Já são conhecidos os vencedores da edição deste ano do Prémio de Jornalismo do Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social.
O jornalista do Público, Luís Villalobos foi o vencedor da categoria de imprensa e online, com a reportagem "Há 243 mil famílias em Portugal sem acesso a contas bancárias". A jornalista da Rádio Renascença (RR) Filomena Barros também foi vencedora na categoria rádio, com a reportagem "Comboio dos direitos".
Promovido pela Comissão Europeia, o Prémio de Jornalismo do Ano Europeu 2010 foi criado para reconhecer jornalistas que contribuem para uma maior consciencialização e compreensão dos fenómenos da pobreza e da exclusão social. Os vencedores nacionais estão agora a concorrer ao Prémio Europeu, cujos vencedores serão anunciados em Dezembro.
Cerca de 6,3 por cento dos agregados familiares não têm contas à ordem
Há 243 mil famílias em Portugal sem acesso a contas bancárias
Há 243 mil famílias em Portugal que não têm nenhuma conta bancária, o que corresponde a 6,3 por cento do total de agregados familiares — são os excluídos do sistema financeiro, com impactos sociais. De acordo com o INE, que recolheu estes dados no âmbito de um inquérito sobre as condições de vida e rendimento dos portugueses, 71 por cento destas famílias afirmaram que não tinham contas bancárias por não precisarem, preferindo fazer as suas transacções em dinheiro.Os restantes 29 por cento estarão assim marginalizados por absoluta falta de capacidade financeira para abrir uma conta à ordem, mas também por estarem impedidos legalmente devido a irregularidades passadas.
No entanto, e ainda de acordo com as informações recolhidas pelo PÚBLICO junto do INE, cerca de 51 por cento dos agregados familiares que não têm conta bancária ganharam, em 2007, 4878 euros (o que equivale a 406 euros por mês), valor que é considerado inferior à linha de pobreza relativa. Para o sociólogo Sérgio Aires, director do Observatório da Luta Contra a Pobreza, este indicador não o surpreende, já que “traduz a realidade portuguesa, onde a percentagem de pobres é muito elevada”.
A recolha destes dados, que fazem parte de um módulo sobre endividamento e exclusão financeira, foi conduzida pelo INE entre Maio e Julho do ano passado, mas estão disponíveis apenas desde Setembro deste ano.
As informações são enviadas para Bruxelas, prevendo-se, segundo o INE, que o conjunto dos dados relativos a todos os Estados membros seja disponibilizado em Dezembro. Esta é a primeira vez que a recolha de dados é efectuada desta forma pelo INE, pelo que não há dados comparativos que permitam perceber se houve ou não um aumento das famílias sem contas bancárias. No entanto, em Agosto de 2008 foi divulgado um outro indicador pela Direcção Geral da Igualdade de Oportunidades da Comissão Europeia, onde se constatava que 18 por cento dos cidadãos em idade activa em Portugal não tinham acesso aos bancos. Este valor era superior à média da União Europeia formada por quinze países (dez por cento) mas ficava abaixo da média dos dez novos Estados que se juntaram depois ao projecto europeu (cerca de 47 por cento). O estudo, no entanto, não cita as fontes portuguesas utilizadas nem a data em que o indicador foi recolhido, sabendo-se apenas que Portugal não estava incluído no grupo de países com estudos aprofundados sobre o tema.
Finanças alternativas
Sandra Lopes, de 30 anos, é uma das muitas pessoas que não tem conta bancária. Mãe de quatro filhos, o último com quatro meses e meio, está desempregada há cerca de dez anos. Tinha o seu nome numa conta, da qual o marido era o titular.
O uso indevido de cheques excluiu temporariamente esta família do sistema bancário, mas apesar de Sandra Lopes já poder abrir uma conta, ainda não o fez. “Tinha que ir à junta de freguesia para ter um documento a confirmar que estou desempregada, e depois tinha de reunir ainda mais papelada. E é preciso bom dinheiro para abrir e ter uma conta”, justifica. O marido tem uma ocupação, mas não propriamente um emprego: faz biscates nas obras e recebe os pagamentos em numerário. Rendimento fixo na família só mesmo os 130 euros dos abonos de família, e num mês em que tudo corre bem os seis podem contar com 900 euros para todas as necessidades.
