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"Os erros e os méritos dos Presidentes, de Eanes a Cavaco "

Posted: 24 de jan. de 2011 | Publicada por AMC | Etiquetas: , , , , ,

por José Pedro Castanheira

foto: Raúl Nascimento

O constitucionalista Jorge Reis Novais é o autor do primeiro estudo comparado sobre a forma como os quatro Presidentes da República exerceram (ou não) os seus poderes. Principal consultor de Jorge Sampaio, é muito crítico dos mandatos de Ramalho Eanes, Mário Soares e Cavaco Silva.
O livro "O Sistema Semipresidencial Português", de Jorge Novais (ed. Almedina), tem especial atualidade, na medida em que já comenta o primeiro mandato de Cavaco Silva, que "frustra qualquer hipótese de otimismo sobre a irreversibilidade de um legado" de trinta anos. Noutros termos: "Basta um mandato errático para pôr em causa o que já era considerado adquirido e para lançar fundadas incertezas sobre o futuro do sistema."
Doutorado em Direito Constitucional e professor na Clássica de Lisboa e na Nova, o autor diz que foi um mandato "substancialmente falhado". Antes de mais, na falta de "consistência teórica". O conceito de "cooperação estratégica", apresentado como a sua diferença específica, é uma "conceção peregrina" e mais própria de "um modelo de semipresidencialismo de tipo francês". A ideia subjacente de um Presidente como órgão de ajuda e colaboração do Governo é, "no mínimo, incompreensível, inconsistente, e, se levada a sério e praticada, perigosa e corrosiva dos pilares do sistema construído ao longo das três décadas anteriores". O objetivo de Belém não é ajudar nem o Governo nem a oposição, mas sim "garantir o equilíbrio e o regular funcionamento do sistema".
As iniciativas em torno do Estatuto dos Açores ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo são inseridas no padrão de um Presidente "que acrescenta problemas e dificuldades ao sistema político, em vez de contribuir para os solucionar". Cavaco é apresentado como um Presidente "que toma partido", com um "propósito de enfraquecimento do Governo".
O autor, que também foi consultor de assuntos constitucionais de José Sócrates, fala de um "alinhamento sistemático do PR com a oposição, designadamente a partir da altura em que a liderança do PSD lhe era pessoal e politicamente muito próxima". Ou seja, quando Manuela Ferreira Leite passou a liderar o PSD. É dessa altura que data o episódio considerado "mais marcante" do mandato: o caso das alegadas escutas a Belém, divulgadas pelo jornal "Público". Tratadas com detalhe, as escutas são "o caso mais grave de quebra do dever de lealdade institucional do PR para com o Governo e de violação do dever constitucional de imparcialidade" perante as eleições parlamentares.
Em compensação, são criticadas as omissões de Belém perante as crises da justiça e da educação, os atropelos à democracia na Madeira ou o impasse na eleição do provedor de Justiça. Na crise financeira, "a sua intervenção foi, durante muito tempo, muito mais a de um comentador que se coloca fora do sistema político".
Durante muito tempo foram "invisíveis (e com toda a probabilidade inexistentes) os esforços" no sentido de um Presidente moderador, imparcial e suprapartidário. Só num período a sua conduta se orientou nesse sentido, que "é, exatamente, o período que atravessamos, o do último ano do mandato, quando as preocupações pessoais do PR coincidiram objetivamente com o interesse nacional", o que o impeliu a "uma prática de contenção, de distanciamento". Foi então que de Belém surgiram sinais de mediação do acordo entre Governo e PSD para a aprovação dos orçamentos de 2010 e 2011 e do Programa de Estabilidade e Crescimento.

