Na sobra de diversos outros argumentos, a notícia no Estado de S.Paulo de hoje deveria ser suficiente para, pelo menos, fazer Dilma ponderar o ratio custo/eficácia da sua teima de assentar a exploração de energia em hidrelétricas e levar adiante, não apenas Belo Monte, como todo um gigantesco plano de construção de usinas na Amazônia. Diversificar as fontes e apostar em energias limpas alternativas é uma demanda premente, sobretudo diante das fragilidades e contingências a que, como o Brasil constata num quadro de seca, as hidrelétricas estão expostas.
Quase um mês depois de o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) ser obrigado a acionar todas as térmicas existentes no País para preservar o nível dos reservatórios, algumas usinas ainda têm tido dificuldade para produzir o volume programado. Há unidades que não conseguiram produzir um único megawatt (MW) nesse período, o que fez a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) iniciar uma rígida fiscalização nas usinas.
Essas termoelétricas, movidas a óleo combustível, diesel e carvão, são contratadas para ficar em stand by para qualquer emergência no sistema elétrico, a exemplo da seca que o País vive atualmente (ler abaixo). Para ficarem paradas à espera de um chamado do ONS, elas ganham uma receita fixa mensal. Quando são acionadas, além da renda mensal, recebem também pelo custo do combustível, que é extremamente elevado - acima de R$ 500 o MW hora. Todo esse dinheiro sai do bolso dos brasileiros quando pagam a conta de luz.
Mas, como já ocorreu em 2007, quando faltou gás natural para atender às usinas, nem todas as térmicas estão preparadas para produzir energia elétrica quando são solicitadas. No início, a diferença entre os volumes programados pelo ONS e o que realmente foi gerado era da ordem de 2 mil MW médios - equivalente à geração de uma usina como a de Santo Antônio, no Rio Madeira. Hoje esse volume caiu bastante, para algo em torno de 800 e 500 MW médios. Mas a queda não é resultado apenas da melhora no desempenho das usinas. Como algumas não estavam operando, o ONS retirou as unidades da programação.
"Estamos fazendo estudos diários com base nos relatórios do operador e, à medida que encontramos grandes discrepâncias, iniciamos a fiscalização", afirma o Superintendente de Fiscalização dos Serviços de Geração, Alessandro D’Afonseca Cantarino. Segundo ele, algumas fiscalizações são feitas no escritório. Outras in loco, como já ocorreu em usinas no Ceará, Piauí, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte. Dependendo do resultado da fiscalização, a agência poderá até suspender a operação comercial das térmicas. "Estamos estudando alguns processos. Os geradores já foram notificados para apresentar suas justificativas."
Combustível
Ele destaca que há várias explicações para o baixo desempenho das térmicas. Há problemas de conservação, restrições elétricas nos pontos de conexão da usina e o pior deles, a falta de combustível. O presidente da Associação Brasileira de Geração Flexível (Abragef), Marco Antonio Veloso, explica que, na verdade, o problema é a logística para levar o combustível até as usinas. Uma unidade de 100 MW, por exemplo, consome por dia 600 toneladas de óleo combustível. "Isso significa umas 20 carretas para abastecer a unidade", calcula Veloso, que está contente com o desempenho das usinas nas últimas semanas.
Uma das térmicas afetadas pelo problema de logística do combustível foi a usina de Campina Grande, que chegou a produzir apenas 31% do volume programado pelo ONS por falta de combustível. Na sexta-feira, a unidade produziu 55% do previsto.
Outra termoelétrica que sofreu do mesmo mal foi a Palmeiras de Goiás. Segundo o diretor de operações da usina, Giancarlo Bratkowski, no início, a usina conseguiu atingir plenamente os volumes contratados, mas a partir do dia 25 de outubro começou a sentir os reflexos da logística de distribuição e da falta de combustível. "Tivemos a necessidade de importar óleo diesel de outros Estados."
Catarino, da Aneel, explica que a responsabilidade pelo combustível é do gerador. Se a agência entender que a unidade prejudicou a operação do sistema, a multa será aplicada ao empreendedor. Caso o gerador tenha contrato de entrega do combustível na porta da usina, ele poderá transferir esse prejuízo para o fornecedor de combustível. "Mas tudo dependerá do contrato que ele tem em mãos."
Um dos reflexos da geração térmica menor é não conseguir poupar água dos reservatórios. No Nordeste, onde o nível de armazenamento de água está em estado de alerta, as hidrelétricas têm gerado mais nas últimas semanas pela deficiência das termoelétricas.
Segundo o superintendente da Aneel, caso a agência não aceite as explicações das usinas, a multa aplicada é de até 2% da receita anual da empresa. Mas ele destaca que, independentemente de qualquer punição, as empresas deverão ter queda nas receitas fixas a partir de 2014. Quem gera abaixo do programado tende a ter sua disponibilidade média de energia, que é a base para o cálculo da receita fixa, revista.
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'Apagões' e política
por José Goldemberg *
A crise de energia elétrica de 2001 teve papel importante nas eleições que levaram o presidente Luís Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores ao poder. A falta de eletricidade e o consequente racionamento foram explorados na campanha eleitoral como o mais óbvio sintoma de fracasso do governo Fernando Henrique Cardoso, com sua política de privatizações e liberalismo econômico.
