasileira um olhar inspirado pela arquitectura moderna e pelo melhor do modernismo dos anos 20 e 30.

Influência do modernismo

Marcel Gautherot nasceu em Paris em 1910, numa família operária. Estudou na Escola de Artes Decorativas, onde o currículo era uma mistura de arquitectura, de arquitectura de interiores e de design. Estudava à noite e, apesar de não chegar a concluir o curso, entrou em contacto com o modernismo de Le Corbusier e de Mies van der Rohe. Empregou-se numa fábrica de “simpatias modernistas”, onde desenhava móveis, e mais tarde acabou por ir trabalhar para o Museu do Homem, também em Paris, como arquitecto de interiores. “É assim, um pouco por acidente, que ele começou a praticar fotografia a cargo do museu. De um lado, tem a vertente arquitectónica e modernista, de outro, esse lado etnográfico que aprendeu no museu.” É também por isso que, em 1936, vai ao México (a Meca dos fotógrafos e cineastas), onde conheceu o realizador russo Eisenstein.
Foi por causa de ter lido Jubiabá, de Jorge Amado, que Marcel Gautherot teve vontade de ir ao Brasil. A sua primeira grande viagem pelo país realizou-se no Norte, em 1939. Andou pela Amazónia, pelo Recife, por Belém.
“Ele chega ao Brasil e certamente se deixa fascinar, mas tem um olhar muito culto. Aquilo que vai fazer nos 50 anos seguintes não tem nada a ver com exotismo tropical”, explica Samuel Titan Jr. Na verdade, Gautherot chegou na altura em que no Rio de Janeiro se estava a organizar a geração de ouro da arquitectura brasileira: Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Burle Marx, etc. Ficou amigo deste grupo de arquitectos, mas também dos arquitectos do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional. Isso permitiu-lhe viajar pelos lugares mais recônditos do Brasil e contactar com a paisagem e com a arte luso-brasileira.
Nas fotografias do início da sua carreira já se notava o “estilo pessoal” que apareceria em todos os temas de que se ocuparia depois. “As fotos das viagens à Amazónia em 1939, de outra, em 44, e de uma terceira, em 54/55, são surpreendentes porque já antecipavam muitos dos ângulos e efeitos que ele iria perseguir quando depois foi fotografar uma coisa radicalmente diferente como Brasília. Essa procura da composição, e sobretudo a procura da distância certa para fotografar as coisas, já estava muito presente.”
Na selva amazónica, Marcel Gautherot, em vez de tentar fugir às dificuldades - subir a árvores, fotografar de um avião ou tirar fotografias do meio do rio -, “quase sempre” recusou as soluções óbvias. Tentou trazer para as fotografias a sensação urgente de quem se sente assediado pela floresta e pela sua opressão. “Ele, em contraste com quase toda a tradição iconográfica anterior, aceitou a dificuldade como um ponto de partida do trabalho e não como um problema a ser evitado.”
Da mesma maneira, quando foi fotografar Brasília e foi confrontado com a vastidão do espaço e uma linha do horizonte claramente desenhada mas sempre muito distante (”que dá uma situação de isolamento e de fragilidade no meio daquilo tudo”), Gautherot percebeu o que havia de característico, de peculiar, num certo tipo de paisagem e partiu daí. Ao contrário de muitos dos fotógrafos que fotografaram Brasília e que tentaram o close up, o anedótico, o engraçado, o patético. Chegaram lá e “não sabiam o que fazer com essa vastidão do horizonte que é uma espécie de vazio omnipresente.”
Quando Marcel Gautherot se instalou definitivamente no Rio de Janeiro, em 1940, foi por causa do seu portfólio (com fotos de arquitectura que fez no México e em Atenas) que conseguiu trabalhar com o arquitecto paisagista Burle Marx (até aos anos 90), e com Niemeyer, que depois de Gautherot ter fotografado a Pampulha o convidou para integrar a equipa da construção de Brasília (une-os a afinidade estética - os dois são devotos de Le Corbusier - e também a questão política, o comunismo).
No acervo do fotógrafo que pertence ao Instituto Moreira Salles, 2950 das 25 mil fotografias são sobre a construção da capital brasileira. Em Brasília, Gautherot fez uma coisa que nenhum outro fotógrafo fez: fotografou a vida dos “candangos”, os operários que foram construir a cidade. Fotografou os subúrbios do plano-piloto, que anos mais tarde se transformaram nas cidades-satélites. Naquela época eram acampamentos de trabalhadores, desde vilas operárias mais ou menos bem construídas até verdadeiras “favelas” (a “sacolândia”). “Por mais simpático que Gautherot fosse à arquitectura e às ideias políticas do Niemeyer, o facto é que ele registou Brasília de um ângulo que às vezes é heróico, mas também francamente crítico. Tem alguma coisa de muito promissor, mas também de muito ameaçador, naquelas pessoas que estão reduzidas a bonequinhos numa maqueta. É impossível ver as fotos de Brasília e não sentir que aquilo tem alguma coisa de risível, de uma maqueta perdida no planalto”, afirma Samuel Titan Jr. O fotógrafo mais simpático à causa acaba por ser o que capturou a ambiguidade de Brasília como ninguém.
Uma das frustrações de Marcel Gautherot é nunca ter conseguido publicar estas fotografias. “Havia um controlo oficial tão estrito sobre o que se publicava de Brasília, havia um desejo tão ardente de fazer propaganda do país moderno, que essas fotos da vida miserável em torno de Brasília, que no fundo são já uma nuvem negra pairando sobre a utopia urbanística, nunca tiveram curso durante a vida dele.”

