Jean Jean Berman deixou o país há cinco meses para fugir da miséria e da destruição. Há dois, tenta uma vida nova como estivador em Tabatinga. foto: Antonio Lima
Os odores ficam mais fortes quanto mais perto se chega do rio Solimões. O cheiro do peixe estragado do fim de feira mistura-se ao das frutas podres e funde-se com a fragrância do esgoto que desce, incontido, até a beira do porto antigo de Tabatinga.
O sol está a pino e suas roupas estão imundas, mesmo assim Jean Jean Bermann não se importa. Na beira do Solimões, ninguém parece mais feliz que ele.
Quem o vê maltrapilho, sujo e suado, dificilmente pode imaginar porque aquele negro de 31 anos de idade e pouco dinheiro no bolso consegue estampar tantos sorrisos na boca repleta de dentes luminosamente brancos. Alguns minutos de conversa ajudam a sanar essa dúvida. Jean Jean é haitiano.
Deixou o país há cinco meses para fugir da miséria e da destruição que tomaram conta do Haiti nos últimos 20 anos. Antes de chegar a Tabatinga, peregrinou pelo Panamá, Equador e Peru.
Há dois meses que tenta uma vida nova no beiradão do Solimões carregando bananas e estivas para um “marreteiro” brasileiro. Em meio a uma das regiões mais pobres do Brasil, Jean recuperou o que não tinha na sua terra natal: a esperança.
«Estou muito feliz aqui. Todos me ajudam. Os brasileiros são meus amigos», diz Jean, sentado sob a sombra do guarda-sol de uma vendedora de sorvetes peruana.
Jean Jean pouco sabe a respeito do Brasil. O seu conhecimento sobre a maior economia sul-americana resume-se aos dribles de Ronaldinho Gaúcho no auge de sua forma. Decidiu sair do Haiti depois de ver que o país pouco mudara um ano após o terremoto de 12 de Janeiro de 2010. Com o país em frangalhos, resolveu arriscar a aventura: «Sempre quis conhecer o Brasil. Consegui dinheiro emprestado e vim. O meu sonho agora é chegar a Manaus. Disseram-me que lá tem muito emprego. É verdade?”, indaga Jean Jean.
Arold Achille, 32, deixou a família e hoje vende picolés para sobreviver. foto: Antonio Lima
O fluxo de imigrantes haitianos mudou a paisagem de Tabatinga. Pela avenida da Amizade, via que divide o Brasil e a Colômbia, homens negros vestidos, quase sempre, com roupas de futebol americano ou em trajes sociais, transitam pelas calçadas de um lado para o outro. A cidade, que já convivia com os índios e os brancos, está agora a aprender a conviver com os negros.
O "marreteiro" José Valentino Marques, de 31 anos, considera que os haitianos são bem recebidos na cidade. «Até agora, não ouvimos nenhum caso de discriminação. Os haitianos são gente direita. Querem trabalhar como qualquer um. No que podemos, estamos ajudando», diz.
O coordenador da Pastoral do Imigrante de Tabatinga, o padre colombiano Gonzalo Franco, garante que a comunidade local foi muito receptiva aos haitianos e que isso acaba por incentivar ainda mais a imigração para a região. «Eles sofreram muito preconceito no Equador e no Peru. Houve episódios de deportação, roubo e extorsão por parte das autoridades locais. No Brasil, eles foram recebidos de braços abertos», explica.
Acontece que toda essa receptividade está a deixar o prefeito de Tabatinga, Saul Nunes Bemerguy, preocupado. Acha que a cidade não tem condições de arcar com os custos sociais de uma leva grande de imigrantes. «Nossos recursos são escassos. Se a Polícia Federal realmente aumentar o rigor para dar o visto de entrada a esses haitianos, a situação do meu município vai ficar complicada. Eles não poderão voltar ao país de origem porque não têm dinheiro, e nem poderão ir a Manaus porque não terão os documentos. Vão acabar ficando aqui e não temos emprego para eles», explica.
Também Gonzalo Franco teme que, sem trabalho e sem perspectivas, os haitianos acabem por se transformar num alvo fácil para aquele que é considerado o maior “empregador” do Município de Tabatinga: o tráfico de drogas.
Monitorar a saúde dos haitianos para despistar a cólera
No começo de Fevereiro, houve o anuncio de que uma equipa da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) passaria a acompanhar de perto o estado de saúde dos imigrantes haitianos no Alto Solimões, com monitoramento nos municípios de Atalaia do Norte e Benjamin Constant. Isto apesar de, no Amazonas, somente o município de Tabatinga (a 1.106,66 km de Manaus) ter actualmente presença confirmada de haitianos. Somente no passado mês de Janeiro, registava-se uma população de 600 haitianos com domicílio em Tabatinga, embora dados do Acnur indiquem que outros 500 haviam passado pelo município.
O presidente da FVS, Bernardino Albuquerque, sublinha que Atalaia do Norte e Benjamim Constant, no extremo oeste do Amazonas, fronteira com o Peru, são municípios muito próximos de Tabatinga.
«Nosso foco é Tabatinga. Mas vamos a outras duas cidades verificar se há informações sobre refugiados haitianos lá também. Precisamos acompanhar a situação», explicou. «Já mantemos uma atenção especial em Tabatinga, mas o fato de a transmissão do cólera estar em franca expansão no Haiti nos trouxe essa preocupação maior», confessou o presidente da FBV, que é também médico infectologista.
Entre as medidas preventivas que a FVS e a Secretaria Estadual de Saúde (Susam) vão realizar no Alto Solimões inclui-se o monitoramento ambiental, nomeadamente a avaliação sistemática da água de igarapés e de cacimbas.
De acordo com o escritório do Acnur no Brasil, além de Tabatinga, os outros pontos de chegada de haitianos ao Brasil são as cidades de Epitaciolância e Brasiléis, no Acre, onde vivem já 140 haitianos que solicitaram refúgio no Brasil. Segundo o Acnur, o Comité Nacional para Refugiados está encaminhando todas as solicitações de refúgio para o Conselho Nacional de Imigração, ligado ao Ministério do Trabalho.
A lei brasileira de refúgio não prevê a concessão de acolhimento por motivo de desastres naturais, mas, por razões humanitárias e tendo em conta da quantidade de pessoas envolvidas, o conselho considera já a hipótese de atribuir vistos de residência a estes haitianos.
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