por Sandra Monteiro
«“Explorados”!, novamente aí está, um termo que eu em princípio não usaria facilmente. Não sugiro que o tenha usado com ligeireza… Mas a exploração como elemento negocial não pode ser utilizada. Porque há muita gente que não está a explorar ninguém, que está meramente a dar emprego a pessoas, a retribuir um salário possível, dentro de uma economia de mercado que tem também as suas regras. Portanto a “exploração” talvez seja um adjectivo [sic] um bocado forte. (…) O senhor diga-me só, na Central [CGTP] contemplam que o mundo está a mudar em termos da dinâmica financeira toda que nos ultrapassa em muitos casos e que é preciso também criar uma nova ordem de relações laborais?» [1]
Pode não ser logo evidente, mas a longa e opinativa citação, retirada de uma entrevista, pertence ao entrevistador. O jornalista Mário Crespo entrevistava o agora secretário-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), Arménio Carlos, no Jornal das 9 da SIC Notícias de 16 de Janeiro de 2012. Debatiam-se as alterações às leis laborais propostas pelo governo à concertação social, negociações de que a central sindical se afastou denunciando a falta de postura negocial do governo e a extrema gravidade do quadro legislativo imposto ao mundo do trabalho. Ainda assim elas culminaram, a 18 de Janeiro, na assinatura de um acordo que vincula as estruturas patronais e a União Geral dos Trabalhadores (UGT).
Era a segunda vez que Arménio Carlos usava o termo que tanto incomodou o jornalista, primeiro para dizer que se estava a aproveitar a crise para aumentar a «exploração» e promover um maior desequilíbrio nas relações laborais e, pouco depois, para explicitar a situação a que são sujeitos os trabalhadores que vendem a sua força de trabalho: são «explorados». À segunda foi de vez, Mário Crespo teve de interromper. Tentando repor a ordem habitualmente reinante no espaço mediático, instruiu o convidado, sem êxito é certo, sobre as sãs regras da etiqueta discursiva que costumam ser observadas na televisão, ainda para mais em horário nobre, caso não se queira ser tratado como insensato ou anacrónico.
Já antes o jornalista se sentira à vontade para chamar «retórica» à forma como o convidado se exprimia e para o criticar quando, no seu entender, colocou o trabalho na esfera «do garantismo e dos direitos» (dizer «direitos» poderá ser aceitável, desde que não sejam garantidos nem laborais…). Mas a seguir, perante o repetido uso do conceito de exploração pelo sindicalista, Crespo adoptou um tom mais impositivo. Não é apenas um termo que o próprio dificilmente usaria; é um termo que não pode ser usado: «A exploração como elemento negocial não pode ser utilizada». Não é também apenas um termo de que ele discorda, por legitimamente ter um pensamento político diferente; é um termo cuja utilização ele se sente no direito de censurar, num tom entre o paternalismo e a agressividade, por o considerar ultrapassado numa altura em que o que importa é promover a aceitação da configuração que o mundo está a tomar e isolar ao máximo os que a contestam: «O senhor diga-me só, na Central contemplam que o mundo está a mudar (…)?»…
Vamos passar então a chamar-lhe uma conversa num programa televisivo, e não uma entrevista. Seria necessário e urgente que a comunicação social fizesse o debate sobre as vantagens de os órgãos de informação assumirem com clareza os pontos de vista subjacentes às suas análises e escolhas informativas. Seria desejável, para o reforço da democracia, que os cidadãos não tivessem quase só acesso a um campo mediático sem verdadeiro pluralismo de ideias e que tantos jornalistas deixassem de ver a sua autonomia ser cada vez mais constrangida pelas regras e interesses dos poderes económicos proprietários da generalidade dos meios de comunicação. Enquanto nada disto for uma realidade, fica a sensação, como diria Mário Crespo (mas agora acertando na gramática), de que chamar a esta conversa jornalismo talvez seja um substantivo um bocado forte.
