Numa entrevista sem papas na língua ao Diário de Notícias, Boaventura de Sousa Santos não poupa Cavaco Silva, o PSD, nem José Sócrates pela crise política que precipitou o pedido de assistência financeira à UE e ao FMI.
O sociólogo e professor catedrático lamenta que o Presidente não tenha sido capaz de gerar um entendimento entre os partidos que permitisse evitar a crise política. Acusa o PSD de irresponsabilidade pelo chumbo do PEC IV e sublinha que o primeiro-ministro não devia ter negociado o documento com Bruxelas sem ter garantido o apoio político em Portugal.
«Houve realmente uma irresponsabilidade política da parte do PSD, é preciso pôr as coisas claramente. O PSD, nos últimos 16 anos, esteve dois anos no poder. E nós sabemos, porque veio na imprensa, que numa reunião do PSD alguém disse ao Passos Coelho: "Vai haver eleições, ou legislativas ou internas. Portanto, ou tu avanças para eleições legislativas, ou então sais do mando do PSD".»
Para ler na íntegra, clicando no link de expansão do texto.
- Há cerca de quatro meses, numa entrevista ao Diário de Notícias, dizia que com estas medidas de austeridade Portugal não iria pagar a sua dívida, como, também de resto, segundo a sua opinião, a Grécia e a Irlanda vão ter dificuldades, que viria um PEC IV, antecipou o pedido de ajuda português, que foi conhecido esta semana. Era muito fácil prever tudo isto ou é preciso ser-se um cientista social?
- Acho que é fácil se olharmos... Claro, talvez ser cientista social ajude, porque analisamos a situação dos outros países, porque isto é uma história anunciada. Aquilo por que nós estamos a passar e as receitas que vêm da ajuda externa - normalmente ligadas ao Fundo Monetário Internacional, neste caso articulado com a União Europeia - têm sido praticadas desde meados da década de 80, sobretudo, sempre com o mesmo receituário: sempre as mesmas ideias, sempre os mesmos planos de austeridade, sempre as mesmas condicionalidades. Ou seja, são as condições para que o FMI, que, no fundo, é uma agência de segurança para os credores...
- Mas nada disto seria preciso se Portugal não estivesse na situação em que está, ou seja, se nós não estivéssemos a viver acima das nossas possibilidades e se a nossa economia não fosse tão débil.
- Não aceito esse diagnóstico. Isso é o diagnóstico dominante neste momento: nós vivermos acima das nossas possibilidades; tanto se pode dizer isso como dizer o contrário. A nossa economia tem problemas de competitividade, obviamente - é reconhecido por todos. E esses problemas de competitividade aumentaram exactamente com o euro, fundamentalmente porque o euro é uma moeda forte, uma economia com alguma debilidade, tinha uma especialização industrial relativamente limitada. A Europa quando entrou no euro, ao mesmo tempo abre-se aos mercados mundiais. Naturalmente que vão entrar sapatos e têxteis da China na Europa, que era aquilo que Portugal produzia. Foi aí que começou a disparar o nosso défice comercial, ao contrário da Alemanha, que produzia aviões e comboios de alta velocidade tinha a possibilidade de os vender no mercado mundial. Portanto, o euro foi um grande negócio para a Alemanha, foi um péssimo negócio para os países periféricos e para as economias mais débeis, da qual, eventualmente, a Grécia ainda será mais débil do que a de Portugal. Há um problema de competitividade, mas que só se resolve de uma maneira: crescendo. E o problema das políticas de austeridade é que não nos permitem crescer, e, actualmente, elas vão ser ainda piores do que estavam antes.
- Esse é o principal ponto que nós temos de acautelar no contrato que vamos fazer com o FMI e com o Fundo Europeu?
- Absolutamente. Não acredito que eles sejam sensíveis a isso, porque dominam as políticas de austeridade, de consolidação orçamental. Neste momento, nós devíamos ser mais flexíveis no que respeita ao défice orçamental, para permitir que a economia crescesse, inclusivamente com investimento público, que é o que os outros países fizeram, caso do Brasil, que desobedeceu ao Fundo Monetário Internacional e desenvolveu um processo de crescimento - tal e qual como a Argentina - da ordem dos seis, sete ou oito por cento ao ano. Fundamentalmente, é uma política contrária àquela que está a ser proposta agora, que é uma política de austeridade e que, agora com a subida da taxa de juro de referência do Banco Central, vem...
