Leio no Expresso:
O secretário de Estado da Cultura admitiu ontem em entrevista à TVI-24 alterar até 2015 algumas regras do novo Acordo Ortográfico, que já está em vigor nos organismos do Estado desde janeiro deste ano.
Manifestando o seu desacordo com algumas normas, Francisco José Viegas lembrou que "do ponto de vista teórico, a ortografia é uma coisa artificial. Portanto, podemos mudá-la. Até 2015 podemos corrigi-la, temos essa possibilidade e vamos usá-la. Nós temos que aperfeiçoar o que há para aperfeiçoar. Temos três anos para o fazer".
Questionado sobre a polémica decisão de Vasco Graça Moura que ordenou aos serviços internos do Centro Cultural de Belém (CCB) que não apliquem o novo acordo, o responsável pela pasta da cultura começou por lembrar que o presidente do CCB "é uma das pessoas que mais refletiu e se empenhou no combate contra o Acordo Ortográfico" para seguidamente lembrar aqueles que "não têm qualquer intimidade nem com a escrita, nem com a ortografia, terem vindo criticar e pedir sanções".
"Para mim é um não-problema. Os materiais impressos e oficiais do CCB obedecem a uma norma geral que vigora desde 1 de janeiro em todos os organismos sob tutela do Estado. O Vasco Graça Moura, um dos grandes autores da nossa língua, escreverá como lhe apetecer", acrescentou o governante.
"Às vezes quando escrevo como escritor tenho dúvidas e vou fazer uso dessa possibilidade, como todos os portugueses podem fazer uso dessa possibilidade, isto é, a competência que têm para escolher a sua ortografia. Não há uma polícia da língua. Há um acordo que não implica sanções graves para nenhum de nós", rematou Francisco José Viegas.
Entrevista para VER NA ÍNTEGRA AQUI, a partir do 04m 18seg.
Mais sobre o assunto, clicando no link em baixo.
Afirmações de Francisco José Viegas sobre Acordo Ortográfico são clarificadas
A Secretaria de Estado da Cultura enviou à Lusa uma nota para clarificar as afirmações de Francisco José Viegas, ontem na TVI, durante uma entrevista em que o governante disse que iam "usar a possibilidade" de aperfeiçoar o Acordo Ortográfico (AO).
Na nota, a Secretaria de Estado admite que pode haver mudanças no período de transição. Deste modo, "é possível efetuar ajustamentos em alguns casos, relacionados com as palavras de dupla grafia e as sequências consonâncias".
"Até 2015 decorre o período de coexistência entre as duas ortografias, sendo que o Artigo 2.º da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 estabelece um prazo de seis anos contando a partir de 13 de Maio de 2009 para a transição definitiva para a nova ortografia".
No programa "Política Mesmo", Francisco José Viegas manifestou o seu desagrado com algumas das regras do novo Acordo Ortográfico e admitiu que "do ponto de vista teórico, a ortografia é uma coisa artificial" pelo que "até 2015 podemos corrigi-la, temos essa possibilidade e vamos usá-la".
"Nós temos que aperfeiçoar o que há para aperfeiçoar. Temos três anos para o fazer", afirmou o secretário de Estado da Cultura. E rematou: "não há uma polícia da língua. Há um acordo que não implica sanções graves para nenhum de nós".
Sobre a possibilidade de uma iniciativa oficial para alterações ao AO, o gabinete de comunicação SEC esclarece na nota, citada pela agência Lusa, que "qualquer extrapolação das suas palavras [de Francisco José Viegas] além do âmbito referido é desprovida de significado". link
(...)
O Acordo 20 anos depois
Duas décadas depois de concluído, quatro anos depois de aprovado por ampla maioria no Parlamento, milhões de euros de investimentos depois, renasce a ofensiva contra o Acordo Ortográfico. Vamos falar de forma diferente? Claro que não! O que há é muita teimosia e alguma ignorância.
Dedicado a Vasco Graça Moura e a todos os opositores do Acordo Ortográfico
A minha adesão pessoal ao Acordo Ortográfico (AO) tem a ver simultaneamente com confiança e humildade. Confio na sabedoria de quem o fez (não na sua infalibilidade) e sou suficientemente humilde para reconhecer que muitos aspetos que dizem respeito à etimologia e à fonética, tais como outros menos relevantes para este caso, me escapam. Além da confiança e respeito por nomes como Lindley Cintra ou António Houaiss, de que não vejo muita gente comungar, mas antes desprezar, dediquei eu próprio algum tempo ao assunto. E, uma vez que faço da escrita a minha profissão há mais de 30 anos, penso ter algo a dizer.
