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"Aprender com índios"

Posted: 29 de abr. de 2011 | Publicada por por AMC | Etiquetas: ,

por Washington Novaes

Na semana passada, foram comemorados tanto o Dia do Índio como os 50 anos da criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, na gestão do presidente Jânio Quadros, por proposta dos irmãos Villas Bôas (Orlando, Cláudio, Leonardo e Álvaro).
Em meio às comemorações, ouviram-se muitas vozes de cientistas, artistas, jornalistas e outros, lamentando que o governo federal não dê sua adesão a um projeto de reconhecimento do Parque pela UNESCO (Comissão da ONU para a Educação, Ciência e Cultura), como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade. E sem algum órgão federal, a UNESCO não pode fazer o reconhecimento. A alegação dos setores diplomático e de segurança, contra o reconhecimento, é de que ele pode restringir a soberania nacional, ao ditar normas para a preservação. Quem puder ajudar a mudar o conceito, será bem-vindo ao projeto, que já reúne o ex-ministro Gilberto Gil, o artista Siron Franco, o ministro do STJ Herman Benjamin e muita gente mais.
O Parque do Xingu, com 2,6 milhões de hectares e 16 etnias, em Mato Grosso, é uma preciosidade – um mar de vegetação e rios preservados, em meio a um oceano de devastação no entorno, para implantar pastos e culturas. Uma biodiversidade riquísssima e que será decisiva para o Brasil, mas que já começa a sentir os efeitos do desmatamento no entorno, com o aumento da temperatura, a poluição dos rios por agrotóxicos (ameaçando os peixes, principal fonte de proteína), a dificuldade para a subida dos rios pelos cardumes, com a implantação de hidrelétricas em rios que correm para o interior da reserva.
Outra ameaças, internas, vêm de um processo não-declarado de aculturação levado adiante pelos governos, através da implantação de redes de água nas aldeias (mudando todo o modo de viver), implantação de sistemas de energia e torres de televisão, que levam as crianças a abandonar seus modos tradicionais e permanecer na frente das telas. Mas, principalmente, através da educação bilíngüe, que permite a essas crianças entender o português e a linguagem da TV. Por isso, ao chegarem à adolescência, querem viver como jovens brancos, de bermuda, camiseta, boné, óculos escuros, chinelos, ouvindo ipods, dançando forró. E nenhum deles quer mais – como se queixam os mais velhos – ser pajé. Porque o aprendizado é longo, de anos, exige sacrifícios, abstinência sexual, trabalho para pagar os mestres; com isso, o jovem não tem tempo para fabricar colares, pulseiras, redes, esteiras e outros produtos que vende aos brancos para ter dinheiro e comprar objetos da nossa tecnologia. Mas ali tudo é regido por espíritos – cada árvore, cada animal, tudo. E o pajé é quem faz a ligação com o mundo dos espíritos, nele ingressa quando necessário para ver que espírito está insatisfeito e gerando problemas. Todas as danças, cantos, pinturas, vestimentas, são relacionadas com esse mundo. Sem pajés, a cultura desaparecerá.
Os mais velhos se queixam da educação bilíngüe, mas o governo não escuta. E os pajés vão desaparecendo. Em 1984, quando o autor destas linhas fez sua primeira série sobre o Xingu para a TV, havia na aldeia waurá, por exemplo, 13 pajés; 22 anos depois, eram apenas 3, já velhos, sem candidatos a substitui-los; foi preciso que o Instituto Rizzo , de Goiânia,com a concordância da FUNAI, se dispusesse a financiar um curso para pajés (de modo a que os jovens pudessem continuar produzindo suas bijuterias etc); e seis pajés se formaram.
Deveríamos prestar atenção às culturas indígenas. Hoje, são 225 etnias (e mais de 100 em processo de reconhecimento) e 734 mil indivíduos (IBGE), com 180 línguas. Mas só quatro grupos têm mais de 20 mil pessoas, nos 109,4 milhões de hectares das reservas, quase 13% do território nacional. Pode parecer muito, mas as reservas são, segundo vários estudos, o melhor formato para a conservação da biodiversidade brasileira.No interior delas, o índice de desmatamento não passa de 1,14%, enquanto nas unidades de conservação federais está em 1,47% e nas reservas estaduais em 7,01%.
Além dessa conservação da biodiversidade, decisiva para o nosso futuro, as culturas indígenas têm vários ângulos que merecem nossa atenção, podem ajudar-nos a encontrar novos formatos nesta crise do padrão civilizatório que vivemos. No Xingu, por exemplo, onde arqueólogos e antropólogos já registraram vestígios da ocupação há mais de mil anos, é preciso prestar atenção à organização social e política, enquanto a cultura está preservada. Ali, como não há delegação de poder, o chefe não manda, não dá ordens; ele é o que sabe mais da história e da cultura do seu povo, da divisão do trabalho, é o grande mediador de conflitos – mas não dá ordens. E sem a delegação é impossível a dominação de um grupo por outro, ou de um indivíduo por outro – todos são igualmente livres, passam a vida sem receber ordem de ninguém. Também homem não dá ordem à mulher, e vice-versa.
Cada indivíduo é auto-suficiente, sabe fazer tudo de que precisa – sua casa, sua roça, plantar e colher, fabricar os instrumentos de trabalho, pescar e caçar, identificar na natureza espécies úteis. Outro luxo – não depender nunca de ninguém. Apontam, todos esses formatos, em direção a utopias humanas. Ainda com a sabedoria de não permitir que se formem grandes aglomerados humanos, que podem prejudicar o entorno. Quanto uma aldeia chega a algumas centenas de pessoas, subdivide-se.
Não voltaremos a ser índios- não temos competência para isso. Mas podemos aprender com eles. E é nisso tudo que precisamos pensar quando se homenageia o índio.

publicado no jornal O Popular
(29.04.2011)

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