- Mas era imprescindível, não era possível adiar mais este pedido de resgate?
- Neste momento tínhamos um problema de liquidez. E é evidente que, inclusivamente, haveria outras soluções, que a certa altura foram faladas. Eventualmente, mesmo no quadro europeu, Portugal podia ter encontrado outras soluções, nomeadamente fora da Europa, com o apoio do Brasil, de Angola, eventualmente da China. Haveria possibilidade de empréstimos fora do marco europeu; isso não está proibido por ninguém. Nós precisávamos era de líderes que conseguissem pensar "out of the box", que tentassem soluções inovadoras, porque se for no quadro da União Europeia realmente não há alternativa, que é exactamente isso que nos vêm dizendo. Mas há!
- Portanto, temos assegurada liquidez para fazer funcionar a economia, o tecido bancário. Os portugueses podem, neste momento, estar mais descansados?
- Não, de maneira nenhuma! Devem estar menos descansados, porque o que se passou agora, fundamentalmente, foi para aliviar um pouco a tensão, e Portugal, realmente, precisava de tempo. Porque o grande problema que havia na Europa era este: era de saber onde é que se vai traçar a linha vermelha para não entrar mais o FMI. Porque, realmente, a própria Comissão Europeia tem muitas ambivalências...
- E onde é que ela vai estar? Vai estar antes da Espanha ou depois da Espanha?
- Inicialmente era Portugal. Não vamos deixar entrar em Portugal, paramos aqui e vamos encontrar uma solução. Só que, devido aos compromissos eleitorais da senhora Merkel e à instabilidade política em Portugal, também isto foi adiado para mais tarde, para Junho. E, portanto, não foi possível a Portugal que a linha vermelha ficasse por aqui. Agora a ideia é de que está à porta da Espanha. E analisando o que os colegas espanhóis economistas e sociólogos vão publicando sobre isso, eles sabem que a Espanha não está de modo nenhum livre de um ataque especulativo semelhante àquele que Portugal recebeu nos últimos meses.
- E o que é que esta situação pode prognosticar para a saúde da União Europeia a curto, médio prazo?
- Penso que é uma receita de desastre. Este projecto europeu está falido nesta forma: se vir bem, realmente o projecto europeu nasceu com um projecto de solidariedade. Depois nós vamos dizer isso que se diz hoje: Portugal vive acima das suas posses. Não sei o que é que isso significa. A partir de 2000, foi um crescimento muito limitado, e até, como sabemos, o euro, de alguma maneira, estancou um bocado a possibilidade que Portugal estava a ter de aproximação à Europa. Mas penso que efectivamente nós tínhamos neste período alguma possibilidade de recuperação. Na situação actual, eu não penso que vá haver solução para os países periféricos da Europa. Inclusivamente, nós podemos dizer que os tratados fundadores da Europa foram violados porque havia não só um contrato de solidariedade mas também um contrato de igualdade entre os países. Se vir bem, ao longo destes últimos meses, quem é que falou em nome da Europa? Foi a Comissão Europeia? Não, foi a senhora Merkel, ou seja, quem manda. Manda quem tem dinheiro. É a mesma lógica do FMI, porque o poder de voto dos Estados Unidos ou da Europa no FMI é muito superior ao de outros países. Aliás, há aquelas contradições do Fundo actualmente. Como ele foi construído há uns anos, a China, por exemplo, tem tanto poder de voto quanto a Bélgica, o que é uma coisa completamente ilógica neste momento. Portanto, quem tem dinheiro manda. E manda segundo as suas próprias conveniências, do seu país, na medida em que entramos num sistema em que realmente os interesses da Alemanha ditam os interesses da Europa. E isto pode virar-se não só contra a Alemanha, porque acaba por se virar, mas também destrói o projecto europeu. Há que refundá-la. Eu até sou um federalista convicto, não sou um isolacionista.
- Refundá-la em que sentido?
- Refundá-la no sentido de que a Europa, se quer ser hoje um bloco económico forte no mundo, tem de significar uma alternativa protegida ao dólar. Se nós quisermos ver de onde vem esta crise, ela veio de um ataque especulativo do dólar ao euro.
