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Entrevista a Márcio Debellian: «Um brasileiro pode estar na Amazónia, mas vai ter um radiozinho de pilhas»

Posted: 22 de mai. de 2011 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , , , , , ,

Palavra (En)cantada - (trailer oficial)

Palavra (En)Cantada, passa logo à tarde na RTP2, quando forem 15h e é imperdoável não ver [PARA ASSISTIR AQUI]. É um documentário delicioso acerca do papel íntimo que a palavra desempenha na música brasileira, onde participam Adriana Calcanhotto, Antônio Cícero, Arnaldo Antunes, BNegão, Chico Buarque, Ferréz, Jorge Mautner, José Celso Martinez Correa, José Miguel Wisnik, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Lenine, Luiz Tatit, Maria Bethânia, Martinho da Vila, Paulo César Pinheiro, Tom Zé e Zélia Duncan. Tem ainda a particularidade de resgatar imagens de arquivo sublimes de Dorival Caymmi, Caetano Veloso e Tom Jobim.
Sinopse:
É um documentário de longa-metragem (86min), que percorre uma viagem na história do cancioneiro brasileiro com um olhar especial para a relação entre poesia e música. Dos poetas provençais ao rap, do carnaval de rua aos poetas do morro, da bossa nova ao tropicalismo, Palavra (En)cantada passeia pela música brasileira até os dias de hoje, costurando depoimentos de grandes nomes da nossa cultura, performances musicais e surpreendente pesquisa de imagens.
A maioria das entrevistas foi realizada na casa dos entrevistados, em atmosfera intimista, com o registro de declamações e canções especialmente para o documentário. Poemas de Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst e pérolas de nossos grandes compositores conduzem o roteiro do Palavra (En)Cantada. Entre as músicas do filme estão Choro Bandido (Chico Buarque/Edu Lobo), Alegria, Alegria (Caetano Veloso), Alvorada (Cartola), História do Brasil (Lamartine Babo), Inclassificáveis (Arnaldo Antunes), Fábrica do Poema (Adriana Calcanhotto/Waly Salomão), 2001(Tom Zé/Rita Lee) e O Mar (Dorival Caymmi).

O documentário, dirigido por Helena Solberg, estreou nas salas brasileiras a 13 de Março de 2009 e, nesse ano, foi o 4º documentário mais visto no país, tendo vencido o prémio 'Melhor Documentário'  no Festival de Cinema do Rio de Janeiro do ano passado.


O Hugo Gonçalves conversou com Márcio Debellian, o autor da ideia, guionista e produtor, acerca dessa viagem pelo cancioneiro brasileiro, na tentativa de ajudar a «perceber porque é a MPB tão gostosa, safada e bem cantada».
Segue a entrevista, via Skype, com o economista carioca que, quando deu por si, estava no cinema. Tudo «por causa da música». E de Maria Bethânia. Para ler na íntegra clicando no link a baixo, juntamente com a review do documentário, publicada por altura da sua estreia no Brasil, em Abril de 2009.



[ENTREVISTA]

Um dos mistérios da música brasileira é a sua qualidade e a forma como letra e música encontram tantas vezes o namoro perfeito. Descobriste qual era esse mistério com o teu documentário?

Essa não era a pretensão inicial do filme. Mas fomos chegando próximo desse mistério. Uma das frases que escolhemos para abertura do filme é de um poema de Augusto de Campos: "Estou pensando no mistério das letras de música tão frágeis quando escritas, tão fortes quando cantadas." Só lá chegámos durante o processo, não pensei, "vou mergulhar nesse mistério", foi algo mais afectivo, a paixão pela música e poesia, a soma de afectos dos entrevistados, da directora [Helena Solberg], dos pesquisadores. Fui parar no cinema por causa do afecto pela música. E foi ela que também me aproximou do universo literário.

No filme há um lado mais académico, através dos especialistas entrevistados, e outro mais emocional, trazido pelas palavras dos músicos. Qual é a diferença?