Rodrigues Lapa, que foi um mestre da língua portuguesa, filólogo distinto, sustinha que as mudanças de ortografia eram sempre violentas. Esta asserção é hoje inteiramente justificada pela quantidade de pessoas que apenas se opõem ao Acordo 'porque sim' - sem quaisquer argumentos.
A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um p em ótimo, agora lhe dizerem que afinal esse p (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! Mas qual português, Santo Deus (ou melhor diria Sancto Deus?). O português do assucar ou do açúcar? O de Viseu ou Vizeu?
Philosophia, pharmacia ou phleugma também terão perdido essa identidade (para filosofia, farmácia e fleuma)? Ora, o facto de o phi grego deixar de se distinguir do f na grafia não me parece ter provocado dano ao idioma. Mas há, insistem, o problema do fechamento das vogais. Ou seja, a mania portuguesa (que não brasileira, angolana ou moçambicana) de comer as vogais. Este argumento é o que afirma que passaremos a dizer aspêto em vez de aspéto, uma vez que a retirada do c fecha a vogal. Pode parecer um argumento poderoso, mas não é. Não dizemos Mêlo desde que o apelido deixou de se escrever Mello (Vasconcellos ou Sampayo também se dizem do mesmo modo).
Reparem - e repare o excelente poeta e tradutor, a quem o texto é dedicado - que a forma de acentuar nada ou pouco tem a ver com o modo de escrever, mas sim com o modo de ouvir. Logo ele, que nasceu na Foz do Douro, bastava-lhe andar até à Ribeira para ouvir dizer Puârto e muitas outras coisas que foram morrendo com a voragem unificadora fonética da televisão. No norte dizia-se baca sendo a palavra com v; e o macho da baca era o voi apesar de lá estar um b. Mais estranho: em Lisboa sempre se disse contiúdo apesar do e, ao contrário de Coimbra e Porto onde se diz contêúdo. Em Lisboa, ôito, dezóito, vinte e ôito; no Porto, óito, dezôito e vinte e óito. E sempre se escreveu da mesma forma... Aliás, segundo a professora Maria Helena da Rocha Pereira, o fechamento das vogais pré-tónicas começou em Portugal em finais do século XVII ou princípios do século XVIII - ainda não havia acordos nenhuns.
Agora, se me perguntarem por que razão em 1911 pae passou a pai e mãi passou a mãe (como até hoje se escreve) não sei dizer, do mesmo modo que me irrita o espetador no acordo atual. Mas a propósito daqueles que juram que 'espetador' não distingue o que assiste a um espetáculo de um picador de gelo, refiro a frase: senti os pelos eriçarem-se pelos braços. E eis que toda a gente compreende onde está o quê. Ainda sobre confusões e fechamentos e aberturas de vogais, vejam a frase: 'Gosto particularmente do teu gosto' - quando a leem dizem (pelo menos os cultos, como o presidente do CCB) gósto e gôsto instintivamente. Como em 'Faz força e força aquela porta' sabem que primeiro é fôrça e depois fórça.
Permitam-me, ainda, referir que, durante a minha vida, sòzinho ou sòmente perderam o acento. Pois bem, nunca notei qualquer inflexão (para suzinho ou sumente) no modo de pronunciar aquelas e muitas outras palavras (advérbios de modo e diminutivos) a que aconteceu o mesmo.
Há ainda os que afirmam não gostar do acordo por razões estéticas. É aceitável. Mas a ortografia, sendo uma representação, não pode agradar a todos, e menos ainda reproduzir a pluralidade (e até pessoalidade) de pronúncias e modos de dizer. Exigi-lo seria como pedir a um pintor que pintasse o céu não como ele o vê, mas como cada um de nós, pessoalmente, o vê. Tarefa impossível.
Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos? Não sei, nem me importa. Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor.
Respeito o argumento de que a língua deve evoluir por ela, sem intervenção governamental. Creio, no entanto, que deve haver uma única e determinada ortografia nos manuais escolares e nos documentos. Ainda que cada escritor (como cada editora ou jornal) prefira o seu modo de escrever (Pessoa nunca respeitou o acordo de 1911), a ortografia escolar e oficial não pode ser espontânea nem à vontade do freguês. Acrescento que, curiosamente, nenhum de nós (ou quase) lê Pessoa (nem Eça, nem Camilo, nem sequer Aquilino ou Nemésio) na ortografia que os autores escolheram, assim como, apesar de usarmos a língua de Camões, há muito que não grafamos as palavras como ele ("Armas & os barões" ou "Occidental praya"). Quero com isto dizer que um jornal, uma editora, um escritor ou um Centro Cultural de Belém que não adira ao AO, ver-se-á, a breve prazo, a braços com uma escrita anacrónica... E um dia, tal como Pessoa ou Camões, será lido com a ortografia que então estiver em vigor.