- Com as agências de rating também a ajudar?
- Absolutamente! Aliás, como sabe, acabou de ser proposta uma acção criminal contra as agências de rating, uma queixa-crime na Procuradoria-Geral da República, à semelhança daquelas que há na Espanha e que há nos próprios Estados Unidos. Porque elas manipulam, obviamente, os níveis de risco de um país para beneficiar os seus clientes, os clientes que são accionistas destas empresas e que ganham, naturalmente. Baixa o risco, aumentam os juros. Os juros de quem? Daqueles que são accionistas das empresas. Logo são lucros fabulosos. É por isso que eu digo que o capitalismo financeiro é muito mais transparente do que o capitalismo industrial, porque no capitalismo industrial, como eu digo, cria-se emprego, os trabalhadores têm os seus benefícios, têm o seu emprego.
- No capitalismo financeiro está tudo à vista?
- Está tudo à vista, então! Portugal pede ajuda, os bancos recusam-se a financiar o Estado, as suas cotações estão baixas, Portugal pede ajuda...
- Mas durante muito tempo andaram a financiar o Estado através do Banco Central Europeu, onde iam buscar juros mais baixos e depois emprestavam com juros mais altos.
- Obviamente obtendo os lucros. O capital financeiro não é leal ao País. Não há nenhum conceito de lealdade ao País, não há patriotismo nenhum! A lógica é uma lógica financeira: enquanto dá lucro, financiam o Estado. Estava a deixar de lhes dar lucro devido à baixa de ratinge à impossibilidade de recorrer ao Banco Central Europeu, e obviamente estancam de um momento para o outro o crédito ao Estado. E é isso que leva Sócrates, no fundo, a pedir a ajuda.
- Pediu tarde demais?
- Ele não podia fazer outra coisa. De um ponto de vista político, de facto temos de ver que o grande problema e a grande irresponsabilidade... Tenho de o dizer aqui: houve realmente uma irresponsabilidade política da parte do PSD, é preciso pôr as coisas claramente. O PSD, nos últimos 16 anos, esteve dois anos no poder. E nós sabemos, porque veio na imprensa, que numa reunião do PSD alguém disse ao Passos Coelho: "Vai haver eleições, ou legislativas ou internas. Portanto, ou tu avanças para eleições legislativas, ou então sais do mando do PSD."
- Mas acha que a rejeição do PEC IV jogou aqui um papel importante nesta crise?
- Absolutamente. Ele tinha sido realmente negociado. Nós vamos agora ver quais terão sido as intenções de Sócrates de não dizer ao não dizer. Eu acredito - tenho seguido um pouco a linha de Marcelo Rebelo de Sousa - que é o feitio dele, que não houve aqui nenhuma estratégia para provocar a crise. Mas a verdade é que ele tinha conseguido um consenso da Merkel, lá está, dentro de um modelo que eu não aceito. Mas era o modelo que Sócrates aceitou, de que aqui este PEC IV podia ser o tal sinal de que a linha vermelha estava tracada à porta de Portugal, de, portanto, "Vocês aqui não entram".
- Mas acha que teríamos tido aí a possibilidade de evitar o recurso à ajuda externa?
- Acho que se não houvesse crise política, eventualmente tínhamos ganho tempo. Porque Portugal precisava só de tempo até se negociar com mais força o projecto da Comunidade Europeia, para se defender dos ataques especulativos ao euro. Porque, no fundo, o que está aqui é realmente uma estratégia mundial dos sistemas financeiros mundiais que dependem, que estão muito na mão, hoje, dos Estados Unidos, na medida em que os Estados Unidos praticamente só têm capitalismo financeiro, uma vez que em termos de capitalismo industrial a China já é a segunda economia, e calcula-se que, por 2030, 2050, pode ser a primeira economia do mundo. Portanto, eles sabiam muito bem que um euro estável, com alguma capacidade para ser no futuro também uma moeda de reserva internacional, competitiva com o dólar, seria o fim do dólar! Porque o dólar mantém-se com esta coisa maravilhosa que os Estados Unidos têm: imprimem moeda quando querem, como eles têm feito várias vezes, para resolver os seus problemas económicos e, naturalmente, beneficiando da dívida da China. A Europa não podia fazer isso, daí era preciso pôr em ordem a Europa. Quem é que está a pôr em ordem a Europa? As agendas de iating. Onde é a sede de todas elas? Nova Iorque. Ao serviço de quem estão? Do capitalismo financeiro norte-americano. É transparente.
