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Reportagem: " 25 anos depois: O murro que terá sido fixe"

Posted: 19 de jan. de 2011 | Publicada por AMC | Etiquetas: , , , , ,


O grande Francisco Sena Santos continua a colaborar com mestras Histórias com Voz no microsite que o Portal Sapo criou para acompanhar as Eleições Presidenciais.
Hoje recorda um episódio épico: o célebre murro na mesa que Mário Soares deu, no combate contra Freitas do Amaral, durante a renhida campanha de 1986, que trazia esquerda e direita ombro a ombro na rua e nas sondagens.
Como relembra Sena Santos, «O “murro” de 14 de Janeiro de 1986 marcou o dia em que que os barómetros políticos começaram a sinalizar Mário Soares como um candidato presidencial com alguma viabilidade», ele que vinha desgastadíssimo pela responsabilidade governativa na crise que se vivia e que, nesse mesmo dia, fora recebido no não menos célebre comício da Marinha Grande por populares em fúria, sendo mesmo agredido por um desempregado mais desesperado. 
Além de um excelente trabalho de enquadramento e repesque da memória recente da política nacional, é um texto escorreito e muito bem escrito.
Que saudades de jornalistas que escrevem e dizem assim, Senhores!!... Que saudades desses repórteres da rádio que já nasciam em orgânica simbiose com ela e, só por isso – por respirarem na mesma grandeza e justa proporção do éter –, quase faziam com que a imagem nos parecesse totalmente supérfula, tamanha a capacidade para nos darem a ver de tal maneira que, subitamente, nos víamos transportados para o meio do acontecido.
Não obstante a qualidade da peça escrita, não se dispensa o brilho e a vitalidade que a voz de Sena Santos lhe acrescentam, pelo que é absolutamente imprescindível ouvi-lo aqui, ainda que se reproduza na íntegra, clicando no link abaixo.


por Francisco Sena Santos

Ninguém pode garantir que aquela terça-feira, 14 de Janeiro de 1986, iniciada pelo candidato Mário Soares por entre abraços e vivas com as peixeiras da Nazaré e concluída com discurso inflamado após choques de manifestantes, com empurrões, bofetões e até pauladas, na Marinha Grande, tenha sido um dia de viragem, determinante para o futuro político de Portugal. Mas é facto que foi a partir deste dia que os barómetros políticos começaram a sinalizar Mário Soares como um candidato presidencial com alguma viabilidade de conseguir a eleição.

As eleições presidenciais de 1986 aconteceram num crucial momento de mudança em Portugal. Em 1 de Janeiro, Portugal passou a ser membro da então Comunidade Económica Europeia. Os meses anteriores tinham sido de reviravolta política no país.
Em Maio de 1985, Aníbal Cavaco Silva, que o país tinha conhecido como austero ministro das Finanças no governo de Sá Carneiro, irrompeu num congresso PSD que parecia destinado a pôr o partido nas mãos do conciliador João Salgueiro. Quando perguntaram a Cavaco Silva o que é que ele ia fazer ao congresso na Figueira da Foz, Cavaco terá respondido que ia fazer a rodagem ao seu novo Citroen BX, e aproveitar para ir ao congresso. Mas o discurso de Cavaco entusiasmou a alma dos antes descrentes congressistas que viram nele o líder capaz de revigorar o partido há cinco anos órfão de Sá Carneiro.
O PSD estava ao tempo, metido numa desgastante coligação de “bloco central” com o PS, numa época de grande asfixia económica, muito desemprego e aflitivas histórias de pobreza e fome. Cavaco assumiu a liderança do PSD e, duas semanas depois, rompeu a aliança com o PS. A ruptura foi declarada num encontro com Mário Soares que demorou apenas oito minutos.
Cavaco, 140 dias depois de ganhar o partido era primeiro-ministro. Esta vitória do PSD foi vista como uma pesada derrota para o PS, então liderado por Almeida Santos, e para as aspirações presidenciais de Mário Soares.

Vale recordar essas legislativas de 1985. O PS, no governo, em gestão após a retirada dos ministros PSD, tinha espalhado pelas paredes do país um cartaz em que pedia 43% dos votos, fasquia que prometia maioria absoluta. Mas, no dia do voto, 6 de Outubro, os eleitores deram aos socialistas escassos 21% enquanto o PSD de Cavaco Silva roçava os 30% e contava com a benevolência do PRD, partido eanista que surgira como novidade nestas eleições, e em quem confiaram 18% dos eleitores.

As presidenciais de 1986 aconteceram, portanto, num tempo em que Cavaco Silva tomava o comando do governo, em que o destino de Ramalho Eanes após dez anos no palácio de Belém era uma incógnita, e em que Portugal se tornava europeu.
A corrida para a sucessão de Ramalho Eanes na presidência da República tinha começado há muito. Maria de Lurdes Pintasilgo foi a primeira a entrar em cena e de imediato arrastou várias sensibilidades da esquerda, socialistas, eanistas, sonhadores. O seu catolicismo, num país tão católico, e a condição de mulher, acrescentaram-lhe apoios que se traduziram pela longa continuada liderança nas sondagens sobre preferências para presidente. Pintasilgo parecia ser a candidata oficial do eanismo. Até ao aparecimento de uma surpresa.
A surpresa foi Francisco Salgado Zenha. Este ex-número dois do PS, ex-fiel aliado de Mário Soares, ao lado de quem se envolveu nas mais duras batalhas, rompeu com Soares em 1982 e aproximou-se de Eanes,. Com o discurso da ética política, avançou, apoiado por Eanes, perante a forte irritação dos pintasilguistas.
Mário Soares, depois de ter chefiado três governos, depois de ter conduzido a integração europeia de Portugal, depois de ter tido papel preponderante na descolonização portuguesa, depois de ter liderado a resistência à tomada do poder pelos comunistas, aspirava, de há muito, tornar-se o presidente de todos os portugueses.
A campanha insistia que “Soares é fixe”, mas as presidenciais aconteciam três meses depois de os eleitores penalizarem o PS com apenas 21% dos votos. Era conhecido o voluntarismo e a obstinação do animal político Mário Soares, mas o desgaste de dois anos (1983/85) de governo com impopular austeridade cotava Soares com apenas 8% das intenções de voto numa sondagem no Expresso.