Eis porque fui um dos entusiastas, na altura como diretor do Expresso, da utilização do AO nas publicações do Grupo Impresa. Eis porque não aceito que uma lei discutida durante mais de 20 anos seja constantemente colocada em causa. Ou que os opositores do AO esqueçam sistematicamente que a forma como escrevem resulta também de um AO imposto por lei.
Não vale a pena pensarmos que cada geração tem a pureza da grafia. O que pensar de Marco Túlio Tiro que, para poder transcrever os discursos de Cícero, abreviou diversas palavras com sinalética que até hoje usamos (etc., v.g., e.g.). Talvez o mesmo que muitos pensam das abreviaturas feitas pelos jovens nos telemóveis e redes sociais. E, no entanto, é a grafia que tem de estar ao serviço da comunicação - não o contrário.
Acirrar ânimos, insultar adversários, fazer juras solenes em torno de uma simples representação do nosso idioma faz-me lembrar aquele padre tio de Brás Cubas que o genial Machado de Assis (e não por acaso cito um autor brasileiro que devia ser mais lido em Portugal) descreve assim: "Não era homem que visse a parte substancial da igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia do que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos". (E aqui, a palavra infração segue o modo como ele a escreveu... em 1881).
Defender que o fim das consoantes mudas altera o modo de acentuar as palavras é desconhecer que dizemos as palavras tal e qual as ouvimos dizer e não como as vemos grafadas. Só assim se explica a forma diferente de dizer inúmeras palavras, (como conteúdo, dezoito) a troca dos vês pelos bês ou a diferença entre lixo e fixo
Não lemos os autores portugueses com a ortografia que eles escolheram. De Camões a Pessoa, de Bernardim Ribeiro a Eça, todos são vulgarmente lidos na ortografia atualmente em vigor (e que vem essencialmente de 1911). A guerra em torno do Acordo é inútil, anacrónica e, sobretudo, nada tem a ver com uma mítica pureza da língua que é algo que nunca existiu
* texto publicado na revista Atual da edição impressa do Expresso de 18 de fevereiro de 2012
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O impossível acordo
Na discussão do Acordo Ortográfico, além dos termos de uma estéril querela que se fica por questões de princípio, é possível perceber que por mais críticas que tenha suscitado, por mais que tenha sido desautorizado cientificamente, ele resistiu pela sua condição de projeto político.
A discussão pública do Acordo Ortográfico (AO) tem surgido muitas vezes como uma espécie de querela dos Antigos e dos Modernos: os primeiros, por fé e princípio, contra o Acordo, chegando a anunciar, em linguagem apocalíptica, que ele significa a "destruição" da língua portuguesa; os segundos, por princípio e fé, a favor do Acordo, em nome de uma mirífica unidade da língua como fator de internacionalização e da ideia de que a ortografia pode ser mudada e simplificada como qualquer convenção. No primeiro caso, a ortografia é entendida como um facto linguístico imutável, fixado como uma natureza; no segundo caso, exacerba-se a convencionalidade para lhe negar um estatuto propriamente linguístico e de sistema autónomo em relação à oralidade.
Para perceber o alcance, os efeitos, as contradições e até alguns absurdos do AO é preciso abandonar a discussão que se desenrola nos termos de uma querela caricata e prescinde tanto da argumentação técnico-linguística como dos aspetos pragmáticos e formais da implantação do Acordo.
Mas, se a discussão não ocorreu nos moldes desejáveis, isso deve-se em grande parte ao facto de o Acordo ter sido elaborado e negociado sem se cumprir a exigência de ouvir os linguistas e outras entidades que têm especial competência sobre o assunto. O Acordo nasceu como uma opção política e como tal foi imposto. Quando a Comissão Nacional de Língua Portuguesa (CNALP), órgão de aconselhamento do Governo em matéria de língua, coordenada então por Vítor Manuel Aguiar e Silva, elaborou um parecer bastante crítico do anteprojeto de 1988, logo foi impedida de ter acesso ao texto do AO, assinado em 1990.