- Se o primeiro-ministro queria evitar esta crise, não deveria ter agido de outra forma quando apresentou o pacote? Não deveria ter consultado a oposição, não deveria ter informado previamente o Presidente da República, dando-lhe mais espaço?
- Devia, sem dúvida. Eu acho que o devia ter feito. E se não o fez, há duas hipóteses: ou é o seu feitio e a sua maneira de agir enessa altura mostrou uma debilidade, porque os defeitos pessoais de um líder em momentos decisivos revelam-se -, e se ele quis dar uma ideia de grande rapidez e de grande eficiência, contando com um acordo que, obviamente, não estava garantido, então foi uma deficiência da sua personalidade política que o armadilhou e, naturalmente, prejudicou o País. Ou, se foi por astúcia, ainda pior; isto não se faz, não se pode brincar com uma astúcia e não se pode, neste momento, brincar com umas eleições antecipadas que, como digo, precipitaram todo o cenário negativo que Portugal tinha.
- O Presidente da República podia ter feito diferente?
- É evidente. É uma pena que tenhamos este Presidente neste momento. Tivemos presidentes extraordinários e de grande capacidade para criar entendimentos, para chamar os diferentes partidos à razão no passado. Não o temos agora. Aliás, era também algo anunciado desde o discurso de tomada de posse do Presidente Cavaco Silva de que ele estava de alguma maneira envolvido em tudo isto e que queria uma solução que fosse do tipo daquelas que nós pensamos que devia ser necessária. Ou seja, não passar por uma crise política. Não fez aquilo que devia, omitiu. Acho que foi magistratura por omissão, é o que eu diria.
- Esta semana foi divulgada uma sondagem da Universidade Católica que dá como intenção de voto 39% para o PSD, 33% para o PS. Que alternativas temos aqui em cima da mesa para o imprescindível governo de maioria que hoje faz o consenso na sociedade portuguesa?
- Penso que, realmente, as eleições neste momento podem não ser esclarecedoras e não vão ser esclarecedoras. Aquilo que eu estou a dizer, penso que é reflectido em muitos cidadãos. É evidente que nós podemos, no que respeita aos dois partidos principais, atribuir as culpas ao PS, mas também ao PSD. E eu penso que os portugueses pensam exactamente nessa dualidade, e é isso que reflecte o que está nas sondagens. Não acredito que nenhum deles possa ter uma vitória esmagadora nestas eleições. E assim vai haver obrigatoriamente um entendimento pós-eleitoral.
- Mas à direita, à esquerda? Que alternativas é que vê aqui para o País?
- Preferia à esquerda. Mas penso que as condições não estão dadas para isso. Penso que terá de haver outros líderes no lado do PS. Sou daqueles que pensam que pode haver, e deve haver, uma alternativa à esquerda. Só que, em termos de perspectiva europeia e mais global, fora da nossa crisezinha, isto é o fim ou quase o fim da chamada Terceira Via da social-democracia. Ou seja, o Tony Blair e todos aqueles líderes socialistas que na Grécia, em Portugal, na Espanha, seguiram esta ideia de que nós não podemos trazer uma alternativa solidária, mesmo que seja dentro do capitalismo mas na tradição da social-democracia, porque nós temos de obedecer fundamentalmente à lógica do neoliberalismo e dos mercados livres e do comércio internacional. Esta linha da chamada Terceira Via, que corresponde ao colapso, em meu entender, da social-democracia, está a colapsar na Grécia, porque é evidente que o Partido Socialista não tem nenhuma possibilidade de resolver o problema, pode colapsar em Portugal porque se está a ver também que não há nenhuma solução, e, eventualmente, pode vir também a colapsar na Espanha. Nós estamos a ver que toda esta tradição de uma alternativa está em crise. Agora, é evidente que a Europa não vai ficar parada, os cidadãos não vão ficar parados e vão surgir outras alternativas. Certamente com outros líderes, com outros líderes do PS. Não acredito que com o actual líder isso seja possível. E não acredito também que o problema se resolva com uma aliança entre o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, por mais que eu até pense que é importante que eles se entendam e que é tarde que o façam.