A campanha para as presidenciais de 1986 arrancou com três esquerdas (Pintasilgo, Zenha e Soares) e com a direita oficial unida para eleger Diogo Freitas do Amaral, apoiado pelo PSD e pelo CDS. Também havia a candidatura PCP de Ângelo Veloso, que logo se soube ser para desistir. E a de Carmelinda Pereira cujo POUS não conseguiu o mínimo de assinaturas para que a candidata aparecesse no boletim de voto.

26 de Janeiro foi o dia de eleições. Freitas do Amaral confirmou o favoritismo, foi o mais votado, mas os 2 milhões e 630 mil votos que recebeu representaram 45,8% dos votos expressos. Tinha ficado a cinco pontos da eleição. Passava a ser necessária uma segunda volta.
Como ficou resolvido o combate à esquerda? Soares, ressurgiu e foi o apurado com 25,1% dos votos, frente aos 20,6% de Zenha e 7,3% de Pintasilgo.
Assistiu-se então à união das esquerdas. Até Álvaro Cunhal, que tanto arrasara as políticas do PS apelou ao voto em Soares como “imperativo dos trabalhadores, democratas e patriotas” para travar a “dinâmica ultra-reaccionária agressiva” da candidatura da direita. Cunhal recomendou aos comunistas que com a mão esquerda tapassem a cara de Soares no boletim de voto e com a mão direita pusessem a cruz que lhe dava o voto.

A eleição presidencial de 1986 decidiu-se em 16 de Fevereiro, por entre enorme incerteza. Sentia-se que esquerda e direita estavam ombro a ombro nas ruas. Freitas tinha partido favorito mas a notícia de filiados no PSD a declararem apoio a Soares ampliava a dúvida.
A lei eleitoral de então proibia a divulgação de resultados de sondagens na semana anterior às eleições. Mas havia sondagens e, recentemente, Freitas do Amaral, entrevistado na Antena 1 por Maria Flor Pedroso, confessou que na manhã da véspera das eleições o amigo André Gonçalves Pereira lhe telefonou a contar o resultado de uma sondagem encomendada por uma embaixada em Lisboa: empate absoluto entre Freitas e Soares.
Às oito da noite de 16 de Fevereiro, as primeiras projecções apontavam tendência para vitória tangencial de Freitas. Creditavam-lhe 49,5 a 51,5% dos votos, enquanto Soares surgia com 49 a 50,5%. Mas, quando, já depois da meia-noite, o apuramento ficou concluído, Soares, com 3 milhões e 10 mil votos, atingia 51,1% e estava eleito com 138 mil votos de vantagem sobre o adversário.
A meio da manhã do dia seguinte, segunda-feira, 17 de Fevereiro, a carrinha de uma florista parou à porta da casa de Freitas na Quinta da Marinha. Ia entregar ao candidato derrotado um enorme ramo com mais de 100 flores. Dentro de um envelope, seguia um cartão manuscrito com cumprimentos ao casal Freitas pelo empenho “na brilhante campanha”. Remetente: o “amigo e admirador” Mário Soares.

Nessa mesma segunda-feira, nos debates políticos na rádio para discutir as eleições, vários comentadores puxaram o murro na Marinha Grande como o factor emocional, habilmente explorado, que fizera renascer o apoio a Soares.
É facto que a campanha de Mário Soares quando na manhã daquele 14 de Janeiro saiu da Nazaré em direcção a Peniche, no arranque de uma jornada que culminaria com comício em Leiria, já sabia que ia encontrar hostilidade na Marinha Grande. Soares ia fazer campanha junto à Fábrica Irmãos Stephens, num momento em que a crise estava a deixar com salários em atraso muitos operários vidreiros de outras empresas. Sabia-se que vários daqueles operários e outros já no desemprego estavam a ser mobilizados para uma manifestação contra o ex-primeiro-ministro. Soares não evitou a deslocação ao feudo comunista. Nem o confronto.
Nas imagens fixadas pelo repórter Rui Ochôa, para o Expresso, vê-se um manifestante que levanta um pau que parece dirigir contra Soares que, empurrado, se protege levantando o cotovelo direito. Os rostos em volta mostram muita agressividade, apupos, e há muitos braços levantados. Um murro dirigido a Mário Soares foi encaixado por um agente da escolta, que ficou a sangrar. Soares fez questão de falar ali mesmo e clamar “somos democratas, não temos medo”.

O “murro” de 14 de Janeiro de 1986 entrou para a lenda política como um impulso para o arranque político que levou Mário Soares para os 51,1% e para Presidente da República. Atingiria 70,3% dos votos na reeleição em 1991, campeão da reconciliação como presidente de todos os portugueses.
Aquele murro na Marinha Grande terá sido fixe para a campanha “Soares é fixe”.

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