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Repescando uma homenagem antiga, nas páginas do Jornal do Brasil:
Cartola, um vazio se fez no samba
Como observou Jota Efegê, padrinho de casamento de Cartola, a Carlos Drummond de Andrade: «trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira»
Ainda é cedo, amor.
Mal começaste
a conhecer a vida.
Já anuncias
a hora da partida,
sem saber mesmo
o rumo que irás tomar...
Cartola
O mundo do samba silenciou-se. Angenor de Oliveira, o Cartola, morreu aos 72 anos, em decorrência de um câncer, doença contra a qual lutara nos últimos anos. Ao seu lado até o fim, estava sua companheira, Dona Zica.
Carioca do Catete, torcedor do tricolor das Laranjeiras, foi no Morro da Mangueira que Cartola viveu intensamente. Nem mesmo a dura rotina, trabalhando desde cedo como pedreiro e fazendo bicos para ganhar a vida, trouxe aspereza aos seus sentimentos ou inibiu o seu poder de criação. Ainda menino entrou para o mundo da música que o revelaria, mais tarde, como compositor e intérprete de grande sensibilidade e expressão. Fundador da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, para ela escolheu o nome e as cores verde e rosa.
Em uma de suas últimas entrevistas, declarou que gostaria de ser lembrado por três composições, que julgava as mais importantes em sua obra: "As rosas não falam", "O mundo é um moinho" e "O inverno do meu tempo".
Modesto desejo para quem se apaixonou pelo samba, fazendo dele o mensageiro de sua alma delicada. A riqueza musical de Cartola foi uma constante em seu mais de meio século de carreira, como versa o seu último samba: "... tudo é belo por onde passei..."
(...)
'Cartola, no moinho do mundo'
Ao saber que Cartola (1908-1980) estava doente, Carlos Drummond de Andrade resolveu homenageá-lo e escreveu, no Jornal do Brasil, a crónica "No moinho do mundo". Esse tributo ao compositor mangueirense Angenor de Oliveira, o Cartola, é uma espécie de vénia à história do homem simples que encantou pelo seu jeito de lidar com as ocasiões da vida.Embora reservado e totalmente avesso a excessivas aparições públicas, Drummond acompanhava com grande interesse as manifestações da cultura popular. Talvez por isso não escondesse como ficou feliz quando, nesse mesmo ano de 1980, Martinho da Vila (juntamente com Rodolfo de Souza e Tião Graúna) compôs para a escola da Vila Isabel o samba-enredo "Sonho de um Sonho", baseado num poema homónimo seu (incluído na obra Claro Enigma, de 1951).
Cartola leu a homenagem no hospital e pediu que fixassem o jornal na parede do quarto. «Em seus derradeiros momentos de lucidez, em sua cama no hospital, Cartola ainda pode lê-la, transformando-a em sua última felicidade», conta o jornalista e investigador musical Arley Pereira, autor do livro Cartola – 90 Anos.
A crónica, que não consta em nenhum livro de Drummond, foi publicada três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não Falam". Segue abaixo: para ler na íntegra.
(...)
Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.
Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de Sílvio Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.
A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.
Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:
Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.
Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.
* * *
Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.
Carlos Drummond de Andrade, "Cartola, no moinho do mundo"
publicado no Jornal do Brasil em 27.11.1980
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