por António Barreto *
Nada é novo. Nunca! Já lá estivemos, já o vivemos e já conhecemos. Uma crise financeira, a falência das contas públicas, a despesa pública e privada, ambas excessivas, o desequilíbrio da balança comercial, o descontrolo da actividade do Estado, o pedido de ajuda externa, a intervenção estrangeira, a crise política e a crispação estéril dos dirigentes partidários. Portugal já passou por isso tudo. E recuperou. O nosso país pode ultrapassar, mais uma vez, as dificuldades actuais. Não é seguro que o faça. Mas é possível.
Tudo é novo. Sempre! Uma crise internacional inédita, um mundo globalizado, uma moeda comum a várias nações, um assustador défice da produção nacional, um insuportável grau de endividamento e a mais elevada taxa de desemprego da história. São factos novos que, em simultâneo, tornam tudo mais difícil, mas também podem contribuir para novas soluções. Não é certo que o novo enquadramento internacional ajude a resolver as nossas insuficiências. Mas é possível.
Novo é também o facto de alguns políticos não terem dado o exemplo do sacrifício que impõem aos cidadãos. A indisponibilidade para falarem uns com os outros, para dialogar, para encontrar denominadores comuns e chegar a compromissos contrasta com a facilidade e o oportunismo com que pedem aos cidadãos esforços excepcionais e renúncias a que muitos se recusam. A crispação política é tal que se fica com a impressão de que há partidos intrusos, ideias subversivas e opiniões condenáveis. O nosso Estado democrático, tão pesado, mas ao mesmo tempo tão frágil, refém de interesses particulares, nomeadamente partidários, parece conviver mal com a liberdade. Ora, é bom recordar que, em geral, as democracias, não são derrotadas, destroem-se a si próprias!
Há momentos, na história de um país, em que se exige uma especial relação política e afectiva entre o povo e os seus dirigentes. Em que é indispensável uma particular sintonia entre os cidadãos e os seus governantes. Em que é fundamental que haja um entendimento de princípio entre trabalhadores e patrões. Sem esta comunidade de cooperação e sem esta consciência do interesse comum nada é possível, nem sequer a liberdade.
Vivemos um desses momentos. Tudo deve ser feito para que estas condições de sobrevivência, porque é disso que se trata, estejam ao nosso alcance. Sem encenação medíocre e vazia, os políticos têm de falar uns com os outros, como alguns já não o fazem há muito. Os políticos devem respeitar os empresários e os trabalhadores, o que muitos parecem ter esquecido há algum tempo. Os políticos devem exprimir-se com verdade, princípio moral fundador da liberdade, o que infelizmente tem sido pouco habitual. Os políticos devem dar provas de honestidade e de cordialidade, condições para uma sociedade decente.
Vivemos os resultados de uma grave crise internacional. Sem dúvida. O nosso povo sofre o que outros povos, quase todos, sofrem. Com a agravante de uma crise política e institucional europeia que fere mais os países mais frágeis, como o nosso. Sentimos também, indiscutivelmente, os efeitos de longos anos de vida despreocupada e ilusória. Pagamos a factura que a miragem da abundância nos legou. Amargamos as sequelas de erros antigos que tornaram a economia portuguesa pouco competitiva e escassamente inovadora. Mas também sofremos as consequências da imprevidência das autoridades. Eis por que o apuramento de responsabilidades é indispensável, a fim de evitar novos erros.
Ao longo dos últimos meses, vivemos acontecimentos extraordinários que deixaram na população marcas de ansiedade. Uma sucessão de factos e decisões criou uma vaga de perplexidade. Há poucos dias, o povo falou. Fez a sua parte. Aos políticos cabe agora fazer a sua. Compete-lhes interpretar, não aproveitar. Exige-se-lhes que interpretem não só a expressão eleitoral do nosso povo, mas também e sobretudo os seus sentimentos e as suas aspirações. Pede-se-lhes que sejam capazes, como não o foram até agora, de dialogar e discutir entre si e de informar a população com verdade. Compete-lhes estabelecer objectivos, firmar um pacto com a sociedade, estimular o reconhecimento dos cidadãos nos seus dirigentes e orientar as energias necessárias à recuperação económica e à saúde financeira. Espera-se deles que saibam traduzir em razões públicas e conhecidas os objectivos das suas políticas. Deseja-se que percebam que vivemos um desses raros momentos históricos de aflição e de ansiedade colectiva em que é preciso estabelecer uma relação especial entre cidadãos e governantes. Os Portugueses, idosos e jovens, homens e mulheres, ricos e pobres, merecem ser tratados como cidadãos livres. Não apenas como contribuintes inesgotáveis ou eleitores resignados.É muito difícil, ao mesmo tempo, sanear as contas públicas, investir na economia e salvaguardar o Estado de protecção social. É quase impossível. Mas é possível. É muito difícil, em momentos de penúria, acudir à prioridade nacional, a reorganização da Justiça, e fazer com que os Juízes julguem prontamente, com independência, mas em obediência ao povo soberano e no respeito pelos cidadãos. É difícil. Mas é possível.