- Vê aqui a possibilidade de alguns frutos neste diálogo entre o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista?
"Uma alternativa de esquerda há-de também integrar o PS"
- Vejo, se eles forem preparatórios para uma alternativa de esquerda que, em meu entender, há-de também integrar o PS.
- Sem José Sócrates?
- Não pode ser a Terceira Via, porque a Terceira Via separou-se completamente de todas as outras lealdades de esquerda e, pelo contrário, fez uma grande viragem para a direita. Tony Blair acaba por ser hoje um pregador cristão por esse mundo fora!
- É uma coisa de médio prazo?
- É uma coisa de médio prazo, porque os partidos também têm a sua maturação. E aí vamos ver o que vai ser no futuro: se nós estamos no século XXI ou se estamos ainda no século XX das esquerdas. Porque se estivermos ainda no século XX, no momento em que houver uma alternativa que inclua o PS, o PC não entra, e, portanto, este entendimento Bloco de Esquerda/PC pode ficar pelo caminho.
- O PS também pode perder alguma dimensão eleitoral?
- Exactamente! Pode perder, obviamente. Agora, eu penso que, como não há solução do outro lado... Sócrates não é, realmente, o líder para um entendimento mais à esquerda. Passos Coelho dá a ideia de que não era um líder que estava preparado para isto. Aliás, o programa ainda estava a ser elaborado, portanto...
- Olha com alguma desconfiança para a classe política portuguesa, para os líderes dessa classe política?
- Eu não gosto de fazer a diabolização da classe política no seu conjunto, fundamentalmente porque não podemos pensar que nós temos uma democracia muito robusta, absolutamente consolidada, porque passámos metade do século xx em ditadura. E por vezes ouve-se coisas aí na comunicação social que são assustadoras. Ideias de união nacional, de salvador, ideias de que é melhor entregar as finanças a uma pessoa altamente esclarecida como se fez com Salazar... Isto é preocupante!
- Vê sinais da emergência de um novo tipo de líder?
- Eu penso que temos de passar por uma crise política mais profunda.
- Em Portugal?
- Em Portugal e na Europa em geral. Ainda ontem [7 de Abril], em Madrid já estavam os jovens também de novo a manifestarse. E aqui em Portugal. São as duas periferias da Europa que estão a arder, digamos assim. A Europa sempre teve duas periferias: a do Norte de África e a da Grécia até à Irlanda, e o Mediterrâneo a unir-nos. Estas duas periferias estão a arder: uma com acções de rua e grande transformação política, a outra, por enquanto, através de uma crise política que está ainda no domínio das instituições do Estado. Mas não é de excluir a hipótese de que os cidadãos destes países se revoltem pacificamente e digam "basta". Não faz sentido que Portugal se empobreça apenas para estes especuladores ganharem tanto dinheiro!
- Vejo que veria isso como algo de positivo.
- Se for pacífico!
- Como a manifestação da "geração à rasca"?
- Exactamente! É muito positivo. Eu penso que o que é fundamental, o que está a acontecer na Islândia e noutros contextos que temos visto no mundo - como aconteceu no Brasil, por exemplo, no final dos anos 80 - é exactamente esta ideia de chamar a atenção dos políticos para criar uma pressão, porque... O que é que acontece neste momento? É um desequilíbrio entre a pressão que vem de cima, dos mercados, do FMI e da Europa, e a pressão que vem de baixo, ou seja, dos cidadãos! Neste momento não há pressão a partir dos cidadãos. No momento em que surgir uma pressão a partir dos cidadãos, eu digo-lhe que vão surgir outras soluções.
"Nunca me passou pela cabeça ser reitor da universidade"
- Há espaço para investigação nas universidades portuguesas, como diz Mariano Gago, ou ainda é preciso continuar a lutar contra um sistema que não dá espaço, não dá condições e não dá tempo às pessoas?