Em rigor, esta conversa não pode ser vista como um exemplo do modo como habitualmente se reparte no espaço mediático, e sobretudo televisivo, o tempo dado ao confronto entre estas duas visões do mundo. Ao contrário do que aqui acontece, os pontos de vista que contestam o neoliberalismo têm um acesso muito limitado a esse espaço que é central à formação da opinião, à naturalização de consensos e à delimitação do campo dos possíveis. Ainda assim, esta conversa tem a vantagem de mostrar como é vital para o projecto neoliberal, e mais ainda durante a grave crise em curso, conter a visibilidade desse confronto de opiniões. Porque, quando irrompem no espaço público, as palavras ganham vida e as ideias que elas exprimem são discutidas, trabalhadas, apropriadas. Passam a fazer parte do acervo de possíveis que estão disponíveis para que as mudanças aconteçam. As palavras proibidas, que são tratadas como verdadeiros tabus, são lugares de experiência e de compreensão do mundo. Quanto mais elas traduzem uma realidade observável ou apontam para caminhos alternativos desejáveis, mais são objecto de anátema, em moldes mais ou menos sofisticados.
O tabu da exploração, tal como o do proteccionismo ou o das classes, contribui para fazer desaparecer do espaço público a noção de que a arquitectura de uma sociedade é feita de escolhas conflituais, que resultam das correlações de forças que historicamente se vão formando entre interesses divergentes. Actualmente o tabu apoia-se em duas ideias, repetidas através dos dispositivos de geração de subalternidade: a de que todos somos culpados pela crise e pela dívida, por «termos vivido acima das nossas possibilidades», e a de que esse barco da culpa em que todos estamos justifica o mar revolto dos sacrifícios que temos de aceitar, porque não há alternativa, não há dinheiro nem bem-estar para distribuir.
Como sugere Mário Crespo, num argumento ecoado por todos os neoliberais, ninguém quer explorar ninguém mas, como não há dinheiro, cria-se «uma nova ordem de relações laborais» para nos conformarmos a uma dinâmica financeira e de mercado «que nos ultrapassa»… e paga-se o «salário possível». Com um pouco de sorte, pensarão, os cidadãos esquecer-se-ão de que diferentes políticas gerariam e redistribuiriam os recursos de outro modo, limitando os rendimentos mais elevados, com o objectivo de reduzir as desigualdades socioeconómicas. E esquecer-se-ão de que, por cada pequena empresa em dificuldades que dificilmente poderia pagar salários mais elevados, há outras, onde todo o nosso destino colectivo se joga, em que lucros gigantescos resultantes de uma exploração cada vez mais desenfreada do trabalho são canalizados para remunerar o capital accionista a níveis sempre mais elevados, lucros esses que são depois investidos em produtos financeiros ainda mais remuneradores, numa espiral cujas consequências estão à vista…
Na Europa, o que importa agora aos defensores da tremenda regressão social em curso é que a crise das dívidas soberanas sirva, com a ajuda dos poderes públicos nacionais e das instâncias europeias, para transferir os custos do ajustamento estrutural para o mundo do trabalho. Como se verifica pela leitura do referido acordo assinado na concertação social [2], o que se prevê é que os trabalhadores portugueses vendam a sua força de trabalho mais barata, tanto por trabalharem mais tempo não pago, com eliminação de dias de férias e feriados, como através da diminuição do valor pago pelo trabalho extraordinário. Além disso, diminuem-se os montantes a pagar em caso de despedimento, que é em si mesmo facilitado, reduz-se a duração e o montante a pagar pelo subsídio de desemprego e, como se estes aspectos não fossem já suficientemente graves, dá-se uma forte machadada na negociação colectiva com a deslocação para o nível da empresa de decisões com tanto impacto para a vida dos trabalhadores e das suas famílias como a mobilidade geográfica e funcional.
A exploração, não só existe, como está a aumentar para níveis ainda recentemente inconcebíveis. Traduz-se na venda mais barata da força de trabalho, na criação de trabalhadores que se tornam sujeitos menos autónomos e com menos tempo para si. Ela é a marca deste tempo em que a única mudança para a qual se quer que os cidadãos estejam disponíveis é para aquela que resulta em mais acumulação, nalguns poucos, e mais privação, na esmagadora maioria dos restantes. Com mais exploração não se resolverá nenhum dos problemas da dívida ou da sustentabilidade da economia. Só teremos um país marcado por mais desigualdades e, com elas, mais expressões da arrogância de classe e do desespero de classe que se instala nos dois extremos da sociedade. Irão os trabalhadores encontrar as formas de participação colectiva que recusem a ideologia do «salário possível» e mostrem que a exploração, bem real, o será tanto menos quanto mais a tornarem impossível?
Notas[1] http://sicnoticias.sapo.pt/programas/jornaldas9/article1249686.ece.
[2] http://static.publico.pt/docs/economia/Compromisso%20-%20versao%20final_17jan2012.pdf.
publicado na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique
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