Neste contexto, ter uma conta não é uma prioridade, mas Sandra Lopes sabe que “daria jeito para algumas coisas”, como, por exemplo, “comprar a prestações”. Para já, recorre à senhoria, a quem endossa o cheque que recebe e que lhe paga o valor em dinheiro, que usa depois para pagar as despesas da família.
Paula Rocha, de 50 anos, também tem o passado a marcar as suas relações com os bancos. O ex-marido passou uma série de cheques sem cobertura e ficou inibida durante oito anos, enquanto co-titular, de voltar a ter uma conta bancária. Só que já passaram mais quatro anos desde o fim da penalização e continua sem ter qualquer tipo de contacto com os bancos.
Uma questão de hábito
Hoje Paula Rocha vive sozinha e, diz, foi-se habituando a gerir a vida financeira de outra forma, ao ponto de não sentir necessidade de abrir uma conta, excepto nos momentos em que precisa de pagar algo que não estava programado. Nesses casos, quando o dinheiro falta no bolso, não há cartão multibanco para resolver o problema.
Mesmo assim, percebe-se que a opção de Paula Rocha é mais uma reacção defensiva do que uma recusa em aderir ao sistema financeiro, algo que planeia vir a fazer no curto prazo. Ao ganhar a vida a realizar inquéritos para uma empresa de estudos de mercado, Paula Rocha não tem um rendimento fixo mensal e receia eventuais resultados dessa instabilidade. Quanto tiver um salário fixo, aí sim, pensa abrir uma conta. “Talvez no ano que vem”, diz.
Há quem tenha razões mais simples de explicar, como Mário Coimbra, de 72 anos, reformado, que já não tem uma conta bancária “vai para 20 anos”: “Não tinha dinheiro.” Recebe em cheque a parca pensão e o complemento por dependência, que não chegam a perfazer 400 euros mensais, e tem apenas de se deslocar a um posto dos correios para levantar o dinheiro. Para as poucas despesas que faz, num curto raio de acção, diz que a ausência de uma conta bancária “não faz falta nenhuma”.
Combate mínimo
A existência de 243 mil famílias sem contas bancárias mostra que o uso de numerário ainda é fundamental. Caminhamos para uma sociedade cada vez mais desmaterializada, que recorre aos cartões, terminais multibanco e Internet, mas o dinheiro vivo continua a ser principal forma de realizar pagamentos de baixo valor.
No sistema financeiro é ideia assente que as moedas e as notas manterão a sua vitalidade como principal modo de pagamento durante algum tempo, sendo um instrumento relevante para evitar a exclusão de pessoas sem contas bancárias.
O próprio Estado reconheceu a importância desta questão quando criou, em 2000, os serviços mínimos bancários (SMB). De adesão voluntária por parte dos bancos, os SMB surgiram porque, de acordo com a legislação, a não detenção de uma conta era um entrave à obtenção de bens e serviços e “susceptível de consubstanciar factor de exclusão ou estigmatização social”, sublinhando que as regras de mercado não facilitavam o acesso. Ao mesmo tempo, constatava que a titularidade de conta bancária à ordem e de cartão de débito para sua movimentação eram “necessidades de natureza essencial”. Mas, nove anos depois, a sua eficácia é reduzida (ver texto nestas páginas).
Problema europeu
A questão da exclusão financeira, como sublinha Sérgio Aires, é um tema que tem sido debatido a nível europeu, afirmando este sociólogo que uma pessoa não pode deixar de ter acesso a uma conta bancária apenas porque não tem um determinado rendimento fixo. No documento divulgado no Verão do ano passado pela Direcção Geral da Igualdade de Oportunidades da Comissão Europeia constata-se que o acesso e utilização de serviços bancários básicos “são decisivos para a integração das pessoas na actual sociedade europeia”.
José Centeio, secretário-geral da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ligada ao microcrédito), considera que “a evolução das sociedades, concorde-se ou não, introduziu no quotidiano das pessoas regras e comportamentos que conduzem a que aqueles que não tenham acesso aos serviços financeiros, mínimos que sejam, se sintam verdadeiramente excluídos”.