Fomos enlaçando todos os depoimentos e percebendo que cada músico se aproximara da literatura e da música de forma diferente, cada um tem a sua história pessoal. Lirinha, por exemplo, fala do sítio do avô dele, que era cantador. Com os artistas tínhamos o universo pessoal de cada um deles pulsando nas palavras. E mesmo os académicos com quem falámos são todos poetas ou compositores ou músicos. Foram eles que deram uma forma, que enlaçaram tudo, foram os pilares de entendimento do filme.

Um desses académicos, José Miguel Wisnick, que também é músico, defende que a falta de formação de muitos brasileiros fez com que a música fosse o maior veículo de informação e de transmissão de histórias e de arte, muito mais que a literatura.

A música nunca substituirá a importância do livro, mas o Brasil tem uma tradição oral muito forte. A música é uma arte acessível a todos. Um brasileiro pode estar lá no meio da Amazónia, mas vai ter um radiozinho de pilhas. É a arte mais democrática. E como dialoga muito com a literatura e a poesia, os grandes poetas acabam chegando às pessoas. Muitas vezes elas nem sabem que estão ouvindo João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade ou Fernando Pessoa. Estudei em boas escolas, tive uma educação privilegiada, mas a literatura não me chegou pela escola. Apaixonei-me por Pessoa ouvindo Maria Bethânia. Se você tem 11 anos e está na escola e alguém lhe diz, "O poeta é um fingidor/ finge tão completamente...", aí você quer ir para o recreio, está preocupado com a bagunça que quer aprontar. Mas se é um pouco mais velho e vai num show da Bethânia, no qual ela costura todas as músicas com a poesia de Fernando Pessoa, você é tomado por um arrebatamento que te obriga a sair dali para ir ler Pessoa e mergulhar nesse universo. Há muitos poetas que só descobri em livro depois de ouvi-los em canções. A música abre caminho, não soluciona o problema da educação.

O Lenine diz no filme que a tradição musical brasileira tem base nos trovadores provençais. Vai assim tão longe?

Penso que o Lenine se referia à ideia de andar de cidade em cidade cantando, carregando os instrumentos, que é típica no Nordeste do Brasil, tal como acontecia com os trovadores. Os trovadores eram cronistas, fofoqueiros, contavam histórias, usavam a sátira.

Em Portugal a Amália conseguiu trazer os grandes poetas para o fado, cantou Camões, o que por alguns foi considerado uma heresia. A bossa nova fez a mesma coisa no Brasil?

Sem dúvida que a bossa nova rompeu esse caminho e abriu fronteiras. O Vinicius de Moraes era um poeta sofisticado, um diplomata, e começou a fazer letras para canções. Depois dele houve uma sucessão de grandes poetas trabalhando com música - o Waly Salomão, o Arnaldo Antunes, o António Cícero. Vinicius aproximou a poesia e a música.

No entanto, o Chico Buarque insiste no filme que não é poeta.

Por causa da forma como trabalha. Aquelas palavras que ele escreve acontecem por conta de uma música que pré-existe, são feitas para encaixar com aquela melodia e formar uma canção, esse nó muito subtil da harmonia e da letra. É também uma forma de se resguardar, porque os poetas têm muita inveja, ficam falando dele. Os artistas brasileiros acabam virando pensadores e porta-vozes de questões nacionais. O Caetano Veloso é chamado a dar opinião sobre todos os assuntos importantes. Os estudiosos, os especialistas, os poetas ficam incomodados porque o Chico escreve romances, é um compositor popular e ainda vai ganhar o título de poeta? Se a gente for pensar na coisa mais sublime que a poesia pode nos causar, naquilo que as suas palavras provocam, na sua beleza, então o Chico é um poeta.

Há um lado de divindade nalguns músicos brasileiros, há quase uma idolatria mística. É mais que ser famoso. Como foi lidar com eles durante as entrevistas?

