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Greve Geral em Portugal: a noite de violência e o dia seguinte

Posted: 15 de nov. de 2012 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , , ,

Reportagem: quem é que atirou a primeira pedra?
por João Dias


Talvez estivessem demasiado exaltados para pensar nisso, mas os poucos manifestantes que permaneciam, ora de cócoras, ora de joelhos, a arrancar pedras da calçada em frente à Assembleia da República faziam-no com a ambição de um operário que gosta do seu trabalho.
A analogia não é assim tão descabida. Estabeleceu-se ali, a 15 metros do cordão policial, uma autêntica e espontânea linha de montagem, em que as pedras da calçada, prontamente arrancadas do chão, eram entregues a outros que as atiravam em direcção ao cordão policial e à Assembleia da República. Adequava-se a pergunta, com a dicção arrastada de Sérgio Godinho com José Mário Branco ao lado: “Que força é essa, que força essa, que trazes nos braços?”
Mas, talvez pela ausência de um maestro, nem todos os manifestantes cantavam a mesma canção. Alguns, primeiro de forma isolada e depois em conjunto, opuseram-se à expressão violenta adoptada por não mais do que 40 manifestantes. Um deles, subiu aos poucos degraus que o cordão policial ainda tinha poupado e gritou para os manifestantes: “Por favor, parem já com isso! Não lhes façam essa vontade!”. “Sai daí, palhaço!”, gritaram-lhe alguns dos manifestantes que tinham pedras nas mãos. “Se for preciso eu morro aqui, mas assim não!”, respondeu-lhes, sem efeito.
Nessa altura, faltavam 15 minutos para a polícia começar a carregar sobre os manifestantes. Já no dia seguinte, o subintendente da PSP de Lisboa, Luís Elias, referiu que a carga policial “foi precedida de avisos prévios aos manifestantes no sentido de repor a ordem pública e de deter os suspeitos da prática dos ilícitos criminais”. Foi também dada a ordem para os manifestantes abandonarem a zona e, não o fazendo, estariam a desobedecer a ordens da autoridade.

Ninguém ouviu o megafone a pilhas

Mas ninguém ouviu estes avisos, lançados por um polícia, um pouco abaixo do alto da escadaria da Assembleia da República, com o vão auxílio de um megafone a pilhas. Desde os poucos protestantes que atiraram pedras, aos ainda menos que os tentaram parar de forma activa, e sem esquecer a franca maioria de cerca de 5 mil manifestantes pacíficos, todos ficaram a saber destes avisos apenas quando chegaram a casa e ligaram a televisão – e não quando estavam prestes a serem sujeitos a uma carga policial que há muito tempo era coisa do estrangeiro.
Assim que a polícia avançou em força, as pessoas, que então permaneciam irredutíveis em frente à Assembleia da República, fugiram num pânico desenfreado, evacuando, em escassos segundos e num caos organizado, o largo de São Bento. As bastonadas, por norma acima da cintura, tornaram-se redundantes na tentativa de alcançar esse objectivo. Pelo caminho ficaram alguns manifestantes que a polícia já tinha identificado como violentos, recorrendo ao uso de agentes infiltrados, mas também idosos, como o Público pôde constatar. Entre estes, um homem de 70 anos foi atirado ao chão e agredido em todo o corpo por agentes policiais durante dois minutos.
A fuga continuou para as ruas que envolvem São Bento, sobretudo na Avenida D. Carlos I, que, percorrida ao longo dos seus cerca de 800 metros, leva até ao rio Tejo. Não era, porém, a altura mais indicada para o fazer. Alguns manifestantes, sempre em minoria e ao mesmo tempo em evidência, puxaram contentores e ecopontos para a estrada e atearam-lhes fogo. O lixo não tinha sido recolhido na noite anterior, e a combustão foi rápida, fácil de mais. À medida que o grupo avançava, era erguida uma barreira de contentores flamejantes, que chegaram a ser cinco.
Lá atrás, o cordão policial descia a avenida, garantindo, à medida que avançava, que não ficava ninguém para trás. À frente, sempre à frente, a maioria corria. Uma senhora com mais de 70 anos e com uma muleta a ampará-la, perguntava serenamente a um bombeiro: “Como é que eu agora faço para ir para casa?”. Não teve uma resposta concreta, o bombeiro estava atónito com o que via. Um dos seus colegas, ao volante do camião, filmava a rua com o telemóvel, com o fascínio de quem olha para os efeitos especiais de um filme e se convence de que aquilo que vê é mesmo a sério.