- Neste momento, desde há uns anos, eu passo mais de seis meses em Portugal. Normalmente, quatro meses. Tenho é depois muitas viagens e compromissos, naturalmente, no resto do mundo. Acho que uma das características mais interessantes do País, e que tem sido menos valorizada, foi o enorme avanço que nós tivemos nos últimos anos honraseja feita ao Mariano Gago - numa política científica, porque temos hoje o País que produz mais doutorados e temos o País que mais cresceu no apoio ao desenvolvimento e à investigação científica.
- Sente que tem o mesmo reconhecimento científico em Portugal que tem lá fora? Ainda há pouco tempo recebeu uma distinção no México. Sente isso?
- Acho que santos de ao pé da porta não fazem milagres. Realmente, a comunidade científica, a sociedade portuguesa, é muito mesquinha, é muito medíocre. Há muitas invejazinhas, coisas pequenas, e por isso eu, há muito tempo, e talvez por isso a minha trajectória científica no estrangeiro...
- Procurou-a ou ela aconteceu?
- Aconteceu e procurei-a, obviamente. Eu achei que era muito importante fazer o trabalho internacional.
- Por causa dessa pequenez do meio académico em Portugal?
- É muito pequeno, é muito invejoso. O facto de uma pessoa não circular nos circuitos do poder - porque eu não o faço... Aliás, hoje temos um "lisboacentrismo" muito ao que nós tínhamos antes, digamos assim. O facto de não estar em Lisboa já é um custo enorme para qualquer intelectual, para qualquer cientista social, e portanto eu saúdo sua iniciativa. Mas como sabe, não é fácil pessoas que não estão no centro de poder, que normalmente têm as suas ligações e seus grupos de amigos, que se citam uns outros e que criam esse reconhecimento... Eu procurei jogar o difícil. Isto é, que eu avaliado lá fora por colegas que o meu trabalho e se pautem apenas por e não por pequenas invejas ou por pequenas querelas que não têm nenhum interesse. E, felizmente, o reconhecimento não me tem faltado.
- Nunca pensou em radicar-se lá fora?
- Quando acabei o doutoramento, fui a entrevistas e estive mesmo para ser contratado pela Universidade de Nova Iorque. Porque tinha realmente a ideia de que, se continuasse a ditadura aqui em Portugal, iria certamente fixar-me nos Estados Unidos e fazer exactamente isso: continuar por lá. Mas entretanto, no final de 73, voltei a Portugal; as coisas deram-me aqui a possibilidade de ir para a Faculdade de Economia, que eu praticamente fundei, digamos assim, e dei o meu primeiro curso exactamente no ano em que ocorreu a revolução de 25 de Abril. E, depois da revolução, disse imediatamente aos meus colegas de Nova Iorque que ia ficar em Portugal.
- Sente que vai deixar um legado importante no estudo da sociologia?
- Quem pensa nisso não deixa. Aliás, porque se ele deixasse, era capaz de vir de lugares que eu não posso imaginar agora. Não era daqueles que me estão mais próximos, provavelmente, é daqueles onde eu vejo que me citam por toda a parte, hoje, no mundo. E basta ver as entradas no Google, basta ver como é que o meu trabalho hoje é recebido; essa gente não me conhece, conhece aquilo que eu vou escrevendo. Esse legado difuso é que contribui realmente para o enriquecimento das ciências sociais no mundo. E foi por isso também que fiquei muito feliz por ter sido a primeira vez que foi dado a um cientista social o Prémio México de Ciência e Tecnologia, porque nesta área ibero-americana nunca um cientista social tinha ganho este prémio. Foi uma cumulação interessante. Tal como também foi a primeira vez que ganhei este prémio dos Estados Unidos, o Kalven Jr. Prize, da Associação Americana de Direito e Sociedade, porque também nunca nenhum estrangeiro tinha ganho este prémio. Portanto, é a recompensa do trabalho. Fico satisfeito por isso.
- Já teve convites para ingressar na vida política activa?
- Não, seriamente não. Houve algumas conversas que me foram feitas...
- Com partidos de esquerda, PS, BE?
- Sim, com partidos à volta dessa área.
