foto de Ricardo Moraes |
Millôr Fernandes fez de tudo: foi jornalista, escritor, dramaturgo, tradutor, cartoonista. Mas era, antes de mais, um humorista, que marcou a Cultura brasileira do último século. Morreu de falência multiorgânica, nesta terça-feira, no Rio de Janeiro, após quatro meses de internamento. A família não divulgou a causa da doença. Millôr tinha 88 anos.
Autor fértil, publicou perto de três dezenas de livros de prosa, mais três de poesia e um de desenhos. Escreveu 14 peças de teatro, cinco das quais nunca chegaram ao prelo (e duas não chegaram ao palco). E escreveu ainda 11 espectáculos musicais. Todavia, foi na imprensa que se destacou como uma das vozes de resistência da sua geração, subjugada pela ditadura militar no Brasil.
A relação muito próxima de Millôr Fernandes com os jornais começou quando o brasileiro, nascido em 1923, tinha apenas 10 anos. Foi com essa idade que vendeu o seu primeiro desenho, para o O Jornal do Rio de Janeiro. O jornalismo chegou em 1938, com a entrada no O Cruzeiro, onde manteve durante 18 anos a popular coluna “O Pif-Paf”.
Mas a coluna só surgiu no segundo período de colaboração com esse semanário, que começou em 1941, depois de ter assumido durante alguns anos a direcção de A Cigarra. A esta última revista, Millôr chegou como vencedor de um concurso de contos promovido pela própria publicação. Quanto a O Cruzeiro, deixou-o em 1962, na sequência de crítica da Igreja Católica.
Este é um ponto importante na biografia do “descrente” Millôr Fernandes, que em 1964 lançou O Pif-Paf como publicação quinzenal e com ela as bases para o início da “imprensa alternativa no Brasil” em plena ditadura militar. Poucos anos mais tarde, em 1969, participou na fundação de um dos mais relevantes títulos da resistência ao regime: O Pasquim. O jornal satírico durou, na versão original, até 1991 – embora já sem Millôr.
O escritor saiu em 1975. Ainda assim, foi o principal responsável pela continuação de O Pasquim nos cinco anos imediatamente anteriores, uma vez que foi quem assumiu a edição do periódico – que chegou a ter uma tiragem superior a 200 mil exemplares – quando toda a restante redacção foi presa, em 1970, devido à reprodução do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo.
Millôr Fernandes colaborou ainda com a revista Veja e, em Portugal, com o extinto Diário Popular (nos anos 1960). A partir de 2000, fez da Web o seu espaço de publicação (e de compilação de trabalhos antigos), com o lançamento de Millôr Online. A Internet foi, de resto, motivo do diferendo que o levou a deixar a Veja em 2009, acusando a revista de publicar os seus trabalhos na rede sem autorização.
Para o site, o humorista escreveu a sua própria cronologia, de 1924 a 2000, onde recorda exposições, viagens, reportagens, polémicas. Millôr regressa a uma foto com Walt Disney, de 1948, e faz saber que foi em 1986 que comprou o seu primeiro computador, um XT a vapor.
Millôr Fernandes – chamou-se assim e não Milton Fernandes devido a um episódio de caligrafia confusa, que o próprio só descobriu aos 17 anos – será velado a partir de quinta-feira, no bairro do Caju, Rio de Janeiro. O corpo será depois cremado.
"Brasil perdeu muita da sua graça"
"Numa semana, o Brasil perdeu Chico Anysio e Millôr, dois génios do humor, e com isso perdeu muita da sua graça. Um era o incomparável criador de 200 tipos; o outro, um articulador de palavras", disse ao Público o jornalista e escritor brasileiro Zuenir Ventura, que está publicado em Portugal pela Planeta, com o livro Inveja – Mal Secreto.
"Poucos na língua portuguesa exploraram como ele o potencial sinctático e semântico das palavras – os trocadilhos, o jogo, a polissemia, a brincadeira vocabular. Com uma inteligência desobediente, imprevisível e desconcertante, Millôr aprimorou-se em desconstruir verdades aceitas e hipocrisia consagradas. Não conheci intelectual mais independente e livre. 'Livre como um táxi', ironizava Millôr".
