por António Barbosa Filho *
LISBOA: Bem longe de qualquer comemoração, Portugal completou em 11 de abril o primeiro ano do acordo de “ajuda” que recebeu da troika (1) (Comissão Européia, Banco Central Europeu e FMI), no valor de 78 bilhões de euros. Pouco antes daquela data, o então priimeiro-ministro socialista José Sócrates anunciara que o governo só tinha recursos para pagar o funcionalismo público até maio, mas ainda resistia a um pedido formal de ajuda externa.
“Entre nós e o FMI, há dez milhões de portugueses”, ele declarou, para dias depois desmentir-se: “É preciso dar este passo. Não tomar esta decisão acarretaria riscos que o país não deve correr”. Quando o governo viu rejeitado pelo Parlamento o seu Programa de Estabilidade e Crescimento, contendo as linhas de combate à dívida pública e ao endividamento privado, aqui englobados os bancos, as famílias e as empresas, perdeu as condições de administrar a crise.
As reações no Parlamento fizeram com que Sócrates entregasse seu cargo ao presidente Cavaco e Silva. As eleições, em 5 de junho do ano passado, trouxeram de volta a direita ao poder. Sob um gabinete liderado desde então por Pedro Passos Coelho, numa coligação CDS-PP, a troika já procedeu a três avaliações sobre o desempenho do programa acordado, e tem aprovado o seu cumprimento, sempre exigindo um ou outro ajuste: o salário-desemprego, por exemplo, já foi reduzido de 38 para 26 meses, mas a troika pretende que o limite seja de 18 meses.
Ao analisar o processo econômico deste ano de ajustes, as opiniões variam bastante, havendo apenas um ponto comum: os portugueses estão se sacrificando ao máximo para obedecer as imposições das autoridades financeiras europeias e do FMI. Como afirmou Nuno Magalhães, o líder parlamentar do bloco conservador CDS-PP, há um “cumprimento escrupuloso do programa por parte do governo português (…) Isso não é mérito só, nem sequer principalmente, do governo, mas sobretudo mérito e mobilização dos portugueses”
O que o deputado governista chama de “mobilização” do povo traduz-se em alguns números. Taxa de desemprego (oficial) de 15%, um recorde histórico; 1050 empresas falidas no primeiro bimestre deste ano, o que dá a média de 17,5 empresas por dia – há um ano eram 11,8; corte de 200 milhões de euros nos contratos entre governo e hospitais, obrigando os usuários a pagarem até 100% mais, em consultas e urgências em hospitais e centros de saúde; e até queda na taxa de natalidade.
Crise nas ruas: Os economistas e políticos debatem os grandes números e sempre apresentam previsões otimistas que, aos poucos, o tempo afasta. Os cortes dos subsídios de Natal (uma espécie de 13º salário) e de férias dos servidores públicos surgiram como uma emergência para 2012, mas já se admite que irão até 2015.
Por essas e outras prorrogações nas medidas de austeridade, o ministro das Finanças, Vitor Gaspar, foi chamado de “mentiroso” na Assembleia da República. Como disse o deputado comunista Honório Novo, ao interpelá-lo: “O senhor veio desmentir e contrariar o primeiro-ministro? Ou veio dizer que foi enganado pelo primeiro-ministro? Ou vem-nos recordar que 2015 é ano de eleições?” Muitos portugueses acham que o governo está forçando as medidas recessivas além do necessário para poder afrouxá-las quando as eleições estiverem próximas e colher os votos da população aliviada.
O que se ouve nas ruas é um misto de lamento e revolta. O trabalhador comum tem uma renda de 600 euros por mês, em média, insuficiente para a manutenção sequer de um casal sem filhos. No ano passado, o PIB caiu 3,0%, e o próprio governo prevê queda um pouco maior neste ano, provavelmente 3,6%. A população vê tais prognósticos como um sinal de que nada vai melhorar a curto prazo.
Daí o êxodo, que em 2011 levou 150 mil portugueses a saírem do país (número aproximado), boa parte para o Brasil e Angola. Gastos básicos como a energia elétrica estão sendo reduzidos pelas famílias: queda de 7,3% em março. O tráfego de veículos caiu em dezembro entre 18 e 30% nas principais vias interregionais – culpa direta dos frequentes aumentos de preço da gasolina, hoje na média de € 1,78 o litro, outro recorde.
A venda de automóveis despencou pela metade em março, e a de telefones celulares caiu 17% no último trimestre de 2011. Mais grave: o consumo de alimentos reduziu-se em 2% no primeiro trimestre, especialmente o de carnes e peixes. A ida a restaurantes tornou-se um item supérfluo no orçamento doméstico. Nos acolhedores cafés da Alfama ou do Chiado, ouve-se vários idiomas, mas o português é só dos turistas brasileiros, em número crescente. Maior número de portugueses está levando comida de casa para o trabalho.
Nas ruas de Lisboa, encontra-se um “homem-estátua” a cada 100 metros, um músico tocando saxofone ou guitarra a cada 50 metros, todos em troca das moedas dos turistas estrangeiros. Vê-se gente dormindo nas ruas, um quadro que não era comum na Lisboa dos anos 90 ou até quatro anos atrás. Há quem diga por aqui que a culpa é dos governos que gastaram mais do que deviam gastar, e agora chegou a hora de pagar a conta. Isso viria desde a entrada de Portugal na zona do euro, mas ninguém acredita que seria melhor deixá-la, ao contrário. Fala-se que houve muita corrupção com os fundos europeus recebidos durante o processo de integração, e que deixou-se enfraquecer as atividades econômicas próprias, como a agricultura, a pesca e a indústria. O cidadão comum não vê por onde deva começar uma recuperação.
O sentimento popular dominante, pela menos na capital, é aquele sintetizado pelo deputado do PCP, Pedro Filipe Soares, nesta semana de infausto aniversário: “Todos os maus presságios que se anunciavam, vemos que se tornaram realidade, porque há aqui um fanatismo pela austeridade que está a destruir a economia do país e a criar um desemprego nunca visto em Portugal”.
(1) Troika – o apelido que os europeus deram ao trio de organizações multilaterais citadas, é também uma óbvia alusão aos governos autoritários e burocráticos que, formados por três dirigentes principais, dirigiram a União Soviética, após 1956.
* jornalista e escritor, autor de "A Bolívia de Evo Morales" e "A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento?". Em viagem pela Europa, acompanha as consequências da crise financeira pós-2008 e da onda corte de direitos sociais (‘políticas de austeridade’) iniciada em 2010.
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