Ao vedarmos o acesso a uma conta bancária “estamos a impedir essa pessoa ou agregado de ter acesso a serviços que não são apenas financeiros”, diz Centeio. E dá o exemplo dos bancos com “produtos/cartões para serem utilizados por crianças e adolescentes e programas que ajudam este público a gerir o seu dinheiro: é algo positivo, mas que introduz logo na escola uma diferenciação”. Hoje, conclui, “não ter acesso a uma conta bancária é gerador de exclusão não apenas financeira”.
Serviços Mínimos Bancários
Em 2000, o Estado criou um mecanismo de acesso a Serviços Mínimos Bancários a custo reduzido, de adesão voluntária por parte das instituições financeiras. Oito bancos, que representam 95 por cento da rede de balcões em Portugal, aderiram ao projecto. No final do ano passado, porém, havia apenas 763 contas "vivas", segundo o relatório de supervisão comportamental do Banco de Portugal. Em 2007, havia 1841.
Os bancos justificaram esta diminuição com a passagem de contas para outros tipos de depósitos, sendo reclassificadas 1122. Outras 27 foram encerradas por não cumprimento das regras mínimas, e 85 foram canceladas por iniciativa dos próprios titulares. Em 2008 foram também abertas 158 contas ao abrigo dos Serviços Mínimos Bancários (SMB), repartidas por apenas dois bancos, o que demonstra que nem todos os aderentes estão a dinamizar esta iniciativa.
Olhando para os dados do Banco de Portugal, 69 por cento dos SMB estão concentrados numa só instituição (não identificada) e, por outro lado, há dois bancos que nem uma conta "viva" tinham em 2008. Para o Ministério das Finanças, o regime dos SMB é "um importante instrumento para a protecção dos clientes bancários com rendimentos mais reduzidos, designadamente quanto à possibilidade de estes beneficiarem de um regime mais favorável em termos de comissões de manutenção de conta bancária". O ministério liderado por Teixeira dos Santos defende que este responde "cabalmente ao propósito que esteve na sua origem - protecção dos clientes bancários com rendimentos mais reduzidos".
No entanto, fonte oficial disse ao PÚBLICO que já foi solicitado ao Banco de Portugal "um ponto de situação do acompanhamento da aplicação do regime", e que em função dessa avaliação irá ponderar "os ajustamentos que se revelem necessários para acautelar integral respeito pelos interesses dos consumidores".
Deco quer conta do cidadão
O "combate à exclusão financeira tem sido uma das prioridades" do Banco de Portugal, disse fonte oficial desta instituição. "No âmbito da fiscalização das práticas das instituições de crédito aderentes a este regime, o Banco de Portugal tem vindo a emitir recomendações e determinações específicas para a sanção de irregularidades detectadas".
Houve mesmo um banco, cujo nome não foi revelado, que cobrou comissões demasiado elevadas, sendo depois obrigado a devolver o dinheiro aos clientes, no valor de 14,3 mil euros.
A mesma fonte sublinha que, apesar de o conjunto de instituições que participam neste regime "representar um significativo peso no mercado, há uma utilização muito reduzida do mesmo por parte dos clientes bancários". A baixa taxa de utilização dos SMB pode ser explicada, pelo menos parcialmente, segundo a instituição liderada por Vítor Constâncio, pelas restrições que o actual regime prevê, como o acesso exclusivo a não-titulares de outras contas bancárias e a exigência de um saldo mínimo para a sua manutenção (29,8 euros).
No entanto, para o Banco de Portugal, "um dos maiores obstáculos à utilização do regime dos SMB poderá ser o desconhecimento generalizado, por parte dos cidadãos, da sua existência e modo de funcionamento, devido a uma insuficiente divulgação do mesmo - designadamente por parte das instituições aderentes".
José Centeio, secretário-geral da Associação Nacional de Direito ao Crédito, defende que "o direito a uma conta bancária deve ser facilitado. O problema é em que condições, já que os serviços financeiros têm custos e os bancos nesse aspecto não facilitam".
Depois, alerta,"a simples gestão quotidiana de uma conta bancária é tarefa complicada, sobretudo porque as instituições financeiras têm uma política de oferta muito agressiva". Para Vinay Pranjivan, da Deco, a disponibilização de uma "conta do cidadão", ou seja, uma conta à ordem de baixo custo e cartão de débito gratuito, devia ser de carácter obrigatório, tendo esta instituição já enviado uma proposta nesse sentido às autoridades competentes.
por Luís Villalobos
publicado em O Público em 16 de Novembro de 2009
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