"Polivalente, ele traduziu mais de 70 peças e mais de cinco mil frases, axiomas, provérbios, pensamentos. Céptico, mas não ressentido, Millôr ajudou o Brasil a assumir o que tem de melhor, que é a vocação de rir – contra a seriedade, os poderosos e contra si mesmo."
publicado no Público em 28/03/2012
Auto-retrato de Millôr Fernandes |
por José Vítor Malheiros *
A aventura começa logo com a data de nascimento. Nasceu a 16 de Agosto de 1924. Ou melhor: é bem possível que tenha nascido a 16 de Agosto de 1924. Pelo menos essa é a data que ele acha mais provável, o dia em que lhe dão os parabéns e uma das mais referidas nos artigos escritos sobre ele. Só que também pode ter sido a 27 de Maio. É ele mesmo que diz que pode.
E é essa que vem no bilhete de identidade. De 1924. Ou 1923... No BI está 1924 mas também pode ser 1923. Ah, e o 16 de Agosto também pode ser de 1923. É até essa data que vem na Enciclopédia Itaú Cultural. Na curta nota biográfica que publicou no seu site diz que "há desencontros na opinião da família". E provavelmente já é tarde para tentar o consenso.
O sítio, esse, está estabelecido: o bairro Meyer (ou Mayer, ou Méier) no Rio de Janeiro.
Depois também há uma peripécia com o nome. Nasceu Milton Viola Fernandes e usou Milton durante a infância e a adolescência. Mas um dia, aos 17 anos (às vezes diz 18), descobriu que o seu verdadeiro nome não era Milton mas Millôr.
Descobriu quando consultou o seu registo de nascimento. A história é repetida em todos os perfis e no seu site está o fac simile do registo para tirar todas as dúvidas. E tira. O que lá está é um Milton caprichado, à maneira de 1924 (ou 1923) onde o traço que corta o "t" ficou por cima do "o". E o "n" final, se não fosse um "n", poderia ser um "r". Millôr! Milord! Millôr Fernandes inventouse todo, dos pés à cabeça. E não começou só aos 17. Nasceu quase de geração espontânea, órfão de pai com um ano de idade e de mãe aos dez. A morte do pai atirou a mãe e quatro filhos da classe média "para o nível proletário". A morte da mãe provou-lhe definitivamente a injustiça da vida e a inexistência de Deus "a paz da descrença", diz. Uma descrença que vai muito para lá do Além (será possível?) e que se traduziu numa pose eminentemente cínica perante a vida, genialmente sublimada na sua actividade de humorista, observador impenitente das fraquezas humanas. À morte da mãe seguiu-se "o período dickensiano, vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito. A família dispersa, os quatro irmãos cada qual pro seu lado, tentando sobreviver".
Começou a trabalhar na imprensa aos 13 anos, na revista O Cruzeiro. Como paquete mas também a ajudar na paginação e... a fazer subtítulos. E a sua carreira descola. Em 1939, aos 15 anos (ou 16, nunca saberemos) ganha um concurso de contos organizado pela revista A Cigarra e é convidado para colaborador regular. As colaborações multiplicam-se, a sua reputação cresce. Regressa a O Cruzeiro. Aos 20 anos já é uma celebridade e ganha "um dos maiores salários da imprensa" (numa das súmulas autobiográfi cas surreais que escreveu diz que "aos quinze [anos] já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil"). O Cruzeiro, onde Millôr chega a ser responsável por dez secções, torna-se um extraordinário caso de sucesso e atinge uma tiragem de 750 mil exemplares. "De repente, todo o mundo que trabalhava no Cruzeiro ficou famoso", conta Millôr numa entrevista à Época.