Momentos fundadores do semipresidencialismo


Primeiro Presidente a jurar a Constituição de 1976, Ramalho Eanes teve, até por essa razão, um papel crucial na conformação dos poderes presidenciais. O livro destaca, nos dez anos de Eanes, três momentos "fundadores" do semipresidencialismo português. O primeiro foi a demissão, em 1978, do II Governo de Mário Soares (PS/CDS). Tratou-se de um "decisivo marco político" da conduta de um PR que "não aceita ser figura decorativa" ou simplesmente cerimonial, afirmando-se "como centro ou polo efetivo de exercício de poder político". O segundo momento foi a reeleição de Eanes, em 1980, com a derrota do projeto de Sá Carneiro de um referendo constitucional que apontava para "o esvaziamento político do órgão PR".
O terceiro momento fundador é a revisão constitucional de 1982, promovida pelos grandes partidos com "uma intenção proclamada e assumida de restrição dos poderes presidenciais", mas que "redundou, surpreendentemente, num reforço do estatuto e papel do PR". Jorge Novais contraria as interpretações dominantes nos meios políticos e jurídicos sobre a primeira das sete revisões constitucionais já verificadas. "No fim, contra todas as expectativas e contra a conclusão mais generalizada, os poderes e o estatuto do PR resultaram acrescidos, e significativamente, na revisão constitucional. É um dos maiores enigmas da história constitucional portuguesa recente, mas é a pura verdade." Novais justifica com o aumento do "alcance e margem presidenciais no exercício do poder de veto", que só pode ser superado por uma "maioria qualificada de dois terços" dos deputados. Sustenta, além disso, que o poder de dissolução da AR acabou por ser ampliado. Este é, como se sabe, "o mais importante e decisivo dos seus poderes", que confere ao Presidente "a chave do funcionamento do sistema" - ou, na gíria política, a chamada 'bomba atómica'. Depois da revisão de 1982, esta arma já foi acionada, acarretando a dissolução do Parlamento, por cinco vezes: em 1983 e 1985 pelo próprio Eanes, em 1987 por Soares e em 2002 e 2004 por Sampaio.
Novais critica algumas das práticas do general. É o caso do que chama de ativismo de disputa de poder executivo com o Governo", traduzido por exemplo nos discursos proferidos nas cerimónias do 25 de abril de 1977 e 1978, em que Eanes deixou "mensagens de aviso, de distanciamento, de crítica ou de desconfiança" aos governos socialistas em funções. Mensagens em que "nem sempre eram fáceis de perceber as razões presidenciais", envoltas em "discursos crípticos" e "fórmulas barrocas", que permitiam toda a sorte de especulações. O jurista refere ainda a "predisposição para uma prática regular de guerrilha com os partidos políticos" ou com o Governo, como a reivindicação de uma "espécie de domínio reservado do PR na área da política externa".

Governos de Eanes 'desastrosos'


O livro detém-se nos governos de iniciativa presidencial: três, entre agosto de 1978 e dezembro de 1979, liderados respetivamente por Nobre da Costa, Mota Pinto e Maria de Lourdes Pintasilgo. Governos "sem qualquer linha condutora ou de continuidade política ou programática, evoluindo erraticamente entre a direita e a esquerda do espetro político". O balanço é tão "desastroso" que ainda hoje este tipo de governos são vistos como "soluções a evitar". Para além do seu "insucesso objetivo", provocaram "um enorme desgaste tanto na figura do PR quanto no sistema partidário e, sobretudo, nas relações entre o Presidente e os partidos parlamentares". O primeiro deles, de Nobre da Costa, é apontado como "um ensaio para um futuro lançamento de um partido presidencial, a partir de um suposto exemplo de eficácia política e de superioridade ética de um Governo tecnocrático, 'apolítico'". O tal partido (o PRD) viria a ser criado com o "patrocínio" de Belém. Ao comentar os dez anos de Eanes, o autor fala de "bipolaridade" na construção "da matriz portuguesa de semipresidencialismo". E imputa ao general "tentações objetivas de afrancesamento do nosso sistema de governo: 'governos de iniciativa presidencial', disputa da diarquia do poder executivo e, por último, a formação de um partido presidencial".
Na década de Mário Soares, há uma profunda diferença entre os dois mandatos. O primeiro (1986/90) é marcado por "um minimalismo sui generis", em que Soares "reserva para o terreno das lamentações em privado a expressão das razões de queixa que vai acumulando contra o primeiro-ministro". Durante esses cinco anos, Soares "praticamente nunca utilizou o poder de veto 'contra' o Governo". Para Novais, houve até uma "duplicidade" do Presidente, "no sentido de apoio e passividade relativamente ao Governo, mas contundência e afirmação, mesmo em prejuízo das suas afinidades políticas, quando é chamado a arbitrar conflitos" entre Cavaco e a oposição. Dá como exemplos a nomeação do anterior candidato presidencial da AD, Soares Carneiro, para a chefia das Forças Armadas, o veto à Lei da Rádio (aprovada pelos votos de toda a esquerda) e sobretudo a dissolução da Assembleia em 1987 - uma decisão "o mais antiparlamentar que se possa imaginar" e que impediu Vítor Constâncio de formar gabinete. "Contra todas as previsões, Soares fez o impensável: contra uma moção de censura aprovada à esquerda e a possibilidade de viabilização de novo Governo com apoio parlamentar maioritário, à esquerda, o Presidente 'socialista, republicano e laico' (...) coloca-se ao lado do Governo de direita, dissolve a Assembleia da República, convoca novas eleições e dá ao PSD a oportunidade de chegar à maioria absoluta."