Sobre Boaventura de Sousa Santos
Nasceu em Novembro de 1940. Formado em Coimbra e doutorado em Yale (EUA), é um sociólogo reconhecido mundialmente, com várias condecorações no currículo, mais recentemente os prémios Harry J. Kalven Jr. (EUA) e Ciência e Tecnologia (México). Dá aulas em universidades de Portugal, França, Estados Unidos e Brasil, entre outras. É Prof. catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
Director do Centro de Estudos Sociais e Director do Centro de Documentação 25 de Abril, também em Coimbra.
publicado no Diário de Notícias de 10.Abr.2011
entrevistador: João Marcelino
via Univ. Minho
20110410255ae7.pdf (7747190 bytes)
Alternativas para a crise portuguesa
por Boaventura de Sousa Santos
Começo por descrever os próximos passos do aprofundamento da crise, para de seguida propor uma estratégia de saída. O que neste momento está se tramando como solução para a crise que o país atravessa não fará mais que aprofundá-la. Eis o itinerário. A intervenção do FMI começará com declarações solenes de que a situação é muito mais grave do que se tem dito (o ventríloquo pode ser o líder do PSD, se ganhar as eleições). As medidas impostas serão a privatização do que resta do setor empresarial e financeiro do Estado, a máxima precarização do trabalho, o corte nos serviços e subsídios públicos. Tudo isso pode levar, por exemplo, a que o preço dos transportes ou do pão suba de um dia para o outro para o triplo, demissões de servidores públicos, cortes nas aposentadorias e salários (a começar pelos abonos de férias e de Natal, um “privilégio” que os jovens do FMI não entendem) e a transformação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) num serviço residual.
Tudo se fará para obter o seal of approval do FMI, que restabelece a confiança dos credores no país. O objetivo não é que pague as dívidas (sabe-se que nunca as pagará), mas antes que vá pagando os juros e se mantenha refém da camisa de forças, para mostrar ao mundo que o modelo funciona.
Este itinerário não é difícil de prever porque tem sido esta a prática do FMI em todos os países onde tem intervindo. Rege-se pela ideia de que one size fits all, ou seja, que as receitas são sempre as mesmas, uma vez que as diferentes realidades sociais, culturais e políticas são irrelevantes
ante a objetividade dos mercados financeiros.
Feita a intervenção de emergência – que os portugueses serão induzidos a ver como uma necessidade e não como um certificado de óbito às suas justas aspirações de progresso e de dignidade –, entra o Banco Mundial para fornecer o crédito de longa duração que permitirá “reconstruir” o
país. Ou seja, para assegurar que os mercados e as agências de rating ditarão ao país o que pode e não pode ser feito. Serão ocultadas as seguintes irracionalidades:
Que o modelo imposto ao mundo está falido na sua sede, os EUA; que o FMI faz tudo para servir os interesses financeiros norte-americanos, até para se defender do movimento que houve no Congresso para extingui-lo; que o maior credor dos EUA, a China, e segunda maior economia do mundo, tem o mesmo poder de voto no FMI que a Bélgica; que as agências de rating manipulam a realidade financeira para proporcionar aos seus clientes “rendas financeiras excessivas”.
Claro que pode haver complicadores. Os portugueses podem revoltar-se. O FMI pode admitir que fez um juízo errado e reverter o curso, como aconteceu na crise do Leste da Ásia, em que as políticas do FMI produziram o efeito contraproducente, como reconhece Jagdish Bhagwati, um respeitado economista e free trader convicto, em In Defense of Globalization. Se tal acontecer, não é sequer imaginável que o FMI indenize o país pelo erro cometido.
Perante este agravamento concertado da crise, como buscar uma saída que restitua aos portugueses a dignidade de existir? Não discuto aqui quem serão os agentes políticos democráticos que tomarão as medidas necessárias, nem o modo como os portugueses se organizarão para pressioná-los nesse sentido. As medidas são as seguintes:
Realizar uma auditoria da dívida externa, que permita reduzi-la à sua proporção real: por exemplo, descontando todos os efeitos de rating por contágio de que fomos vítimas nos últimos meses.
Resolver as necessidades financeiras de curto prazo contraindo empréstimos, sem as condicionalidades do FMI, junto de países dispostos a acreditar na capacidade de recuperação do país, tais como a China, o Brasil e Angola.
Tomar a iniciativa de promover um diálogo Sul-Sul, depois alargado a toda a Europa, no sentido de refundar o projeto europeu, já que o atual está morto.