No caso da Bethânia só tínhamos vinte minutos e nessa hora baixa o santo e você tem que trabalhar. O Chico Buarque foi muito generoso, nos convidou para ir na casa dele, e fez umas piadas, disse: "Se é para cantarolar sai mais caro". No momento me pareceu uma situação muito tensa, mas quando vi as imagens era a coisa mais engraçada e simpática. Com estas entrevistas, aprendi a deixar o ídolo no canto dele, a não me aproximar de mais. É trabalho. O fã fica em casa.

Quantas vezes já viste a Maria Bethânia em concerto?

Não tenho noção, no primeiro show que fui, repeti muitas vezes. Concerto de Bethânia passou a ser programinha, se estava um show dela em cartaz, ia lá no domingo, tomar um drink. Se tem, eu estou indo.

E esse teu fascínio pela música da Bethânia também está na origem deste documentário.

Se não houvesse Bethânia não haveria "Palavra (En)cantada". Ela abriu clarões na minha vida. Para o filme foi fundamental. Toda essa paixão, todo esse interesse pela poesia que aprendi com ela, desembocou no filme.

No processo de pesquisa, encontraram imagens importantes e desconhecidas.

Foi fundamental para a construção do filme, que precisava de respirar. Buscámos imagens muito antigas de Carnaval, que não existem aqui. Encontrámos na BBC e na CBS. Conseguimos coisas em França. Quando chegavam essas imagens eu chorava de alegria.

Qual é o fascínio dos brasileiros, dos mais ricos aos mais pobres, pelo Roberto Carlos, e por que não aparece ele no filme?

O Roberto Carlos é o Rei. Aquelas melodias, aquelas letras... É o sentimento do povo brasileiro. Desde que me lembro como gente que Roberto Carlos tem um Especial de fim de ano na TV Globo. Não tem como explicar o amor das pessoas por ele. E só não está no filme porque não topou - a gente convidou. Também não daria para ir lá e fazer uma coisa pequena, ele é muito maior.

Cá ouve-se muita música brasileira. Aí não se ouve música portuguesa.

Não sei porquê. Não sei se é o ritmo, se é o sotaque da língua falada. Não entendo, porque o inglês não tem ligação com a nossa língua e toda a gente sai cantando. Não entendo, nós falamos a mesma língua e soa tão diferente. A televisão abre muito caminho, vocês vêem programas brasileiros há muitos anos, o ouvido fica habituado. Nós não estamos tão acostumados ao vosso português. Mas fico muito feliz que o filme passe aí.

Houve, nos últimos anos, uma explosão de documentários no Brasil, e o cinema brasileiro é bem visto no exterior, realizadores como Fernando Meirelles, Walter Salles ou José Padilha são convidados por Hollywood.

No ano passado, vários filmes passaram da marca de um milhão de espectadores, "Tropa de Elite 2", um filme sobre Chico Xavier, e há muita comédia. O brasileiro procura cada vez mais filmes nacionais. O país está crescendo e a indústria está acompanhando, as políticas de incentivo ao cinema são mais consistentes, há pessoas a trabalhar continuamente, melhoram, os directores podem fazer vários filmes. Começa a haver indústria. E os documentários musicais viraram uma febre. Quando o "Palavra (En)cantada" foi lançado no festival do Rio, competia com sete documentários musicais. E a febre continua, quase sempre focada numa figura musical: Elza Soares, Raul Seixas, Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, Caetano Veloso. Nesse aspecto, este filme é diferente, não se centra apenas numa personagem, é sobre um sentimento, um afecto.

Tim Maia, Cazuza, Elis Regina, Raul Seixas e uns quantos mais morreram cedo. Não há demasiados músicos brasileiros a partir de forma trágica e precoce?

Isso é no mundo inteiro. Há artistas cuja matéria-prima do seu trabalho é o sentimento, as suas entranhas, escavam mais fundo para criar, no coração, no estômago, entrando em regiões que muitas pessoas não se arriscariam. E para lidar com isso metem muito bebida, muita droga, depois o corpinho não aguenta.

O filme fecha com esta frase de Adriana Calcanhotto: "Minha música não quer ser útil, minha música só quer ser música, minha música não quer pouco." Porquê?