Sem miserabilismo
Marcel Gautherot poderia ter sido um daqueles fotógrafos que praticam uma espécie de realismo socialista na fotografia. Mas, tal como explica Samuel, a simpatia comunista foi elaborada esteticamente por ele de “um jeito muito peculiar”. Em vez de olhar para a vida popular como marcada pelo negativo (pela falta de cultura, de comida, de saúde, de dinheiro), como “uma espécie de vazio que se tem que preencher com imagens gloriosas de camponeses e operários cruzando a foice e o martelo”, ele mostra uma espécie de plenitude e de positividade na vida popular. É por isso que se interessa tanto por fotografar o trabalho, os ofícios e as festas populares. A simpatia comunista serviu-lhe para não cair no miserabilismo na fotografia.
Quando se olha para o espólio de Marcel Gautherot, que imagem é que se tem do Brasil? “A imagem de um Brasil em tremenda transformação. É um Brasil que conserva ainda todas as marcas do século XVIII e XIX. O Rio de Janeiro que Gautherot fotografou é o da belle époque, do final do século XIX, início do XX. As Minas Gerais, que fotografou, estão virtualmente no século XVIII. E é o mesmo país onde estão se erguendo a catedral de Brasília, a Pampulha, em que os arquitectos cariocas estão a construir o aterro do Flamengo. Na década de 50/60 é um país de aceleração do processo de modernização e ao mesmo tempo é o lugar onde festas populares, costumes, jeitos e trejeitos lá do fundo da vida colonial, continuam existindo.”
Fotografava com Rolleiflex. “Tinha uma herança pictórica tão forte que o fez desgostar da Leica e de todas as câmaras de disparo rápido. Ele sempre se manteve muito fiel à Rolleiflex e ao negativo quadrado, 6×6 cm. Mais clássica e que serve a esse desejo de composição que é muito forte nele. Esse tipo de escolha já mostra o tipo de fotógrafo que ele é: menos o do instante capturado do que o da composição cuidadosa.”
Marcel Gautherot, o fotógrafo que um dia disse ao seu amigo, o poeta Jacques Prévert: “No Brasil, tive vontade de derrubar uma floresta inteira para tirar o retrato de uma certa árvore de que gostei.”

por Isabel Coutinho
(artigo publicado no suplemento P2, do jornal PÚBLICO de 22 de Fevereiro de 2010)
via Ciberescritas

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