Promover a criação de um mercado de integração regional transcontinental, tendo como base a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e como carros-chefes Brasil, Angola e Portugal.
Usar como recurso estratégico nessa integração a requalificação da nossa especialização industrial, em função do extraordinário avanço do país nos últimos anos nos domínios da formação avançada e da investigação científica.
Inconformismo e Criatividade
por Boaventura de Sousa Santos
É hoje consensual que o capitalismo necessita de adversários credíveis que atuem como corretivos da sua tendência para a irracionalidade e para a auto-destruição, a qual lhe advém da pulsão para funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais anti-sociais e injustas que sejam as consequências. Durante o século XX esse corretivo foi a ameaça do comunismo e foi a partir dela que, na Europa, se construiu a social-democracia (o modelo social europeu e o direito laboral). Extinta essa ameaça, não foi até hoje possível construir outro adversário credível a nível global.
Nos últimos trinta anos, o FMI, o Banco Mundial, as agências de rating e a desregulação dos mercados financeiros têm sido as manifestações mais agressivas da pulsão irracional do capitalismo. Têm surgido adversários credíveis a nível nacional (muitos países da América Latina) e, sempre que isso ocorre, o capitalismo recua, retoma alguma racionalidade e reorienta a sua pulsão irracional para outros espaços. Na
Europa, a social-democracia começou a ruir no dia em que caiu o Muro de Berlim. Como não foi até agora possível reinventá-la, o FMI intervém hoje na Europa como em casa própria.
Poderá surgir em Portugal algum adversário credível capaz de impedir que o país seja levado à bancarrota pela irracionalidade das agências de rating apostadas em produzir a realidade que serve os interesses dos especuladores financeiros que as controlam com o objetivo de pilhar a nossa riqueza e devastar as bases da coesão social? É possível imaginar duas vias por onde pode surgir um tal adversário. A primeira é a via institucional: líderes democraticamente eleitos reúnem o consenso das classes populares (contra os media conservadores e os economistas encartados) para praticar um ato de desobediência civil contra os credores
e o FMI, aguentam a turbulência criada e relançam a economia do país com maior inclusão social. Foi isto que fez Nestor Kirchner, Presidente da Argentina, em 2003. Recusou-se a aceitar as condições de austeridade impostas pelo FMI, dispôs-se a pagar aos credores apenas um terço da dívida nominal, obteve um financiamento de três bilhões de dólares da Venezuela e lançou o país num processo de crescimento anual de 8% até 2008. Foi considerado um pária pelo FMI e seus agentes. Quando morreu, em 2010, o mesmo FMI, com inaudita hipocrisia, elogiou-o pela coragem com que assumira os interesses do país e relançara a economia.
Em Portugal, um país integrado na UE e com líderes treinados na ortodoxia neoliberal, não é crível que o adversário credível possa surgir por via institucional. O corretivo terá de ser europeu e Portugal perdeu a
esperança de esperar por ele no momento em que o PSD, de maneira irresponsável, pôs os interesses partidários acima dos interesses do país.
A segunda via é extra-institucional e consiste na rebelião dos cidadãos inconformados com o sequestro da democracia por parte dos mercados financeiros e com a queda na miséria de quem já é pobre e na
pobreza de quem era remediado. A rebelião ocorre na rua mas visa pressionar as instituições a devolver a democracia aos cidadãos. É isto que está ocorrendo na Islândia. Inconformados com a transformação da dívida de bancos privados em dívida soberana (o que aconteceu entre nós com o escandaloso resgate do BPN), os islandeses mobilizaram-se nas ruas, exigiram uma nova Constituição para defender o país contra aventureiros financeiros e convocaram um referendo em que 93% se manifestaram contra o pagamento da dívida. O parlamento procurou retomar a iniciativa política, adoçando as condições de pagamento mas os cidadãos resolveram voltar a organizar novo referendo, o qual terá lugar a 9 de Abril. Para forçar os islandeses a pagar o que não devem as agências de rating estão a usar contra eles as mesmas técnicas de terror que usam contra os portugueses.
No nosso caso é um terror preventivo dado que os portugueses ainda não se revoltaram. Alguma vez o farão?
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