Mia Couto em entrevista ao jornal i:
É praticamente inevitável, pela força económica e pela vitalidade do Brasil [que por ele passe o futuro de países como Portugal, mas também Angola e Moçambique]. Não se trata apenas de uma potência económica, mas também cultural e demográfica. O Brasil será a nossa estrela guia, para o bem e para o mal, e eu não vejo problema nenhum nisso. Felizmente, sou de um país pequenino, que não tem pretensão nem nunca teve de ser líder de qualquer coisa.
O escritor acha que a grafia é uma distracção, a crise uma oportunidade e o clima está fora do nosso alcance.
É um dos escritores de língua portuguesa com maior destaque a nível mundial. Pensa que a nossa língua é o nosso maior bem?
Não sei muito bem. Acho que nós provavelmente glorificamos e veneramos esta entidade a que chamamos língua portuguesa. Ela existe num contexto de história, de partilha de saberes, de partilha de culturas, de histórias com "h" minúsculo que me parece que não podem ser separadas. Normalmente, pensamos neste entidade como um corpo que depois se autonomiza e é tratado por linguistas e é objecto de acordos e desacordos. Acho que essa fusão de pequenas histórias, de coisas, vai para além desse corpo a que chamamos língua. É uma carga de sentimento, está incorporado, constitui uma memória genética. Não é que eu não queira celebrar a língua portuguesa como um património que evidentemente é importante e nos coloca no mundo como um corpo colectivo que é a comunidade dos países de língua portuguesa, mas acho que não devemos ficar prisioneiros desse elemento redutor.
O Brasil é visto como uma das grandes potências de futuro e é já uma das maiores economias a nível mundial. É pelo Brasil que passa o futuro de países como Portugal, mas também Angola e Moçambique?
É praticamente inevitável, pela força económica e pela vitalidade do Brasil. Não se trata apenas de uma potência económica, mas também cultural e demográfica. O Brasil será a nossa estrela guia, para o bem e para o mal, e eu não vejo problema nenhum nisso. Felizmente, sou de um país pequenino, que não tem pretensão nem nunca teve de ser líder de qualquer coisa.
Falemos então do acordo, ou desacordo ortográfico. Como natural de Moçambique e falante da língua portuguesa, o que acha deste acordo, que já está em vigor, para o bem ou para o mal?
Não sou um militante contra o acordo. Não me reconheci em algumas da razões que foram invocadas para chegar a este acordo, como por exemplo que este acordo facilitaria um melhor entendimento entre a língua. Sempre li livros do Brasil e com o maior prazer, pelo facto de eles terem uma grafia ligeiramente diferente. Os meus livros e os de Saramago são publicados com a grafia original e nunca ninguém se queixou. Acho inclusivamente que há uma diferença na grafia que só traz valor. Mas não faço guerra ao acordo. As nossas guerras são outras, é perceber porque é que nós, países de língua portuguesa como Portugal ou Moçambique, estamos tão distantes do Brasil, porque é que o Brasil está tão distante de nós. Por que razão é que um filme português no Brasil tem de ser legendado. Porque é que quando eu chego ao Brasil e digo que sou de Moçambique, ninguém sabe onde é ou o que é Moçambique.
É ecologista e biólogo de formação. Diz-se muito que não estamos a tratar bem o nosso planeta. Quais são então os grandes desafios, o que temos que fazer para salvar a Terra?
Há aqui uma fabricação de medo, uma visão de apocalipse na qual eu não alinho e a presunção de que nós somos o centro. A ideia de que o homem tem de proteger o planeta e salvar a natureza é uma concepção quase infantil. O nosso primeiro dever é perceber determinadas coisas que vão muito para além da arrogância do ser humano. Falamos com uma facilidade enorme do clima, das previsões sobre as mudanças climáticas, mas a verdade é que grande parte das razões que regem o nosso clima estão para além do nosso alcance. Por outro lado, as notícias apocalípticas vendem bem. Uma notícia que diga que ainda não sabemos bem os efeitos dos raios ultravioletas ou do dióxido de carbono não vende.
A sua escrita fala muito de sensações, da pele, do ser humano. Numa altura em só ouvimos falar de agências de rating, acha que temos de voltar à nossa essência?
Estamos no caminho errado, mas não sei se o verbo seria "voltar". Temos de avançar e construir uma outra visão do mundo. Aquilo que chamamos "a grande crise" vai ser muito produtiva, porque nos vai pôr perante novas soluções, novas emergências, novos enquadramentos.
Por exemplo, fora dos contextos tradicionais das assembleias e dos partidos, jovens em várias partes do mundo pegaram nas rédeas, usando mecanismos modernos, como a internet, o twitter, o facebook, e criaram um movimento de mobilização. De repente é tudo imprevisível. Não sabemos e temos muito medo de não saber.
