Igarapé do Tarumã, junto à cidade de Manaus
por Ribamar Bessa Freire *
“Introibo ad altare Dei” – rezaram juntos, em latim, os jesuítas Francisco Veloso e Manuel Pires. Era a primeira vez que a floresta do rio Negro ouvia essa frase e essa língua. Foi durante a celebração da primeira missa, em 1657, na aldeia dos índios Tarumã, em altar improvisado ao lado de uma tosca cruz.
Milhares de cruzes foram erguidas e milhares de missas foram celebradas nos últimos 350 anos, quando os Tarumã foram expulsos de seu território. Agora, 212 índios que vivem em Manaus, pertencentes a 12 diferentes etnias, reocuparam uma área verde do loteamento sugestivamente chamado de ‘Paraíso Tropical’. Seis deles foram reivindicar em Brasília, na última terça-feira, 24 de maio de 2011, a legitimidade da ocupação.
Nunca a frase da missa tridentina foi tão apropriada como nessa primeira celebração no rio Negro: “Entrarei no altar de Deus”. É que as águas cristalinas do igarapé do Tarumã corriam por um leito de areia branca, namoravam as pedras das cachoeiras, despencavam em cascatas produzindo uma música alegre e um redemoinho de espumas. Meninos, eu vi! Quem olhava espetáculo tão deslumbrante, preservado pelos índios, não tinha dúvida de que estava entrando no altar de Deus“qui laetificat iuventutem meam”.
O que aconteceu com esse santuário e seus devotos, os Tarumã? A resposta pode ser dada com ajuda de um lingüista tcheco - Cestmir Loukota, de um viajante alemão - Robert Schomburgk, de um historiador inglês - John Hemming, e de um padre português - Serafim Leite, que em 1905, ainda jovem, trabalhou como seringueiro no rio Negro, e depois (1932-1950) vasculhou arquivos europeus e brasileiros em busca de documentos para escrever a História da Companhia de Jesus no Brasil.
O altar de Deus
Os Tarumã habitavam aldeias na margem esquerda do baixo rio Negro, atual zona oeste de Manaus. Ceramistas refinados, “eram conhecidos como excelentes criadores e treinadores de cães de caça e como fabricantes de ralos de mandioca” – escreveu Loukotka (1895-1966), um pesquisador que dedicou sua vida a buscar nos arquivos documentos sobre línguas indígenas, entre elas a língua Tarumã.
Mas aí, aconteceu uma desgraça: “mandakϊna wanicú”, em língua tarumã, ou “os estrangeiros chegaram”, como nos traduz Loukotka. Os primeiros forasteiros - conta Serafim Leite – foram os dois jesuítas citados que plantaram “a cruz na aldeia dos Tarumãs, a primeira do Rio Negro”. Os índios assistiram a missa com curiosidade e respeito e trataram amistosamente os dois padres que “dali voltaram ao Pará alguns meses depois”.
Os jesuítas abriram caminho aos missionários carmelitas, que criaram uma ‘aldeia de repartição’, misturando os Tarumã com outros índios. De lá, muitos deles foram repartidos para prestar trabalho compulsório aos colonos, aos missionários e à Coroa Portuguesa em Belém. Os Tarumã que recusaram foram massacrados na “guerra justa” promovida por Pedro da Costa Favela, entre 1665 e 1669. Muitos deles, escravizados, trabalharam na construção do Forte de São José do Rio Negro, em 1669, que deu origem à cidade de Manaus.
Quando o padre jesuíta Samuel Fritz passou pelo rio Negro, por volta de 1690, encontrou o chefe Tarumã, conhecido como Karabaina, com o corpo coberto de cicatrizes, marcas das constantes violências cometidas pelos portugueses, conforme nos conta John Hemming, autor do livro “Red Gold”, o ouro vermelho, representado - no dizer do padre Vieira – pelo sangue derramado dos índios escravizados.
Começou, então, o longo êxodo dos sobreviventes. Um grupo de índios, provavelmente Tarumã, foi encontrado próximo a Barcelos por Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua viagem pelo Grão-Pará (1783-1792). Lá, o viajante adquiriu uma bela peça de cerâmica, de 12,7 cm de comprimento e 6,7 de altura, que representa uma onça pintada - “dun” em língua tarumã - feita de argila branca, oca, com a boca entreaberta, a língua pra fora e a cauda apoiada sobre o dorso. A peça, considerada uma obra de arte, foi enviada para o Museu da Universidade de Coimbra, e faz parte do seu rico acervo.
A grande marcha
A última notícia que temos dos que permaneceram na proximidade de Manaus foi dada pelo Comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas, Lourenço da Silva Amazonas (1803-1864), que relata como, em 1808, centenas de índios foram levados, ‘acorrentados, como se fossem condenados’, para o trabalho na fazenda do Tarumã, de propriedade do governador José Joaquim Vitório da Costa.
Depois disso, não ficou nenhum deles para contar a história. Em sua fuga, subindo o rio Negro, os Tarumã foram invadindo territórios de povos que falavam línguas da família Aruak, com quem mantiveram diferentes tipos de relação, quase sempre conflitivas, mas às vezes amistosas. Na sua longa marcha, eles foram parar no extremo norte, na Guiana, em pleno território Karib, onde se fixaram e fizeram alianças com povos dessa família lingüística, o que favoreceu a realização sistemática de casamentos interétnicos.