Conheci Millôr Fernandes nas páginas do Diário Popular, na secção Pif-Paf que ele tinha criado em 1945 na revista brasileira O Cruzeiro (onde assinava Vão Gogo) que já tinha tido uma vida breve como publicação independente, com apenas oito edições. Nessa altura ele já tinha abandonado as páginas de O Cruzeiro, com quem tinha entrado em conflito devido a uma sátira A Verdadeira História do Paraíso que a igreja católica tinha considerado ofensiva e da qual a própria direcção da publicação se tinha dessolidarizado num editorial infame. Mas quando o seu trabalho chega a Portugal o seu currículo já se tinha alargado ao cinema, ao teatro (como dramaturgo, cenógrafo, adaptador, produtor, actor); à tradução (uma das suas ocupações principais; começou com banda desenhada e passou aos clássicos), à televisão (como autor e apresentador, às vezes misturando texto e ilustração), já tinha feito inúmeras exposições, entre as quais duas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e o seu estatuto de consciência crítica, bobo incómodo e filósofo popular estava já firmemente estabelecido. Millôr já era politicamente incorrecto antes de se inventar o conceito e continuou a ser quando já era mal visto. Foi processado meia dúzia de vezes, nada de mais. "Não tê-lo sido me envergonharia", diz-me num mail.O Pif-Paf do Diário Popular, uma página inteira semanal, era um espaço de humor inqualificável, uma mistura de subtil mas explosiva irreverência, de sátira social e ficção surrealista, recheado de Hai-kais, aforismos e fábulas de humor finíssimo, onde as farpas voavam em todas as direcções, acompanhados pelas selvagens e iconoclastas ilustrações do Millôr, de uma força incontrolável, sempre impiedosas e às vezes pungentes, apesar de tudo. Há algo de Picasso no traço e é o lado selvagem. Millôr desenha como quer desenhar e está-se nas tintas para as convenções sociais ou estéticas.
Estão a ver o Picasso das "mulheres que choram"? A mistura daquela tragédia pungente, a capacidade de descrever aquela dor inconsolável e a evidente falta de paciência para a aturar? É como em Millôr. Devo confessar que na altura eu achava que ele desenhava muito mal Millôr manteve a sua página no Diário Popular de 1964 a 1974 e eu comecei a lê-lo logo em 1964, tinha sete anos, quando os meus padrões artísticos eram muito clássicos mas adorava o vigor dos desenhos, a força daquele traço fascinava-me.
E, à medida que o tempo foi passando, fui gostando cada vez mais. Não demorou muito até eu perceber que ele era mesmo um desenhador extraordinário apesar, ou melhor, precisamente pelo seu desrespeito pelos cânones. Guardei durante anos recortes amarelecidos com desenhos seus.
Há aforismos do Pif-Paf de que me lembro desde essa altura e desconfi o de que muitas das citações de Confúcio que andam pelas bocas do mundo saíram da pena do Millôr ele inventou tantas que acabou por fazer um livro, Confúcio Disse.
Os aforismos, provérbios, Haikais, citações inventadas e jogos de palavras sempre foram uma parte importante do trabalho de Millôr e há muitas pérolas por ali.
Mesmo nas entrevistas as frases saem assim, fiadas de sound bytes avant la lettre, concisas e certeiras, cínicas e profundamente sarcásticas ("Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim", "O país que precisa de um salvador não merece ser salvo", "Quando um chato vai embora, que presença de espírito!", "Os nossos amigos poderão não saber muitas coisas, mas sabem sempre o que fariam no nosso lugar"). Só A Bíblia do Caos tem mais de "5.142 pensamentos, preceitos, máximas, devaneios, elucubrações" mas a bibliografia de Millôr conta com dezenas e dezenas de obras, das de autor às traduções (Shakespeare, Tchekov, Molière, Racine, Ibsen...). Ainda que Millôr não goste que se fale da "sua obra" ("obra é coisa de pedreiro").
Hoje, aos 85 (84?) mantém uma coluna semanal na revista Veja, depois de ter passado por muitos dos maiores títulos da imprensa brasileira, incluindo O Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo, o Jornal do Brasil. Os temas vão da política à literatura, passando pela língua uma paixão de sempre, a par da praia e das mulheres, que diz que sempre o trataram muito bem.Mas se há coisa que Millôr recuse são rótulos. "Humorista, eu não sou. Por acaso, o que escrevo é que tem humor", diz numa entrevista à revista Continente.
