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Documentário revela a função sagrada do palhaço na tribo indígena krahô

Posted: 14 de fev. de 2012 | Publicada por por AMC | Etiquetas: ,

O som de risos e gargalhadas, antes mesmo de qualquer imagem surgir, é o prenúncio do que está por vir. A alegria é o elemento base da tribo indígena krahô, que vive em Tocantins, e também norteia o documentário em longa-metragem Hotxuá. O filme, que tem direção da atriz Letícia Sabatella e do artista plástico e cenógrafo Gringo Cardia, pela primeira vez atrás das câmeras, traz um relato poético do hotxuá, um palhaço sagrado, que é profundamente respeitado pela tribo. Assim como a figura clássica do palhaço, eles usam a força do humor e do riso para fortalecer a autoestima do povoado, garantindo a sua cultura milenar. “Os krahôs realmente são conhecidos por isso entre outras tribos e estar entre eles traz sensação de bem-estar incrível, de se ficar bem à vontade, pela simplicidade e pela deliciosa forma como vivem entre a natureza e seus ritos. E o hotxuá tem essa especial liberdade e é amado como é. Ele é detentor desse dom e da prática de prestar atenção em todos e procurar animar a aldeia, não deixar ninguém triste”, explica Letícia Sabatella, que considerou como “bárbara e criativa” sua estreia como diretora.
A ideia de levar os índios de Tocantins para a tela foi uma demanda da própria tribo. Letícia conta que os conheceu em 1996, quando foi até a aldeia com outros atores a convite do antropólogo e indigenista Fernando Schiavini, por causa de um laboratório que fizeram para uma montagem teatral. “Lá fomos batizados e saí com a intenção de nunca deixá-los, sempre pensando em algo para ajudá-los a se expressar. Este projeto partiu de um desejo muito forte de vê-los reconhecidos no seu valor, na sua importância para a nossa boa existência. O tanto que podemos aprender com eles”, destaca a atriz e diretora.
Além do bom humor, marca dos krahô, a preocupação com questões políticas, como a construção de uma possível barragem e os efeitos da cultura de soja na reserva onde vivem, também está presente no documentário, que conquistou o Prêmio do Júri Popular no Festival de Cuiabá e foi homenageado com o troféu Mapinguari no FestCine Amazônia, ambos em 2009.
Letícia lembra que percebeu essa característica forte na tribo e que, certa vez, os acompanhou durante uma reunião em Brasília, que durou sete horas, com representantes de outras etnias, para discutir justamente sobre as mais de 30 barragens que serão construídas ao longo do Rio Tocantins, além da monocultura extensiva, que utiliza agrotóxicos e transgênicos e os inquieta bastante. “O trabalho de recuperação de todos os massacres que vêm sofrendo os povos indígenas é infindável; alternam-se ações desastrosas com boas ações. Vemos a política agrícola ameaçando a reserva e a cultura. A política energética também os ameaça, como podemos ver, e eles continuam de pé e lutando”, reforça a atriz.

Encontro

Um dos pontos altos do documentário é o encontro entre o palhaço tradicional, vivido pelo ator, pesquisador e coordenador artístico do Lume Teatro, Ricardo Puccetti, e do hotxuá Ismael. Enquanto o primeiro estava caracterizado com seu nariz vermelho, maleta na mão e os trajes típicos, o índio surgia com folhas, galhos, miçangas e maquiagem com tinturas extraídas do urucum (vermelho), jenipapo (preto) e de pó de giz (branco). Mesmo de maneira improvisada, a interação entre os dois agentes do riso é impressionante. Ricardo conta que já estava há uma semana na aldeia para conhecer os rituais e as crenças dos krahôs e que prontamente se sentiu acolhido pelos nativos. “Lembro-me que, nos primeiros dias, estava me vestindo e as crianças ficavam me espiando com aquele ar de curiosidade. Quando saí e vi aquele mundo de índio olhando para mim, foi como descer em outro planeta. Fui conquistando aos poucos, mas quando deslanchou, foi surpreendente. Eles passaram a me chamar de hotxuá”, recorda.
O ator diz ter ficado impressionado com a alegria dos krahô e que não é à toa que eles são conhecidos como o povo do riso. A experiência intensa o marcou profundamente como pessoa e como palhaço. “Os krahôs brincam e riem o tempo todo. Tudo é motivo para dar gargalhada. E isso é muito espontâneo. Definitivamente, eles trazem o riso para a vida e o transformam em uma ferramenta de encontro e comunhão”, resume.
Para a diretora Letícia Sabatella, a cena entre o índio e o ser que nós somos, vindos de fora, simboliza o contraste, mas sobretudo revela a necessidade de uma solução lúcida e amigável, para não destruirmos a riqueza cultural do cerrado e dos povos indígenas. “E mostra também que, mesmo com contextos e culturas diferentes, o humor é universal. Mas mesmo assim, na minha opinião, o humor dos hotxuás traz uma liberdade sem censuras, uma singeleza e uma safadeza. Sempre partindo de uma atenção amorosa que busca o bem-estar da aldeia. É nisso que eles focam”, afirma.

Técnica e emoção

Com locações belíssimas em Itacajá, interior de Tocantins, o documentário de 70 minutos chama a atenção pela direção de fotografia primorosa a cargo de Sylvestre Campe. Os diretores Letícia Sabatella e Gringo Cardia realmente tomaram um banho de imersão na tribo e registraram o maior e mais importante evento dos krahôs, a Festa da Batata, que marca a mudança da estação chuvosa para a seca e celebra a fertilidade da tribo. Nessa ocasião, também são realizados vários ritos de passagem, inclusive a oficialização de casamentos entre os nativos. Com depoimentos, em sua língua nativa, o merrim, e em português, o que mais salta aos olhos do espectador é a maneira como esse povo leva a vida sempre com um sorriso no rosto, apesar de todas as adversidades e preocupações que os rondam. Uma verdadeira lição para o homem branco.
O trabalho de recuperação de todos os massacres que vêm sofrendo os povos indígenas é infindável ,diz Letícia Sabatella, atriz e cineasta

OS KRAHÔS
Os krahôs também são conhecidos como “os senhores do cerrado”, a grande savana brasileira, que eles lutam para preservar e manter intacta. Estes índios têm dois caciques, cada um representando um partido. Duas vezes por dia promovem uma corrida de toras entre os partidos, para garantir o equilíbrio do ambiente. É importante que nenhum deles ganhe sempre e que a competição seja motivo de fortalecimento e união para todos. Três crenças são primordiais na cultura: a harmonia da natureza, a força das plantas e a celebração da vida. Eles consideram que a natureza se divide entre o partido do sol (wakmiyé) e o partido do úmido (katamiyé) e as duas forças são complementares. Os krahôs acreditam que as plantas foram presente de Caxekwyj, uma estrela que veio do céu e trouxe as sementes. Depois, a estrela se transformou em moça e ensinou o povo a plantar e comer os frutos da terra. Um dia, um índio chegou à roça e as plantas estavam dançando e elas o ensinaram a festejar.

publicado no Diário de Pernambuco

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