Aguiar e Silva demitiu-se e, em declarações ao Expresso, afirmou: "Há pontos escandalosos do ponto de vista técnico-linguístico, como o da facultatividade ortográfica, que coloca grandes problemas de natureza pedagógico-didáctica." Pela mesma altura, duas linguistas da Faculdade de Letras, Inês Duarte e Raquel Delgado Martins, diziam também ao Expresso que os especialistas da língua não representados na Academia não foram chamados a intervir no processo.
Inês Duarte afirmava, então: "É a história do rei que vai nu. Está-se a tentar dar a ilusão de que se está a unificar a ortografia do português. Se agora temos duplas grafias, elas vão continuar a existir depois do Acordo, continuando a impedir aquilo em nome do qual ele é feito, co-edições, etc." E acrescentava que a dupla grafia consagrada no AO ia criar um problema que não existia antes, pelo facto de passar a haver "no interior do mesmo espaço nacional duas grafias, conforme a oscilação da pronúncia. E isso é o contrário de tudo aquilo que é a própria noção de ortografia"
Para perceber o alcance, os efeitos, as contradições e até alguns absurdos do AO é preciso abandonar a discussão que se desenrola nos termos de uma querela caricata e prescinde tanto da argumentação técnico-linguística como dos aspetos pragmáticos e formais da implantação do Acordo.
Mas, se a discussão não ocorreu nos moldes desejáveis, isso deve-se em grande parte ao facto de o Acordo ter sido elaborado e negociado sem se cumprir a exigência de ouvir os linguistas e outras entidades que têm especial competência sobre o assunto. O Acordo nasceu como uma opção política e como tal foi imposto. Quando a Comissão Nacional de Língua Portuguesa (CNALP), órgão de aconselhamento do Governo em matéria de língua, coordenada então por Vítor Manuel Aguiar e Silva, elaborou um parecer bastante crítico do anteprojeto de 1988, logo foi impedida de ter acesso ao texto do AO, assinado em 1990.
Aguiar e Silva demitiu-se e, em declarações ao Expresso, afirmou: "Há pontos escandalosos do ponto de vista técnico-linguístico, como o da facultatividade ortográfica, que coloca grandes problemas de natureza pedagógico-didáctica." Pela mesma altura, duas linguistas da Faculdade de Letras, Inês Duarte e Raquel Delgado Martins, diziam também ao Expresso que os especialistas da língua não representados na Academia não foram chamados a intervir no processo.
Inês Duarte afirmava, então: "É a história do rei que vai nu. Está-se a tentar dar a ilusão de que se está a unificar a ortografia do português. Se agora temos duplas grafias, elas vão continuar a existir depois do Acordo, continuando a impedir aquilo em nome do qual ele é feito, co-edições, etc." E acrescentava que a dupla grafia consagrada no AO ia criar um problema que não existia antes, pelo facto de passar a haver "no interior do mesmo espaço nacional duas grafias, conforme a oscilação da pronúncia. E isso é o contrário de tudo aquilo que é a própria noção de ortografia"
Recordemos ainda que em dezembro de 1990 um conjunto de escritores, editores, professores (entre os quais Herberto Helder, Dinis Machado, Vasco Graça Moura, Jorge Molder, Pedro Tamen, Fernando Gil, M. Villaverde Cabral) exigiram às três principais figuras da hierarquia do Estado a "publicação imediata e integral do novo projeto de Acordo Ortográfico", porque ele continuava subtraído à divulgação pública, para ser poupado à discussão. A tentativa de neutralização pela tática do silêncio afetou também quatro pareceres de linguistas que, elaborados em 2005 a pedido do Instituto Camões, por razões misteriosas só foram conhecidos em 2008.
Trata-se de pareceres emitidos pela Associação Portuguesa de Linguística (APL), assinado por Inês Duarte, pelo Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, assinado por Ivo Castro, pelo Departamento de Linguística Teórica e Computacional (DLTC), assinado por Maria Helena Mira Mateus, e pela Academia das Ciências de Lisboa. Dos quatro, só o último era favorável. Mas faltava um pouco de isenção a quem o tinha feito: nada mais nada menos do que João Malaca Casteleiro, um dos autores do Acordo.
Nos outros, podemos ler afirmações como esta: "Parece-nos prudente suspender quaisquer actos que tornem irreversível a sua aprovação pelo Governo português" (APL); e como esta: "O Acordo Ortográfico terá sempre consequências bem mais graves que a existência actual de duas normas" (DLTC).