É uma música com a qual namorei durante muito tempo e, quando fui entrevistar a Adriana, foi o primeiro tema que pedi para ela tocar, não sabendo bem porquê. Nunca imaginei que fecharia o filme, mas encaixou porque a conclusão, no final, não é minha, é de quem vê o filme, foi uma forma de dizer "tem muita gente falando neste filme, muita coisa dita, mas é você que decide o que sente e o que fica com você. É uma forma de retirar qualquer pretensão ao filme. E também porque é uma música muito feliz. 

publicado no jornal i
 

(...)

Palavra Encantada: um filme de Helena Solberg



A poesia é a maior das artes, sendo capaz de tangenciar todas as outras e mantendo, ainda assim, suas próprias normas, formas e sons. Existe sozinha, dispensa acompanhamentos. O documentário Palavra Encantada faz a poesia dançar pela voz de grandes músicos e poetas brasileiros e nos faz descobrir que nenhum conceito por essas terras consegue ser tão simples.

Para alguns estudiosos e observadores da literatura, a poesia se caracteriza por uma criação artística que existe sozinha: tem suas regras, suas formas, seus sons próprios e estes a fazem plena unicamente em si, podendo dispensar acompanhamentos. É comum que numa roda, reunindo esses mesmos estudiosos e observadores da literatura, lá pelas tantas, pelo quarto copo de vinho, alguém declare a sentença: Chico Buarque, por exemplo, não é poeta, é músico. A partir daí a conversa, antes consenso, vai virar uma discussão sem fim e depois de meses, dois ou três daqueles amantes das letras ainda estarão se odiando mortalmente. Fatalmente vão produzir alguns tratados que não nos tocarão em nada.
Palavra [En]cantada é um filme que ronda o mistério das palavras ditas e entoadas sem chegar perto desse tipo de debate onde um bom e velho veneno da vaidade academicista sempre mata um pouco mais a gente. Dirigido por Helena Solberg, com argumento de Marcio Debellian, o documentário segue uma reflexão a respeito dos momentos em que música brasileira e poesia convergiram.

Através do depoimento de grandes nomes da música nacional, Sodenberg nos leva a fogo brando pela história e escolas da música brasileira; dos morros cariocas à periferia de São Paulo, passando pela Bahia e pelo mangue pernambucano. O documentário parte da idílica existência dos trovadores, aqueles artistas medievais que inventaram a poesia musicada e a espalharam de tal forma que são considerados o marco zero da literatura como hoje a conhecemos. A partir daí nomes como Tom Zé, Lenine, Maria Betânia, Martinho da Vila, Lirinha do Cordel do Fogo Encantado, BNegão e o próprio Chico Buarque, vão falar sobre a presença da poesia em suas canções e dão versões sobre o porque e do como esses encontros acontecem.
O filme traz ainda imagens de arquivo recuperadas, algumas nunca vistas, como as de carnavais na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro e encenações de Morte e Vida Severina pelo grupo de teatro da PUC (o primeiro a montar a peça, em 1965), além de raridades como a entrevista de Caetano Veloso, falando sobre porque combinou na sua música Coca-Cola e Brigite Bardot, e apresentações de repentistas do Nordeste em meados do século passado.
Na junção de todos os seus segundos e coisas ditas, Palavra [En]cantada nos faz descobrir muito mais sobre música, poesia e brasilidade do que muitos foram capazes de fazer. A contribuição é enorme: enfrentar a particularidade do caso nacional, onde a palavra escrita não conseguiu até hoje criar raízes fortes e onde a literatura só pôde se expandir através da oralidade - o que nos torna indivisíveis da maior parte da África - e abre um novo leque de possibilidades para entendermos a absurda riqueza de formas e sons da nossa língua e da nossa música. Solberg e Debellian pariram um filme essencial para quem ainda acredita que a beleza salvará o mundo.

publicado na Obvious Magazine 
(Abril de 2009)


Cf. também

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