Passados mais de dez anos, estamos de novo na iminência de uma crise bastante parecida com a de 2001: os reservatórios das usinas hidrelétricas estão baixos, como naquele ano, e a única razão de não estar havendo um racionamento é que as usinas termoelétricas movidas a gás, carvão e derivados de petróleo estão complementando a geração de energia. O sistema elétrico opera no limite e não é de surpreender que haja interrupções frequentes de fornecimento de eletricidade, que o governo tenta minimizar.
O que era um "apagão" no governo Fernando Henrique hoje são apenas incidentes pontuais ou "apaguinhos". E a situação só tende a se agravar com as medidas precipitadas tomadas recentemente pelo governo federal para baixar o custo da eletricidade, condicionado à renovação das concessões. A manutenção do sistema, que já não é boa, só vai piorar à medida que a rentabilidade das empresas cair. A expectativa, portanto, é de que venham a ocorrer novos "apagões".
Qual é o problema real que enfrentamos nessa área?
Para responder essa pergunta é preciso lembrar como evoluiu o sistema brasileiro de energia. Eletricidade é essencial para a vida moderna e o nosso país é bem dotado de recursos hídricos capazes de produzi-la, mediante a construção de usinas hidrelétricas, das quais Itaipu é um excelente exemplo.
A geração de eletricidade nos cursos d'água foi introduzida no Brasil antes da Proclamação da República, em 1889, e fomos um dos primeiros países do mundo a utilizar o movimento das águas para produzi-la.
Para tal é necessário construir barragens, o que resulta na formação de lagos onde a água é armazenada - a queda d'água pela barragem faz girar as máquinas que produzem a eletricidade. O reservatório acumula água para garantir que a usina continue a gerar energia mesmo quando não chove durante meses ou até anos.
O sistema elétrico brasileiro depende essencialmente de usinas hidrelétricas e, se faltar água, falta eletricidade. Mas essa não é a única razão por que barragens são construídas - e existem mais de 50 mil delas no mundo. Elas regularizam o fluxo dos rios, eliminando inundações, criam condições para a navegabilidade e a água pode ser usada também para irrigação e outros fins. Essencial, portanto, é construir usinas que tenham reservatórios adequados.
Isso ocorreu até meados da década de 80 do século passado, mas desde então essa prática deixou de ser seguida, uma vez que reservatórios, às vezes, implicam realocação de populações e podem afetar o meio ambiente, consequências estas que frequentemente são exageradas. Decisões nessa área exigem uma comparação objetiva dos custos e benefícios para a sociedade como um todo.
Por esse motivo o sistema elétrico tornou-se fortemente dependente de chuvas. Quando ocorre um período longo de chuvas fracas, como antes de 2001, o nível dos reservatórios baixa e, consequentemente, falta eletricidade. A maneira de evitar essa situação é usar as termoelétricas para complementar a geração das hidrelétricas.
O que aconteceu no governo FHC é que não existiam termoelétricas em quantidade suficiente para suprir a falta de energia hidrelétrica. Concorreu para isso a privatização parcial do setor elétrico.
Enquanto se concretizou rapidamente a privatização geral das telecomunicações - e com grande sucesso -, a do setor elétrico foi apenas parcial: as empresas distribuidoras, como a Light, foram vendidas, mas as geradoras e as empresas de transmissão permaneceram nas mãos do governo federal e dos Estados. No processo a Eletrobrás perdeu a sua capacidade de planejamento e o setor privado não conseguiu tomar o seu lugar.
O resultado foi o desabastecimento de água e, em decorrência, o "apagão" de 2001.
No governo Lula - que se beneficiou dessa crise para fins eleitorais - havia fortes grupos que almejavam reestatizar completamente o setor elétrico, mas essas tendências não vingaram. A então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, seguiu um caminho intermediário, com a sistemática de leilões para novos empreendimentos para geração de eletricidade, que funcionaram razoavelmente bem até recentemente. É graças a isso que parte do sistema atual, que é térmico, está salvando o sistema dos "apagões".
Sucede que, apesar disso, o problema continua a existir. Os reservatórios não aumentaram de volume no governo Lula (como não aumentaram no governo Fernando Henrique) e continuamos vulneráveis a apagões.
O problema realmente não é de políticas adotadas por um "governo de direita", de tendências neoliberais, como de Fernando Henrique, nem de um "governo de esquerda", de tendências estatizantes, como o de Lula. Tampouco a presença de empresas privadas no setor é a causa dos apagões. As privatizações do governo FHC podem ter sido uma das causas do apagão de 2001, mas os apagões de hoje ocorrem num governo em que o sistema é ainda fortemente estatal. O problema real é a falta de planejamento.
O setor pode funcionar bem com empresas privadas e estatais, desde que elas consigam competir em igualdade de condições. Mas isso nem Fernando Henrique nem Lula conseguiram fazer. E é por essa razão que o sistema elétrico brasileiro, que poderia ser um dos melhores do mundo, com uma matriz energética limpa e renovável, está correndo sérios riscos.
* professor emérito da Uni. de São Paulo, foi presidente da Companhia Energética de SP (CESP) e ministro de Ciência e Tecnologia.
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