E Ivo Castro, antecipando a possibilidade que entretanto se tornou mais plausível de Angola e Moçambique não assinarem o AO, avisava que "a adesão portuguesa ao Acordo introduzirá uma divisão onde existe união". Parecer também muito crítico foi o do professor de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, João Andrade Peres, apresentado em 2008 à Assembleia da República, onde se podia ler: "O Acordo Ortográfico (...) não só introduz um factor de indefinição da grafia, como parece não resultar de uma avaliação rigorosa das consequências das mudanças sobre outros componentes do sistema linguístico, nomeadamente a pronúncia."
E a seguir indicava três aspetos negativos do AO: as grafias facultativas, nomeadamente a "dificilmente explicável" acentuação de certas formas verbais, a supressão das consoantes ditas mudas, mostrando que isso tem como efeito a multiplicação de homografias e de homofonias, além de aumentar o risco de fechamento vocálico e operar uma "desagregação gráfica de famílias de palavras" (por exemplo, a supressão do p dá-se em Egito, mas não se dá em egípcio, afastando membros da mesma família).
Crítica contundente e sistemática ao AO foi a que fez António Emiliano, linguista, professor na Universidade Nova de Lisboa, em dois livros: "O Fim da Ortografia" (Guimarães Editores, 2008), a mais exaustiva análise crítica do AO, e "Apologia do Desacordo Ortográfico" (Verbo/Babel, 2010), onde reúne textos das suas intervenções públicas. António Emiliano mostra as contradições, os erros, as falácias, as incongruências do AO, para concluir que ele consagra uma "dis-ortografia" e instaura o "caos ortográfico". E, com enorme projeção pública, há as críticas e as intervenções de Vasco Graça Moura.
Assim, em várias e competentes instâncias, o AO foi criticado, desautorizado enquanto documento técnico-científico, considerado inepto e nefasto. Em sua defesa, porém, o mais que pudemos ler foram artigos em jornais, refugiados nas questões genéricas das supostas vantagens de um acordo, sem responderem aos argumentos dos críticos. É fácil perceber que a impermeabilidade à crítica e a imunidade do AO estavam garantidas pelo facto de se tratar de um instrumento político para servir a estratégia ideológica da lusofonia.
Vejamos quais os aspetos em que têm insistido com mais veemência os críticos do AO. Eles são unânimes em apontar a grafia dupla (e múltipla) como um problema introduzido por este Acordo. As grafias duplas decorrem na maior parte dos casos de se ter adotado o critério da pronúncia e são virtualmente tão frequentes que acabam por mostrar que o AO, visando a unificação ortográfica, consagra a sua impossibilidade. António Emiliano mostra como ele cai frequentemente em falácias e absurdos, algo que Isabel Pires de Lima também apontou numa entrevista ao "DN", em 2/6/08: "O princípio da facultatividade excessiva (...) vai contra o próprio conceito normativo de ortografia."
A grafia dupla abrange três domínios: o das consoantes mudas, o da acentuação gráfica e o da capitalização (o uso das maiúsculas). Como o critério é o da pronúncia, temos os casos em que há a supressão obrigatória (ato, seleção), os casos em que há a manutenção obrigatória (facto, dicção) e os casos em que a supressão é facultativa (rece(p)cão, dece(p)cão), em que o Acordo dito de unificação ortográfica conseguiu criar uma divergência onde ela não havia. Portanto, além de não ter conseguido unificar neste domínio em que estava posta de parte a possibilidade de os brasileiros regressarem à consoante etimológica, a dupla grafia manteve-se em muitos casos e criou-se a facultatividade: decepção ou deceção, pois no Brasil pronuncia-se decepção.
Mas como é que nós sabemos que há facultatividade, que podemos em alguns casos manter o c e o p que são mudos em Portugal e noutros países lusófonos? Sabendo qual é a "norma culta" no Brasil. Acontece que nós não sabemos nem temos meios de saber tal coisa. E acontece que aquilo que o AO chama "norma culta" da pronúncia não está definida em lado nenhum. Com a introdução do conceito de "norma culta", os autores do AO quiseram apenas limitar a proliferação de heterografias e idiografias (sirvo-me novamente de dois conceitos utilizados por A. Emiliano) que o espírito e a letra do Acordo tornam possível a partir do momento em que consagram o critério da pronúncia (por exemplo, alguém saberá dizer qual das duas pronúncias, setor ou sector, caraterística ou característica, é a "norma culta" em Portugal?).