Numa troca de mails com o humorista (Millôr não usa telemóvel nem cartão de crédito, mas trabalha com computador há mais de 20 anos, usa mail e dispôs-se a responder às minhas perguntas com grande simpatia, apesar de não gostar de entrevistas) as respostas mostram bem a sua recusa de qualquer classificação.
Politicamente, é o que? "Eu vivo. Os outros me definem." Mas é um anarquista ou só um liberal? "Você me diz." Mas acrescenta logo a seguir: "Todo o poder é fascista e há uma puta concorrência entre direita e esquerda pra ver quem é mais. Tudo é apenas uma questão de estilo." Alguma vez sentiu que o poder político merecesse o benefício da dúvida? "Nunca." Há alguma instituição em que acredite? "NÃO!" Em maiúsculas e com ponto de exclamação, por causa das dúvidas. "[As instituições] nascem assim, deformadas. O grupo é uma deformação social gerada para proteger o grupo. Contra o indivíduo. O indivíduo, que eu represento, é responsável por tudo, não se exime de nada." Confessa que há muitos anos a política o interessou mas a sua relação com a política evolui "de algum entusiasmo pelo jogo, até o tédio absoluto de hoje. Tédio é a palavra. Não tenho nem raiva. Leio muito história. Que não é nem uma tragédia nem uma farsa. É uma canalhice." Vota? "Não voto." Amargo? Nada. "Eu sou indecentemente feliz. Porque nasci assim. As pessoas vêem que o indivíduo nasce alto, baixo, homem, mulher, preto, branco.
Mas não vêem o mais importante; a pessoa nasce feliz ou infeliz.
Eu nasci feliz. Posso enfrentar qualquer infelicidade. Não, Malheiros, não é um paradoxo." E tem esperança em quê? "Em nada. Quem tem esperança é um fracassado. Eu vivo no presente."
* publicado no P2 a 5 de Abril de 2009
Millôr Fernandes: «A imprensa brasileira sempre foi canalha»
No início da década de 1980, a revista Oitenta, inspirada na Granta inglesa, entrevistou o escritor e jornalista Millôr Fernandes por mais de sete horas. Segundo avaliação de Millôr, de 1938 – quando começou no jornalismo – até aquela data, a técnica foi a única mudança nos meios de comunicação. Em quesitos éticos e morais, "a imprensa brasileira sempre foi canalha."
Em homenagem ao intelectual brasileiro que pensou, falou e escreveu sobre temas importantes de nosso tempo, a Livraria da Folha seleccionou um trecho do livro "A Entrevista" no qual Millôr conta o seu envolvimento com o jornalismo e as suas impressões sobre a mídia brasileira.
[ENTREVISTA]
Millôr - Eu quero fazer um pequeno introito a esta entrevista absolutamente sincero: não gostaria de estar dando esta entrevista. Estou porque gosto muito fraternalmente - como não posso dizer fraternalmente por causa da idade, eu costumo dizer fra-paternalmente - do Lima e do Ivan. Por osmose comecei a gostar dos outros. Eu só não digo que estou começando a ficar gaúcho porque não tenho rebolado gaúcho. Agora - nada, na minha estrutura, soi disant intelectual, com todas as aspas, me conduz a dar uma entrevista a sério, sobretudo a pessoas altamente respeitáveis como vocês. Quero que fique gravado nesta entrevista: realmente, eu não me levo a sério. Mas na proporção em que o tempo passa, a idade avança, as pessoas vão te levando insuportavelmente a sério, e você acaba assumindo um mínimo disso.
- Quando você começou no Jornalismo?