Soares extravasou semipresidencialismo


A explicação adiantada para este comportamento de Soares é a estratégia delineada para a reeleição, "o que exigia a garantia, a todo o custo, do apoio do PSD". Já no segundo mandato, exerce o cargo "com inteira liberdade de ação" e de acordo com "as suas próprias convicções e intenções". Nos últimos cinco anos desenvolve "um ativismo anti-Governo PSD (Cavaco Silva) que o aproximaram objetivamente de uma intervenção próxima de uma quase liderança da oposição". A sua gestão mostra como o PR pode "transformar-se, de Presidente garante, regulador e moderador, em agente e protagonista principal da luta política partidária".
Desta feita, fez uma "utilização intensa e sem precedentes do poder de veto". A estatística é reveladora: quatro vetos contra o Governo no primeiro mandato, 21 no segundo... O veto e o recurso ao Tribunal Constitucional deixaram Cavaco exasperado, a ponto de se insurgir contra o que designou de 'forças de bloqueio'. Transformado na "principal instância de efetiva oposição e de combate ao Governo", Soares avançou para as 'presidências abertas', patrocinou o congresso 'Portugal e o Futuro' e teorizou o "direito à indignação dos cidadãos". Os dois mandatos do fundador do PS "oscilaram segundo um movimento pendular que terá extravasado os limites comportados pela matriz portuguesa de semipresidencialismo". O primeiro, marcado por uma "inobservância da fronteira ou patamar mínimos", aproximando-se da fórmula austríaca; o segundo, vizinho do modelo de "coabitação à francesa, estranha ao nosso sistema de Governo".
Ao abordar a presidência de Jorge Sampaio, o autor faz uma declaração de interesses, na medida em que não só compartilhou como teve "a oportunidade de participar ativamente" na elaboração das suas posições essenciais. Fala de anos de "maturidade" e em como o "perfil presidencial é fundamental no nosso modelo de semipresidencialismo". Reconhece que a posição de Sampaio quanto aos governos em funções "mudou ao longo dos dois mandatos". Só que, sublinha, "não mudou em função da cor político-partidária, mas antes das condições de governabilidade, de estabilidade, de cada Governo".

'Uma entorse' cometida por Sampaio


O ano de 2004 "marcou decisiva e justificadamente a memória, a imagem e o legado dos mandatos de Jorge Sampaio". Por um lado, a nomeação de Santana Lopes para primeiro-ministro, em julho; por outro, a dissolução da Assembleia, no final do ano. O constitucionalista expõe as razões que havia quer a favor da opção por Santana, quer da convocação de eleições. "Ainda que indiscutivelmente legítima e defensável", a nomeação de Santana "foi também a opção menos sustentada". Sampaio cometeu, ao dar-lhe posse, "o único verdadeiro erro de relevo dos seus dois mandatos", ao ter condicionado "a subsistência do Governo à observância, por este, de alguns princípios de governação ali mesmo definidos pelo PR". Com efeito, Sampaio impôs a Santana a obrigação de manter as políticas externa e europeia, de defesa e justiça, bem como de consolidação orçamental, constituindo-se, "indiretamente, em coautor do programa de Governo". Estamos perante "uma entorse ao estatuto constitucional do Governo". Esta posição "vai totalmente ao arrepio de tudo quanto o Presidente Sampaio dissera até então e, mesmo, contra tudo o que diria a seguir".
De reter a forma como foi concretizada a "cooperação institucional" entre Belém e São Bento. Momentos altos foram a "atuação concertada" nos difíceis processos de transição de Macau e de Timor-Leste. O mesmo dever de cooperação levou o PR a promulgar a Lei de Programação Militar, um dos "momentos mais turbulentos dos seus mandatos". Paralelamente, Jorge Sampaio não abdicou do seu papel nem na representação externa da República nem de comandante supremo das Forças Armadas. Está no primeiro caso a decisão de, contra a opinião de Guterres, aceitar um encontro com Fidel Castro numa Cimeira Ibero-Americana; no segundo, a recusa de envio de militares para o Iraque, ao invés da posição de Durão Barroso.
Apesar de o balanço final sobre os quase 35 anos de sistema de Governo ser "largamente positivo", o professor de Direito Constitucional avança várias alterações. No plano dos poderes presidenciais, propõe a "nomeação partilhada", sob proposta do Governo, dos membros de direção das entidades reguladoras. Sugere ainda "a necessidade do assentimento" do PR em caso de envio de missões militares para o estrangeiro. Quanto aos mecanismos de controlo e defesa do sistema, admite a possibilidade "de os inquéritos parlamentares passarem a poder incidir" igualmente sobre o Presidente e respetivos serviços - uma decorrência do caso das escutas. O ex-consultor de Belém e São Bento sabe bem como a principal das dificuldades do sistema é a da "governabilidade dos executivos minoritários". Como forma de a promover, defende a introdução de vários mecanismos, entre os quais a moção de censura construtiva, que determina que o Parlamento só possa derrubar o Governo quando "simultaneamente for capaz de apresentar uma alternativa". 

 publicado na revista Atual de O Expresso a 21.01.2011

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