Este foi um dos aspetos para o qual João Andrade Peres chamou a atenção: a questão do carácter facultativo da grafia apoia-se em algo que o AO dá como evidente, o conceito de "pronúncia culta", mas que na realidade "carece de ser cientificamente fixado".
Facultativo é também o uso do acento gráfico nas formas da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito dos verbos da primeira conjugação (amámos, tomámos), já que no Brasil a vogal é sempre aberta, tanto na forma do presente como na do passado e portanto não é necessário o acento para diferenciar. Temos assim que, numa palavra onde se combinam dois tipos de facultatividade, ela passa a ter quatro grafias possíveis. António Emiliano dá este exemplo: confeccionámos, confecionámos, confeccionamos, confecionamos. E uma palavra como Electrónica (recorrendo a outro exemplo de A. Emiliano), designando uma área científica, tem oito formas ortográficas oficiais, porque a maiúscula também é facultativa.
Para limitar os estragos, o "Plano de Accão de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projecção da Língua Portuguesa" faz esta recomendação: "Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado-membro." Decorre desta recomendação que devíamos, por exemplo, continuar a escrever recepção (porque há a facultatividade receção/recepção). Mas podemos verificar que não é o que está a acontecer, já que o critério da pronúncia fala mais alto, sendo muito embora aquela que autoriza a arbitrariedade ortográfica.
É grande a confusão, e um breve exame ao que se passa nas instituições que já adotaram o Acordo mostra que ninguém o aplica corretamente e instituíram-se normas locais, casuísticas e decididas arbitrariamente, para impor normas que faltam, para suprir as incongruências e as contradições do AO (por exemplo, neste jornal em que escrevo, espectador começou por perder a consoante não articulada c, mas já a reconquistou). Como vai ser possível ensinar a ortografia nas escolas? Como reagirão os alunos quando um professor os ensinar a escrever uma palavra de uma determinada maneira e um outro professor os ensinar de maneira diferente?
A inexistência de um Vocabulário Ortográfico Comum (prometido para janeiro de 1992 e que era um dos requisitos da entrada em vigor do Acordo) torna tudo ainda mais complicado. Ou será que esse Vocabulário Ortográfico Comum não existe porque não pode existir e não passa de uma enorme falácia?
Limitei-me a falar do problema das duplas grafias e da facultatividade. Seria necessário falar também das contradições e da incoerência das regras da hifenização (por exemplo, cor-de-rosa com hífen e cor de laranja sem hífen); seria necessário discutir o critério da "consagração pelo uso" para justificar as exceções (e em todos os domínios, o AO é uma máquina de criar exceções); seria necessário falar do risco do fechamento vocálico por causa do desaparecimento das consoantes mudas (um risco de que falou, entre outros, Óscar Lopes); seria necessário falar da acentuação... Mas, para se perceber a confusão instalada, basta.
Trata-se de pareceres emitidos pela Associação Portuguesa de Linguística (APL), assinado por Inês Duarte, pelo Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, assinado por Ivo Castro, pelo Departamento de Linguística Teórica e Computacional (DLTC), assinado por Maria Helena Mira Mateus, e pela Academia das Ciências de Lisboa. Dos quatro, só o último era favorável. Mas faltava um pouco de isenção a quem o tinha feito: nada mais nada menos do que João Malaca Casteleiro, um dos autores do Acordo.
Nos outros, podemos ler afirmações como esta: "Parece-nos prudente suspender quaisquer actos que tornem irreversível a sua aprovação pelo Governo português" (APL); e como esta: "O Acordo Ortográfico terá sempre consequências bem mais graves que a existência actual de duas normas" (DLTC).
E Ivo Castro, antecipando a possibilidade que entretanto se tornou mais plausível de Angola e Moçambique não assinarem o AO, avisava que "a adesão portuguesa ao Acordo introduzirá uma divisão onde existe união". Parecer também muito crítico foi o do professor de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, João Andrade Peres, apresentado em 2008 à Assembleia da República, onde se podia ler: "O Acordo Ortográfico (...) não só introduz um factor de indefinição da grafia, como parece não resultar de uma avaliação rigorosa das consequências das mudanças sobre outros componentes do sistema linguístico, nomeadamente a pronúncia."