Millôr - Eu comecei a trabalhar no dia 28 de março de 1938; tinha 13 pra 14 anos de idade. E essa é uma das coisas de que me orgulho - a minha vanglória - a consciência profissional. Eu era um menino solto no mundo, uma vida que dependia só de mim mesmo. Naquela época, o Ministério do Trabalho era recém-fundado. O meu empregador já era O Cruzeiro. Pedi que me assinassem a carteira de trabalho. Quando cheguei em casa (uma pensão) e vi que a data que estava lá na carteira era a data em que eu havia pedido a assinatura da carteira e não a em que eu havia começado a trabalhar, voltei e pedi retificação. Veja você, um menino com menos de 14 anos, sem nenhuma influência ideológica de trabalhismo, de nada, apenas com aquela consciência de que tinha direito. Então a carteira diz assim: "onde se lê tal, leia-se tal data". Está lá registrado o primeiro dia de trabalho: 28 de março de 1938. Já fiz 43 anos de jornalismo, mais anos do que vocês, em conjunto, têm de vida.
- Obrigado pela generosidade. Você acha que o jornalismo brasileiro melhorou muito de lá pra cá?
Millôr - Muito, tecnicamente. Lamentavelmente, porém, do ponto de vista ético, moral e social, melhorou muito pouco. E já era quase criminosamente ruim naquela época. Conforme você sabe, eu não tenho nenhuma formação marxista, não acredito em excessivos determinismos históricos. É evidente, é liminar, que as forças de produção regem muitas coisas. É liminar que o contexto da sociedade reja fundamentalmente muitas coisas. Agora - o que não é liminar é o seguinte: há forças metafísicas, há entrerrelações no mundo que não estão previstas em qualquer ideologia; a isso eu chamo o anticorpo. O Marx é o próprio anticorpo dentro da sociedade em que vivia. Se as teorias de Marx fossem perfeitas, ele não existiria. Porque o contexto social e as relações de produção da época não o previam, não o permitiram. Você pode dizer que a imprensa é resultado do meio, a imprensa é resultado da sociedade em que funciona. Certo. Mas, às vezes, por força de um indivíduo, ou por força de um pequeno grupo de indivíduos, ela pode se antecipar ao seu meio e fazer progredir esse meio. Mas a imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o país. Acho que uma das grandes culpadas das condições do país, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa. Repito, apesar de toda a evolução, nossa imprensa é lamentavelmente ruim. E não quero falar da televisão, que já nasceu pusilânime.
- Há um consenso de que a imprensa brasileira, tecnicamente, teria atingido uma qualidade comparável com o que de melhor se faz no mundo.
Millôr - De acordo. A revista onde trabalho, Veja, é um exemplo, tem todas as possibilidades; praticamente iguais às da Time. A TV Globo só não tem mais possibilidades porque não quer. Ela pode mandar 30 repórteres amanhã pra Polinésia com o poder que tem, fazer a cobertura que quiser. Mas só age em função do merchandising. Nos falta até o contraste, que existe em países supercapitalistas como os Estados Unidos, onde o choque de interesses é tão violento que faz da imprensa americana a melhor imprensa do mundo. Quando o New York Times não quer dar cobertura a um setor, o Washington Post vai em cima. A França tem dois fenômenos de boa imprensa: são Le Monde e Le Canard Enchainé: prova de que a chamada imprensa burguesa, ou a imprensa dentro de países burgueses, pode ser realmente a expressão de uma absoluta liberdade, maior do que em países socialistas (nestes não há imprensa: há boletins).
É possível fazer imprensa com independência. Se o Canard Enchainé faz, se o Le Monde faz, por que não se pode fazer no Brasil? É uma coisa que pode parecer até brincadeira: quando nós fizemos o Pasquim, num certo momento eu disse pro pessoal: "Olha, eu sou o único comunista daqui". Eu acreditava que aquele negócio fosse mesmo um negócio comunitário, para o bem público. É verdade! Os que se presumiam comunistas (não só eles!) começaram a roubar da maneira mais deslavada, mais escrota possível. Mas que se pode fazer dentro de um contexto capitalista, de um contexto burguês, uma imprensa de alta eficiência social voltada para o bem público, isso se pode, sim! Dei provas: você tem o Le Monde e o Canard Enchainé, duas coisas até bem contrastantes.
- Em Nova York, há um Village Voice, e um canal 13 de televisão orientado como serviço público. Por que no Brasil não existem condições, neste momento ao menos, de se ter uma imprensa alternativa - mas não marginal - de grande penetração na sociedade? Por que não existe isso?