O esforço que é hoje pedido aos Portugueses é talvez ímpar na nossa história, pelo menos no último século. Por isso são necessários meios excepcionais que permitam que os cidadãos, em liberdade, saibam para quê e para quem trabalham. Sem respeito pelos empresários e pelos trabalhadores, não há saída nem solução. E sem participação dos cidadãos, nomeadamente das gerações mais novas, o esforço da comunidade nacional será inútil.
É muito difícil atrair os jovens à participação cívica e à vida política. É quase impossível. Mas é possível. Se os mais velhos perceberem que de nada serve intoxicar a juventude com as cartilhas habituais, nem acreditar que a escola a mudará, nem ainda pensar que uma imaginária "reforma de mentalidades" se encarregará disso. Se os dirigentes nacionais perceberem que são eles que estão errados, não as jovens gerações, às quais faltam oportunidades e horizontes. Se entenderem que o seu sistema político é obsoleto, que o seu sistema eleitoral é absurdo e que os seus métodos de representação estão caducos.
Como disse um grande jurista, “cada geração tem o direito de rever a Constituição”. As jovens gerações têm esse direito. Não é verdade que tudo dependa da Constituição. Nem que a sua revisão seja solução para a maior parte das nossas dificuldades. Mas a adequação, à sociedade presente, desta Constituição anacrónica, barroca e excessivamente programática afigura-se indispensável. Se tantos a invocam, se tantos a ela se referem, se tantos dela se queixam, é porque realmente está desajustada e corre o risco de ser factor de afastamento e de divisão. Ou então é letra morta, triste consolação. Uma nova Constituição, ou uma Constituição renovada, implica um novo sistema eleitoral, com o qual se estabeleçam condições de confiança, de lealdade e de responsabilidade, hoje pouco frequentes na nossa vida política. Uma nova Constituição implica um reexame das relações entre os grandes órgãos de soberania, actualmente de muito confusa configuração. Uma Constituição renovada permitirá pôr termo à permanente ameaça de governos minoritários e de Parlamentos instáveis. Uma Constituição renovada será ainda, finalmente, o ponto de partida para uma profunda reforma da Justiça portuguesa, que é actualmente uma das fontes de perigos maiores para a democracia. A liberdade necessita de Justiça, tanto quanto de eleições.Pobre país moreno e emigrante, poderás sair desta crise se souberes exigir dos teus dirigentes que falem verdade ao povo, não escondam os factos e a realidade, cumpram a sua palavra e não se percam em demagogia!
País europeu e antiquíssimo, serás capaz de te organizar para o futuro se trabalhares e fizeres sacrifícios, mas só se exigires que os teus dirigentes políticos, sociais e económicos façam o mesmo, trabalhem para o bem comum, falem uns com os outros, se entendam sobre o essencial e não tenham sempre à cabeça das prioridades os seus grupos e os seus adeptos.
País perene e errante, que viveste na Europa e fora dela, mas que à Europa regressaste, tens de te preparar para viver com metas difíceis de alcançar, apesar de assinadas pelo Estado e por três partidos, mas tens de evitar que a isso te obrigue um governo de fora.
País do sol e do Sul, tens de aprender a trabalhar melhor e a pensar mais nos teus filhos.
País desigual e contraditório, tens diante de ti a mais difícil das tarefas, a de conciliar a eficiência com a equidade, sem o que perderás a tua humanidade. Tarefa difícil. Mas possível.
* presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. É professor e investigador social (Cf. Página de António Barreto no Instituto de Ciências Sociais) e presidente do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É autor do blog Jacarandá.