E a seguir indicava três aspetos negativos do AO: as grafias facultativas, nomeadamente a "dificilmente explicável" acentuação de certas formas verbais, a supressão das consoantes ditas mudas, mostrando que isso tem como efeito a multiplicação de homografias e de homofonias, além de aumentar o risco de fechamento vocálico e operar uma "desagregação gráfica de famílias de palavras" (por exemplo, a supressão do p dá-se em Egito, mas não se dá em egípcio, afastando membros da mesma família).
Crítica contundente e sistemática ao AO foi a que fez António Emiliano, linguista, professor na Universidade Nova de Lisboa, em dois livros: "O Fim da Ortografia" (Guimarães Editores, 2008), a mais exaustiva análise crítica do AO, e "Apologia do Desacordo Ortográfico" (Verbo/Babel, 2010), onde reúne textos das suas intervenções públicas. António Emiliano mostra as contradições, os erros, as falácias, as incongruências do AO, para concluir que ele consagra uma "dis-ortografia" e instaura o "caos ortográfico". E, com enorme projeção pública, há as críticas e as intervenções de Vasco Graça Moura.
Assim, em várias e competentes instâncias, o AO foi criticado, desautorizado enquanto documento técnico-científico, considerado inepto e nefasto. Em sua defesa, porém, o mais que pudemos ler foram artigos em jornais, refugiados nas questões genéricas das supostas vantagens de um acordo, sem responderem aos argumentos dos críticos. É fácil perceber que a impermeabilidade à crítica e a imunidade do AO estavam garantidas pelo facto de se tratar de um instrumento político para servir a estratégia ideológica da lusofonia.
Vejamos quais os aspetos em que têm insistido com mais veemência os críticos do AO. Eles são unânimes em apontar a grafia dupla (e múltipla) como um problema introduzido por este Acordo. As grafias duplas decorrem na maior parte dos casos de se ter adotado o critério da pronúncia e são virtualmente tão frequentes que acabam por mostrar que o AO, visando a unificação ortográfica, consagra a sua impossibilidade. António Emiliano mostra como ele cai frequentemente em falácias e absurdos, algo que Isabel Pires de Lima também apontou numa entrevista ao "DN", em 2/6/08: "O princípio da facultatividade excessiva (...) vai contra o próprio conceito normativo de ortografia."
A grafia dupla abrange três domínios: o das consoantes mudas, o da acentuação gráfica e o da capitalização (o uso das maiúsculas). Como o critério é o da pronúncia, temos os casos em que há a supressão obrigatória (ato, seleção), os casos em que há a manutenção obrigatória (facto, dicção) e os casos em que a supressão é facultativa (rece(p)cão, dece(p)cão), em que o Acordo dito de unificação ortográfica conseguiu criar uma divergência onde ela não havia. Portanto, além de não ter conseguido unificar neste domínio em que estava posta de parte a possibilidade de os brasileiros regressarem à consoante etimológica, a dupla grafia manteve-se em muitos casos e criou-se a facultatividade: decepção ou deceção, pois no Brasil pronuncia-se decepção.
Mas como é que nós sabemos que há facultatividade, que podemos em alguns casos manter o c e o p que são mudos em Portugal e noutros países lusófonos? Sabendo qual é a "norma culta" no Brasil. Acontece que nós não sabemos nem temos meios de saber tal coisa. E acontece que aquilo que o AO chama "norma culta" da pronúncia não está definida em lado nenhum. Com a introdução do conceito de "norma culta", os autores do AO quiseram apenas limitar a proliferação de heterografias e idiografias (sirvo-me novamente de dois conceitos utilizados por A. Emiliano) que o espírito e a letra do Acordo tornam possível a partir do momento em que consagram o critério da pronúncia (por exemplo, alguém saberá dizer qual das duas pronúncias, setor ou sector, caraterística ou característica, é a "norma culta" em Portugal?).
Este foi um dos aspetos para o qual João Andrade Peres chamou a atenção: a questão do carácter facultativo da grafia apoia-se em algo que o AO dá como evidente, o conceito de "pronúncia culta", mas que na realidade "carece de ser cientificamente fixado".
Facultativo é também o uso do acento gráfico nas formas da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito dos verbos da primeira conjugação (amámos, tomámos), já que no Brasil a vogal é sempre aberta, tanto na forma do presente como na do passado e portanto não é necessário o acento para diferenciar. Temos assim que, numa palavra onde se combinam dois tipos de facultatividade, ela passa a ter quatro grafias possíveis. António Emiliano dá este exemplo: confeccionámos, confecionámos, confeccionamos, confecionamos. E uma palavra como Electrónica (recorrendo a outro exemplo de A. Emiliano), designando uma área científica, tem oito formas ortográficas oficiais, porque a maiúscula também é facultativa.