”Claro que tínhamos de carregar”

Pelo caminho, um polícia achou necessário justificar ao Público a carga policial que tinha acontecido há menos de uma hora. “O que é que estava à espera que nós fizéssemos? Estivemos a levar com pedras durante mais de uma hora, avisámos as pessoas de que ou paravam ou isto acontecia, e elas continuaram a destruir o imobiliário público. Claro que tínhamos de carregar. A culpa não é nossa, é de quem andou a votar sempre nos mesmos”. Perguntámos a outro agente se já estavam à espera disto. “Oh, claro!”, respondeu-nos, com um revirar de olhos de quem acha a pergunta escusada.
No largo Vitorino Nemésio, ao fundo da Avenida D. Carlos I e que dá lugar a um jardim, o cordão policial avança de forma dispersa quando repara que um dos seus estava deitado no chão, sem se conseguir mexer. Asseguraram a segurança do colega e, num grupo de cinco, talvez seis, repararam que estava um homem sentado num banco, a fumar um cigarro. Ficámos a saber, mais tarde, que era João Pires, sem-abrigo há oito anos. “Foste tu, nós sabemos que foste tu!”, gritaram-lhe os polícias, que não esperaram para ouvi-lo dizer que não tinha maneira ter deitado ao chão o polícia que, entretanto, estava a ser assistido pelo INEM. Foi agredido durante um minuto. Falámos com João Pires à saída do largo Vitorino Nemésio, quando este ainda coxeava curvado, agarrando as costelas do lado direito com uma mão e uma sandes embrulhada em celofane com a outra. “Oh, amigo, porque é que me bateram, eu não tenho nada a ver com isto”, dizia, com a voz chorosa, aos polícias por quem passava. “Eu nem sabia que havia protesto hoje, não tenho nada a ver com isto, eu estava aqui nesta zona a arrumar uns carros para ganhar uns trocos, depois sentei-me para fumar um cigarro, mais nada”, contou ao Público, que o acompanhou até ao prédio abandonado onde dorme e que agora tinha um cordão policial, mais um, junto à porta. “Oh, pá, querem ver que vou levar mais? Oh, amigos, eu não tenho nada a ver com isto, por amor de Deus”, lamentava-se.

Quem é que atirou a primeira pedra?

E, afinal, quem é que teve alguma coisa a ver com isto? Quem é que atirou a primeira pedra?
Não é fácil saber quem abriu as hostilidades entre os manifestantes e as forças policiais, mas ao longo de mais de uma hora de arremesso de objectos, sobretudo pedras, tornou-se mais claro quem os atirava.
Ainda que alguns estivessem de cara tapada e outros de mãos nos bolsos, alguns estivadores participaram na investida. Durante o desfile que os levou, juntamente com outros grupos e movimentos sociais, desde o Cais do Sodré até a São Bento, os estivadores vestiram uma camisola branca que os identificava enquanto grupo. Já em frente à Assembleia da República, e depois do discurso do secretário-geral da CGTP, o sindicalista Arménio Carlos, cada um tapou as tshirts brancas com outras camisolas, de forma a não serem facilmente identificados. Também com o rosto coberto, alguns jovens com símbolos anarquistas participaram de forma activa e ininterrupta na chuva de pedras atiradas contra a polícia.
Mas não foram os únicos. Também havia alguns homens e mulheres, cidadãos anónimos e sem qualquer aparente vínculo a movimentos sociais ou políticos, que num momento de pura catarse pegavam nas pedras que iam sendo retiradas da calçada e as mandavam contra o cordão policial, com insultos pelo meio.
A certa altura, um grupo de estivadores com pedras na mão interpela uma mulher de meia-idade, com roupas de marca passadas a ferro e um cabelo irrepreensivelmente tingido de grená. “Então, não quer atirar umas pedrinhas também?”, disseram-lhe, em tom de desafio.
“Porra, é o que mais me apetece, estes gajos não merecem outra coisa!”.

Reportagem: Um desfile de histórias enquanto se espera a decisão da juíza
por Cláudia Sobral