Millôr - Respondo voltando àquela velha anedota de Deus criando o mundo: todo mundo conhece. Alguém (havia mais "alguém" por ali?) reclamou que Deus tinha feito este país maravilhoso, sensacional. O Chile foi feito cheio de terremotos, o Paraguai tinha pântanos incríveis, outro país tinha furacões, o outro tinha desertos e o escambau e, de repente, no Brasil não tinha nada desastroso: florestas maravilhosas, mares maravilhosos, montanhas lindas. Aí Deus parou e disse: "Espera porque você vai ver a gentinha que eu vou botar lá".
- Que tipo de imprensa poderia contribuir melhor pro bem social?
Millôr - Estou pensando, além dos que já citei, no Village Voice. Hoje, um jornal rico. Já é até um jornal do sistema. Talvez hoje, curiosamente, jornais maiores, como o Washington Post e o New York Times, para falar dos dois que sempre se confrontam, ajam mais em função do bem público do que o Village Voice. Mas a imprensa alternativa (e o Village Voice foi um dos seus grandes exemplos), eu acho que ela é a grande solução para a liberdade de expressão. Os jovens precisavam se conscientizar disto. Saber que eles podem fazer um jornal que, ocasionalmente, vai ficar preso ao bairro, mas é importante que o bairro seja protegido, é importante que as misérias do bairro sejam mostradas ao poder público, até que o poder público chegue àquele negócio mínimo (que é o máximo!) que é consertar o buraco da rua. Não se vai partir para a solução do mundo partindo do macrocosmo; precisamos partir do microcosmo, não tenha dúvida nenhuma. Cristo começou com uma cruz só. Essa pretensão do homem de fazer o organograma universal acaba em Delfim Neto, acaba em tecnocracia, acaba em "herói". E chega de heróis. O homem tem que se convencer de que o mais importante de tudo é o dia a dia. O homem vive é todo dia. A maior utopia é a resistência diária. Ser herói é fácil. Herói se faz em três meses. Tem amigos nossos, feito o Gabeira, que fazem três meses de heroísmo, viram heróis de todos os tempos e passam a viver disso. E é aquele negócio, é bicha porque está na moda, elogia mulher porque está na moda, é incapaz de dizer alguma coisa contra a corrente, mesmo que a corrente seja lamentável, odiosa, reacionária.
- E você acha, por exemplo, que os jornais alternativos estão contribuindo pra alguma coisa neste sentido no Brasil?
Millôr - Neste momento estão um pouco em recesso. Mas de qualquer forma estão contribuindo. A maior contribuição que foi dada à imprensa brasileira, nos últimos tempos, foi a imprensa opcional a partir do Pasquim, não tenho dúvida nenhuma. Mas a própria abertura forçou um pouco o recesso no setor. A própria abertura trouxe junto muita vigarice, os caras estão explorando demais o sexo, estão explorando o homossexualismo, o sensacionalismo: pegando os vícios da outra imprensa. A coisa essencial é "vender". Mas continuo achando que a imprensa opcional é uma solução. Bem feita, essa imprensa opcional forçará a grande imprensa a dar cobertura a certos assuntos. Cobra! Envergonha! Força! Aquele negócio: o socialismo força o capitalismo a ceder em certas coisas. Você pega o Manifesto do Partido Comunista do Marx: das oito ou dez exigências básicas do Marx, pelo menos uns seis itens nem Uganda deixa de aplicar hoje em dia. O imposto de renda é um deles.
*
in "A Entrevista" de Millôr Fernandes, Ivan Pinheiro Machado, José Antonio Pinheiro Machado, José Onofre e Paulo Lima, publicado pela L&PM EditoresCf. obras de Millôr Fernandes
1 comentários:
Precisamos da narrativa crítica.
Quadrinhos: mostra-se a vigarice no Brasil
E assim Millôr Fernandes agia.
Eis:
Zé Embuste Dirceu, o prócer do PT. O PT é kitsch. O PT é barango. O mula é aPedeuTa.
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