Para limitar os estragos, o "Plano de Accão de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projecção da Língua Portuguesa" faz esta recomendação: "Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado-membro." Decorre desta recomendação que devíamos, por exemplo, continuar a escrever recepção (porque há a facultatividade receção/recepção). Mas podemos verificar que não é o que está a acontecer, já que o critério da pronúncia fala mais alto, sendo muito embora aquela que autoriza a arbitrariedade ortográfica.
É grande a confusão, e um breve exame ao que se passa nas instituições que já adotaram o Acordo mostra que ninguém o aplica corretamente e instituíram-se normas locais, casuísticas e decididas arbitrariamente, para impor normas que faltam, para suprir as incongruências e as contradições do AO (por exemplo, neste jornal em que escrevo, espectador começou por perder a consoante não articulada c, mas já a reconquistou). Como vai ser possível ensinar a ortografia nas escolas? Como reagirão os alunos quando um professor os ensinar a escrever uma palavra de uma determinada maneira e um outro professor os ensinar de maneira diferente?
A inexistência de um Vocabulário Ortográfico Comum (prometido para janeiro de 1992 e que era um dos requisitos da entrada em vigor do Acordo) torna tudo ainda mais complicado. Ou será que esse Vocabulário Ortográfico Comum não existe porque não pode existir e não passa de uma enorme falácia?
Limitei-me a falar do problema das duplas grafias e da facultatividade. Seria necessário falar também das contradições e da incoerência das regras da hifenização (por exemplo, cor-de-rosa com hífen e cor de laranja sem hífen); seria necessário discutir o critério da "consagração pelo uso" para justificar as exceções (e em todos os domínios, o AO é uma máquina de criar exceções); seria necessário falar do risco do fechamento vocálico por causa do desaparecimento das consoantes mudas (um risco de que falou, entre outros, Óscar Lopes); seria necessário falar da acentuação... Mas, para se perceber a confusão instalada, basta.
Em defesa do Acordo, o mais que pudemos ler foram textos refugiados nas questões genéricas das supostas vantagens de um acordo. Usou-se a estratégia do silêncio e do silenciamento
Um breve exame ao que se passa nos locais e instituições que adotaram o Acordo mostra que a sua aplicação fica sujeita a normas locais, casuísticas e decididas arbitrariamente
* texto publicado na revista Atual da edição impressa do Expresso de 25 de fevereiro de 2012
- 22 fevereiro 2012: Parlamento aplica novo Acordo Ortográfico em 2012
- 13 fevereiro de 2012: Acordo Ortográfico será inconstitucional
- 03 fevereiro 2012: Vasco Graça Moura acaba com Acordo Ortográfico no CCB
- 28 fevereiro 2011: Microsoft Office com novos corretores ortográficos
- 29 janeiro 2011: Lusa adotou AO há um ano, processo alargou âmbito da agência
- 28 janeiro 2011: "Prontuário" adota Acordo Ortográfico e vocabulário SMS
- 30 novembro 2010: AR: Jaime Gama quer que o Parlamento aplique AO a partir de 2012
- 09 dezembro 2010: Acordo ortográfico chega às escolas em setembro
- 09 dezembro 2010: Acordo ortográfico aplicado no ano lectivo 2011/2012
- 26 outubro 2010: Sugerido estudo sobre valor económico da língua com e sem AO
- 30 setembro 2010: RTP adota acordo ortográfico a partir de Janeiro
- 10 agosto 2010: Nova Versão portuguesa do Office segundo AO
- 25 junho 2010: Expresso poupa letras e adota acordo ortográfico
- 23 março 2010: Departamento de português da Comissão Europeia pronto para o AO
- 21 março 2010: Nota da Direcção do Expresso sobre o Acordo Ortográfico
- 30 setembro 2009: Acordo Ortográfico: Linguista prevê que escrita comum leve mais 20 anos
- 22 maio 2009: As línguas não entram em convergência porque o poder político o decide
- 20 maio 2009: Os Passos Perdidos... do Acordo Ortográfico
- 15 abril 2009: Acordo Ortográfico: Portugal e Cabo Verde adiam entrada em
- 05 fevereiro 2009: Portugal e Cabo Verde avançam com Acordo Ortográfico
Mais em: acordo ortográfico, português, língua portuguesa, lingua, Novo Acordo Ortográfico, PALOP, CPLP, Lusofonia
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