Era uma greve. Era uma manifestação. Acabou por ser algo completamente diferente para muitos do que na quarta-feira se juntaram à porta do Parlamento. Segundo a polícia, 21 pessoas foram detidas para identificação. Segundo os manifestantes, foram centenas. E nove delas (constituídas arguidas) passaram nesta quinta-feira pelo Campus da Justiça, em Lisboa, para serem ouvidas.
Enquanto aguardavam no tribunal, estes noves homens iam contando as suas histórias aos jornalistas. Como foram detidos, o pânico, as bastonadas, a noite que ficou por dormir.
Durante toda a manhã, um jovem de 21 anos não tirou os óculos escuros que escondiam um hematoma num olho. Foi uma bastonada que levou quando foi detido, que lhe deixou também um dente partido. Não nega que tenha atirado pedras aos polícias. Nem pode. Está tudo registado nas imagens recolhidas pela polícia durante o protesto em frente ao Parlamento.
Mas o pior não foi aí, foi na esquadra do Calvário, para onde foi levada a maior parte dos arguidos, conta. "Quando fui à casa de banho mandaram-me despir por causa de uma moeda de 20 cêntimos, eu disse que não tinha mais nada nos bolsos." Depois os agachamentos, as ordens para tossir. Ninguém estava a ver.
"Bateram-me nos rins, na nuca... Estavam furiosos comigo, apareci muito nas filmagens, a atirar pedras." O estudante conta que um dos agentes estava encapuzado - uma informação confirmada por outros jovens que estavam na mesma esquadra.
Mais nenhum foi agredido. Mas as queixas de maus tratos não acabam aqui. Um sindicalista reformado que esteve na mesma esquadra contou que foram muitas as agressões verbais aos mais novos. Um outro jovem, um artista plástico que participou na manifestação com a namorada, que não foi detida, mostrava os dedos, por onde tinha sido algemado, em vez dos pulsos: "Vou-te algemar assim que é assim que eu gosto." E apertaram tanto que deixou de sentir os dedos, que no dia seguinte continuavam roxos, marcados.
Um outro estudante de 23 anos queixava-se que tinha sido detido apenas por estar a filmar a polícia a carregar nos manifestantes. Sacudiram-lhe o braço, o telemóvel foi parar ao chão. Depois levaram-no e disseram que também ele tinha atirado pedras e garrafas aos agentes do corpo especial de intervenção da PSP, que impedia os manifestantes de avançarem escadaria acima.
Ao lado destes jovens havia também homens mais velhos, reformados. Um deles, antigo jardineiro na Câmara de Loures, tinha estado com os "camaradas" da CGTP nos piquetes de greve, horas antes de decidir atirar pedras aos polícias. E conta isto com um certo orgulho - as pedras eram "como bolas de pingue-pongue". Conta que um agente lhe disse que tinha idade para ser seu avô e que da parte dele estava perdoado.

Os noves arguidos

Durante os protestos de quarta-feira nove pessoas foram detidas e constituídas arguidas. Entre jovens estudantes e reformados sindicalistas, há os que admitem ter arremessado objectos contra a polícia, mas também quem parece ter apenas estado no lugar errado à hora errada. Um deles não quis falar. Aos outros, retiámos os nomes. Estas são as suas histórias, conforme eles as contaram.

Artista plástico, 27 anos
Nunca tinha estado numa manifestação, mas achou que não podia ficar em casa mais uma vez e foi com a namorada. Correu mal. Quando a polícia começou a carregar tentaram fugir. Já na Av. D. Carlos I pararam e entre o caos os polícias agarraram-no, deram-lhe bastonadas na cabeça. Passou horas num hospital, acompanhados de vários agentes e de um advogado.

Estudante, 23 anos
Estava só a filmar. O protesto, a polícia a carregar nos manifestantes. Um agente sacudiu-lhe o braço, o telemóvel foi parar ao chão. Na esquadra voltaram-lhe a pôr a máscara dos Anonymous que tinha na manifestação. Só para a fotografia, algemado.

Desempregado, 32 anos
Está sempre em todas as manifestações. E há-de estar "até que este Governo caia". Conta que ao ver os agentes prepararem-se para agredir um conjunto de "miúdos da universidade" estendeu as mãos: "Levem-me a mim". Foi parar ao chão, à bastonada. Ligaram-lhe a cabeça ainda junto a São Bento e levaram-no para uma esquadra.

Estudante e trabalhador, 21 anos
Atirou pedras aos polícias. Não tem como negá-lo: sabe que lhe conhecem a cara e está bem identificado nos vídeos. Quando tentava fugir dali apanharam-no e uma bastonada na cara deixou-o com um hematoma num olho e partiu-lhe um dente.

Jardineiro reformado, 64 anos
Sindicalista, esteve na manifestação com a CGTP. Também atirou pedras e di-lo a toda a gente. Sem medo, com um certo orgulho até. Prenderam-lhe mas não lhe bateram. Um agente disse-lhe que tinha idade para ser avô dele.

Informático, 31 anos
É o único estrangeiro entre os detidos. "Não sou violento, sou um verdadeiro budista", repete ainda perturbado com o que aconteceu. Foi à manifestaçao como faria no seu país, Itália, ou em qualquer lugar onde haja um protesto.

Desempregado, 28 anos
Não participou na manifestação. Conta que descia uma rua em direcção a São Bento justamente quando tudo aconteceu. "Vi um polícia com uma arma apontada em direcção a mim, entrei em pânico e reagi. Nem sei o que atirei: se uma pedra, uma garrafa ou uma banana." Foi detido muito depois, já junto ao Cais do Sodré.

Reformado da marinha mercante, 65 anos
Durante a noite esteve com a CGTP nos piquetes de greve. Conta que foi detido depois de ter atirado uma garrafa de cerveja de litro para o lado quando se preparava para fugir da confusão, perto da Fundação Mário Soares.

Cf.

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