Por volta de 1837, o alemão Robert Schomburgk a serviço dos ingleses, encontra ao longo dos rios Essequibo e Cuyuwini cerca de 150 índios Tarumã que haviam chegado à Guiana Inglesa, depois de haverem percorrido mais de 2.000 km pelo rio e pela floresta. Foi lá que o antropólogo William C. Farabee, da Universidade de Harvard, os encontrou, em 1916, misturados com os Wai-Wai, de filiação Karib.
A denominação Tarumã, no século XX, passou a ser uma espécie de guarda-chuva, abrigando índios de diferentes etnias, filhos de casamentos interétnicos, que deixaram de falar sua língua materna. O etnônimo Tarumã, na realidade, dá conta de um novo povo que surgiu nesse processo de alianças, da mesma forma que “brasileiro” - um povo que antes não existia - é uma mistureba de portugueses, índios, africanos e, dependendo da região, de italianos, alemães, japoneses, espanhóis, poloneses.
Talvez essa seja a denominação mais apropriada para designar esses índios urbanos de 12 etnias que reocuparam um reduzido e diminuto espaço do que era o território Tarumã. O coordenador local da Funai, Odiney Hayden, declarou que eles devem continuar na área até terem uma garantia de uma política de habitação, mas que mais cedo ou mais tarde terão que sair, porque a Funai não tem política de habitação para indígenas que moram na cidade. Será?
O Censo de 2010 do IBGE nos informa que o total da população indígena do Brasil é de 817.963 indivíduos, dos quais 315.180 vivem em área urbana. No Amazonas, são 34.302 índios que moram em cidades, todos eles expulsos, que nem os Tarumã, do altar de Deus.
A cidade de Manaus aceita, com orgulho, ter um bairro, hoje, com o nome de Tarumã, perpetuando a memória desses índios também no nome do igarapé e da cachoeira que dele fazem parte. No entanto, nesse bairro que conserva um nome indígena, parece não haver lugar para os índios.
O bairro do Tarumã é, atualmente, parte nobre da capital, ocupada por condomínios de luxo, como a mansão construída pelo atual prefeito Amazonino Mendes, quando era governador, mas também por residências de classe média trabalhadora, como a modesta casa do Piriri, irmão do Pão Molhado. Ela contém ainda uma Área de Proteção Ambiental (APA), que guarda o último igarapé não poluído da cidade.
A Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas) que exceto nos quatro anos em que Serafim Correa foi prefeito, nunca se preocupou com crime ambiental, acusou a Funai de dificultar o processo de regeneração da vegetação, mas admitiu que o monitoramento diário da área não identificou qualquer derrubada de árvore por parte dos índios.
A índia Nati Tukano, de 28 anos, líder do movimento, negou que as famílias sejam “bagunceiras ou arruaceiras” como foram acusadas, o que foi reforçado por outro líder, Jair Miranha, coordenador da União dos Povos Indígenas de Manaus (UPIM).
O certo é que, agora, é como se os Tarumã estivessem ressuscitando. Eles estão voltando! O latinorum que vai valer daqui pra frente não é mais o da missa, mas o dos tribunais. O verbo que vão conjugar para expulsá-los é “expellere”.
Bem-vindos os Tarumã, se me permitem chamá-los assim! Introibo ad altarem Dei. Que entrem no altar de Deus e ajudem a preservar o que resta dele.
(...)
Três observações:
A primeira: consulte a nota em adenda do prof. Ribamar Bessa Freire, clicando no link em baixo para expansão do texto.
A segunda: sobre o caso a que a crónica faz referência - a reocupação, no mês passado, por parte dos índios de «uma área verde do loteamento sugestivamente chamado de ‘Paraíso Tropical’», no Tarumã, zona oeste de Manaus - consulte o dossier de reportagem em que o Conexão vem acompanhando a situação: AQUI.
Por fim: sobre a poluição e degradação do igarapé do rio, o Conexão sugere o blog que os moradores de Tarumã mantêm, o Água Branca Online, e que monitora de perto o estado do Igarapé da Água Branca no Tarumã.
P.S. – Contribuíram para a elaboração desse texto, além de Amaro Junior, que me enviou as notícias dos jornais, os seguintes autores:
1. LOUKOTKA, Cestmir. Classification of South American Indian Languages. Johannes Wilbert Ed. Los Angeles, University of California, 1968.
2. LOUKOTA, Cestmif. La Langue Taruma. Journal de la Société des Américanistes. 38: 53-65, Paris 1949.
3. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália e Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1938-1950, 10 vols.
4. HEMMING, John. Red Gold. The Conquest of the Brzilian Indians. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1978.
5. SCHOMBURGK, Robert H. Journey to the sources of the Essequibo. Journal of the Royal Geographical Society. 10:159-190, London 1841
6. FARIAS, Elaíze. Índigenas do Tarumã permanecerão até encontrar garantia de um novo local. Manaus. A Crítica. 25.05.2011.
7. VASCONCELOS, Luis. Indígenas quebram parabrisas de ônibus e querem parada na frente do bairro Nações Indígenas, no Tarumã. Manaus. A Critica. 05/05.2011.
* crónica inicialmente publicada no Diário do Amazonas (29.Maio.2011)
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