Fomos educados para pensar que o mundo é previsível e quando não é ficamos aterrorizadíssimos. Há uma grande alegria de dizer não sei hoje. Temos de reaprender coisas que são básicas, como por exemplo a distinção entre saber e sentir. Valorizamos o saber como coisa masculina e desvalorizamos o sentir como coisa feminina. Isso é absurdo. São fronteiras que arbitrariamente construímos. Não sei onde termina o saber e começa o sentir. São fundamentos do nosso conhecimento que temos de contestar.
Sou um optimista sem esperança. Penso que não chegámos ao fim e há sempre algo a fazer.
Não sei muito bem. Acho que nós provavelmente glorificamos e veneramos esta entidade a que chamamos língua portuguesa. Ela existe num contexto de história, de partilha de saberes, de partilha de culturas, de histórias com "h" minúsculo que me parece que não podem ser separadas. Normalmente, pensamos neste entidade como um corpo que depois se autonomiza e é tratado por linguistas e é objecto de acordos e desacordos. Acho que essa fusão de pequenas histórias, de coisas, vai para além desse corpo a que chamamos língua. É uma carga de sentimento, está incorporado, constitui uma memória genética. Não é que eu não queira celebrar a língua portuguesa como um património que evidentemente é importante e nos coloca no mundo como um corpo colectivo que é a comunidade dos países de língua portuguesa, mas acho que não devemos ficar prisioneiros desse elemento redutor.
O Brasil é visto como uma das grandes potências de futuro e é já uma das maiores economias a nível mundial. É pelo Brasil que passa o futuro de países como Portugal, mas também Angola e Moçambique?
É praticamente inevitável, pela força económica e pela vitalidade do Brasil. Não se trata apenas de uma potência económica, mas também cultural e demográfica. O Brasil será a nossa estrela guia, para o bem e para o mal, e eu não vejo problema nenhum nisso. Felizmente, sou de um país pequenino, que não tem pretensão nem nunca teve de ser líder de qualquer coisa.
Falemos então do acordo, ou desacordo ortográfico. Como natural de Moçambique e falante da língua portuguesa, o que acha deste acordo, que já está em vigor, para o bem ou para o mal?
Não sou um militante contra o acordo. Não me reconheci em algumas da razões que foram invocadas para chegar a este acordo, como por exemplo que este acordo facilitaria um melhor entendimento entre a língua. Sempre li livros do Brasil e com o maior prazer, pelo facto de eles terem uma grafia ligeiramente diferente. Os meus livros e os de Saramago são publicados com a grafia original e nunca ninguém se queixou. Acho inclusivamente que há uma diferença na grafia que só traz valor. Mas não faço guerra ao acordo. As nossas guerras são outras, é perceber porque é que nós, países de língua portuguesa como Portugal ou Moçambique, estamos tão distantes do Brasil, porque é que o Brasil está tão distante de nós. Por que razão é que um filme português no Brasil tem de ser legendado. Porque é que quando eu chego ao Brasil e digo que sou de Moçambique, ninguém sabe onde é ou o que é Moçambique.
É ecologista e biólogo de formação. Diz-se muito que não estamos a tratar bem o nosso planeta. Quais são então os grandes desafios, o que temos que fazer para salvar a Terra?
Há aqui uma fabricação de medo, uma visão de apocalipse na qual eu não alinho e a presunção de que nós somos o centro. A ideia de que o homem tem de proteger o planeta e salvar a natureza é uma concepção quase infantil. O nosso primeiro dever é perceber determinadas coisas que vão muito para além da arrogância do ser humano. Falamos com uma facilidade enorme do clima, das previsões sobre as mudanças climáticas, mas a verdade é que grande parte das razões que regem o nosso clima estão para além do nosso alcance. Por outro lado, as notícias apocalípticas vendem bem. Uma notícia que diga que ainda não sabemos bem os efeitos dos raios ultravioletas ou do dióxido de carbono não vende.
A sua escrita fala muito de sensações, da pele, do ser humano. Numa altura em só ouvimos falar de agências de rating, acha que temos de voltar à nossa essência?
Estamos no caminho errado, mas não sei se o verbo seria "voltar". Temos de avançar e construir uma outra visão do mundo. Aquilo que chamamos "a grande crise" vai ser muito produtiva, porque nos vai pôr perante novas soluções, novas emergências, novos enquadramentos.
Por exemplo, fora dos contextos tradicionais das assembleias e dos partidos, jovens em várias partes do mundo pegaram nas rédeas, usando mecanismos modernos, como a internet, o twitter, o facebook, e criaram um movimento de mobilização. De repente é tudo imprevisível. Não sabemos e temos muito medo de não saber.
Fomos educados para pensar que o mundo é previsível e quando não é ficamos aterrorizadíssimos. Há uma grande alegria de dizer não sei hoje. Temos de reaprender coisas que são básicas, como por exemplo a distinção entre saber e sentir. Valorizamos o saber como coisa masculina e desvalorizamos o sentir como coisa feminina. Isso é absurdo. São fronteiras que arbitrariamente construímos. Não sei onde termina o saber e começa o sentir. São fundamentos do nosso conhecimento que temos de contestar.
Sou um optimista sem esperança. Penso que não chegámos ao fim e há sempre algo a fazer.
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