Sic Notícias (emitido em 11.06.2011)
Após um discurso que marcou as comemorações do Dia de Portugal e está a suscitar polémica, em particular no que se refere à revisão constitucional [ver vídeo], António Barreto deu esta noite uma entrevista a António José Teixeira, para a SIC Notícias, onde passou o País e as suas ideias em revista.
Comentário de António Barreto à demissão do Primeiro-ministro:
Sobre António Barreto
Nasceu na cidade do Porto, Foz do Douro, a 30 de Outubro de 1942. Foi para Vila Real muito cedo, onde viveu até finalizar os estudos liceais. Estudou Direito na Universidade de Coimbra até 1963, ano da sua partida para a Suíça. Acabou por se licenciar em Sociologia, na Universidade de Genebra, em 1968. Foi assistente daquela Universidade, até 1970, onde voltaria para se doutorar, em 1985. Foi investigador do Instituto de Pesquisas das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social, de 1969 a 1974, do Gabinete de Estudos Rurais da Universidade Católica Portuguesa, entre 1974 e 1982, e do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, de 1982 a 2008, jubilando-se em 2009.
Foi professor de Sociologia nas Faculdades de Ciências Sociais e Humanas e de Direito da Universidade Nova de Lisboa, tendo feito parte da Comissão Instaladora desta última. Foi também membro do Conselho de Administração do Instituto Nacional de Estatística. Em 2009 assumiu a presidência do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde criou o portal de informação estatística Pordata.
Foi militante do Partido Comunista Português entre 1963 e 1970 e, em Dezembro de 1974, aderiu ao Partido Socialista, sendo eleito deputado à Assembleia Constituinte, no ano seguinte. Foi membro do VI Governo Provisório, como secretário de Estado do Comércio Externo, e do I Governo Constitucional, como ministro do Comércio e Turismo, primeiro, e da Agricultura e Pescas, depois. Apoiou o projecto da Aliança Democrática, de Francisco Sá Carneiro, com o efémero Movimento dos Reformadores, criado com José Medeiros Ferreira e Francisco Sousa Tavares, em 1978. Em 1985 apoiou Mário Soares, no MASP I (Movimento de Apoio Soares à Presidência). Entre 1987 e 1991 regressou ao Parlamento, como deputado à Assembleia da República, pelo PS. Afastou-se definitivamente do partido na década de 1990.
Autor de vasta bibliografia, dedicou a sua investigação aos temas da emigração, socialismo e reforma agrária, evolução da sociedade portuguesa, indicadores sociais, justiça, regionalização, Estado e Administração Pública, Estado Providência, comportamentos políticos e retrato da região do Entre Douro e Minho. Na televisão, assinou a série de documentários Portugal, um retrato social, realizada por Joana Pontes (RTP, 2006), e dedicou-se ao comentário político em Regra do Jogo, com José Miguel Júdice (SIC Notícias, 2006-2008). É cronista do jornal Público desde 1991. Recebeu o Prémio Montaigne, atribuído pela Fundação Alfred Toepfer e pela Universidade de Tübingen, em 2004, e foi eleito membro Academia das Ciências de Lisboa, em 2008.
É casado segunda vez com a socióloga Maria Filomena Mónica.
Bibliografia
- Capitalismo e Emigração em Portugal (co-autor: Carlos Almeida), Prelo, 1970.
- Independência para o Socialismo, Iniciativas Editoriais, 1975.
- Os silêncios do regime: ensaios, Lisboa: Estampa, 1992
- A situação social em Portugal (org.), Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1996-2000. (2 Vols. Vol 1: 1960-1995. Vol 2: 1960-1999: indicadores sociais em Portugal e na União Europeia)
- Tempo de mudança, Lisboa: Relógio d'Água, 1996
- Sem emenda, Lisboa: Relógio d'Água, 1997
- Regionalização: sim ou não (org.), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998
- Uma década: retratos da semana 1991-99, Lisboa: Relógio d'Água, 1999
- Crises da justiça? A justiça em crise (org.), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000
- Tempo de incerteza, Lisboa: Relógio d'Água, 2002
- Novos retratos do meu país: 1999-2003, Lisboa: Relógio d'Água, 2003
- Globalização e migrações (org.), Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2005
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