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"Amazônia, pátria das águas"

Posted: 2 de mai. de 2013 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , , , , ,


Quando o livro Amazônia (editora Práxis), com fotos de Claudia
Andujar e George Love, foi lançado em 1978, ficou sem uma parte
fundamental: o texto de Thiago de Mello feito especialmente para a
publicação, batizado de Amazônia - Pátria das águas. Ele foi
censurado pela ditadura militar, que já caminhava para o ocaso, mas
continuava restringindo os trabalhos de artistas, em especial os que
desafiavam frontalmente o regime, caso do poeta de Faz escuro mas eu canto.

Thiago diz que chegou a ver a edição com seu texto incluído, mas, se ela
circulou, foi pouco. Suas palavras em defesa da Amazônia saíram mais
tarde numa edição da Civilização Brasileira e, mais recentemente, pela Global-Gaia, ilustradas com desenhos e pinturas dos índios ticunas e fotografias de Claudio Marigo.

O texto que ganhou uma aura mítica por causa da censura é reproduzido aqui no Conexão em função da exposição Fotolivros latino-americanos, em cartaz no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. Uma das salas da mostra é dedicada apenas a Amazônia, um marco na história dos fotolivros e decisivo nas carreiras de Claudia Andujar e George Love.

De 7 a 10 de Maio o IMS-RJ promoverá também o seminário Fotolivros latino-americanos,
paralelo à exposição, com o objetivo de promover o debate sobre a
história dos livros de fotografia e o novo lugar dos livros de arte no
cenário da produção editorial contemporânea. As inscrições estão
abertas.

Eis o vídeo, que consta da exposição, com as páginas de Amazônia:


... e o texto censurado de Thiago de Mello, na íntegra.


"Amazônia, pátria das águas"

Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se
desprende, e traça trêmula um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas
acaba de nascer. A cada instante ele nasce. Descende devagar, para
crescer no chão. Varando verdes, faz o seu caminho e se acrescenta.
Aguas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos
Andes. De mais alto ainda, desce a água celeste. Reunidas elas avançam,
multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície cortada
pela linha do Equador.

Planície que ocupa a vigésima parte da superfície terrestre. O verde
universo equatorial que abrange nove países da América Latina e ocupa
quase a metade do território brasileiro. Aqui está a maior reserva
mundial de água doce, ramificada em milhares de caminhos de água, que
atravessam milhões de quilômetros quadrados de chão verde. É a Amazônia,
a pátria da água.

É a Grande Amazônia, toda ela no trópico úmido, com a sua floresta
compacta e atordoante, onde ainda palpita, intocada pelo homem, a vida
que se foi urdindo em verdes desde o amanhecer do Ter­ciário. Intocada e
desconhecida em muito de sua extensão e de sua verdade, a Amazônia
ainda está sendo descoberta. Iniciado há quatro séculos, o seu
descobrimento ainda não terminou. E, no entanto, pelo que já se conhece
da vida na Amazônia, desde que o homem a habita, ergue-se das funduras
das suas águas e dos altos centros de sua selva um terrível temor: a de
que essa vida esteja, devagarinho, tomando o rumo do fim.

A este universo de água e de terra, de rio e de selva, chegou o homem. É
recente a sua chegada. Só há dez mil anos, já sabem os cientistas,
chegaram os índios à Amazônia e dela fizeram a sua morada. É portanto o
tempo de sua fundação, do seu verdadeiro começo: o homem chegando para
permanecer e para amar.

Da história desse homem primitivo, quer dizer, o que chegou primeiro,
mais adiante um pouco eu vou contar. Muito pouco, porque é quase nada o
que dele ainda resta, escondido nos longes espessos da selva, agarrado
ao sol de sua inocência.

Depois os outros chegaram. Os chamados brancos, com a cruz e o arcabuz; e
o sangue que ia ajudar a compor uma nova etnia, ao longo de quatro
séculos de aventura humana. Aventura que se prolonga, ainda hoje,
marcada pelo signo do desamor. Extração, saque, destruição, extermínio.

É tempo de dizer que é dolorido, para mim, caboclo do Amazonas,
dizer da verdade da vida que reúne, e desune mais que une, as águas, as
florestas, os animais e os homens do Amazonas. Acabo de subir o rio
Solimões, desde o seu encontro com o Negro, onde as águas barrentas de
um não se misturam com as negríssimas do outro, até o triângulo
amazônico que forma o Brasil com o Peru e a Colômbia. Dias e dias de
viagem, contra a correnteza, numa pequena embarcação a motor. Tempo de
enchente, o rio crescido alagando a várzea, derrubando casebres e
árvores. Horas e horas de viagem, sem encontrar uma criatura humana. Só,
de repente, um bando de garças, crivando, alvíssimas, a transparência
da tarde.
E subitamente, numa curva do rio, uma
pequenina canoa beirava o barranco, o homem na proa acenando com o remo,
oferecendo peixe fresco. O olhar bom, o gesto generoso. Mas sofrido: um
filho menino lhe vinha de morrer, sem nenhuma assistência, devorado de
febres. Aprendi com aquele irmão de águas que em tempos doloridos é
preciso trabalhar com esperança na construção da alegria.


Como no Gênesis flutuava a cara de Deus, hoje é a esperança que paira
sobre a face das águas do meu rio. Que ainda paira. Apesar de tudo.
Apesar da destruição, do saque de suas riquezas, do desflores­tamento
impiedoso, da fauna ameaçada, do desamparo do homem ribeirinho - a
esperança amzônica resiste. O coração do homem não se cansa. Se, de tão
malferida, a floresta se cansa, este o nosso grande temor.

Este é o rio que Vicente Pinzón olhou em 1500, sem saber que já havia
abandonado o Atlântico e ingressava na foz de um oceano de águas doces.
Santa Maria de la Mar Dulce. Era o Amazonas varado pela quilha das
caravelas primeiras. O Paraná-açu dos índios que habitavam as suas
mar­gens. Foram muitos os seus nomes: Rio Amazonas, que percorre mais de seis mil quilômetros, desde o fio de
água que desce do lago Lauri, Lauricocha, na cabeça dos Andes, desce
também de Vilcanota, e logo se engrossa no Urubam­ba, transforma-se no
Ucayali, depois já é o caudal do Solimões na selva peruana, encontra a
sua calha principal entrando no Brasil levando o mesmo nome até
encontrar-se com o Negro e então fazer-se Amazonas propriamente dito,
impetuoso, varando profundo o Estreito de Breves, e encontrar-se com o
Atlântico e empurrar para trás as águas do mar até enormes distâncias.

É verdade que o mar se vinga. Reúne as suas forças salgadas e retorna
com fúria, em ondas de muitos metros de altura, que rolam grossas e com
grande estrondo sobre as águas do rio, derrubando margens, afundando
batelões e até navios.

A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o
império da água. Água que corre, água que leva e lava, água que se
despenca em cachoeira, água que roda no rebojo, água que vai e volta em
repiquete, água parada no silêncio do igapó. Água funda, água rasa onde
os barcos encalham. Água negra do Andirá e do Negro. Água barrenta do
Solimões, do Madeira, do Purus. As águas claras e verdes do Tapajós, do
Xingu

É o Amazonas e o seu ciclo das águas. Tempo das "primeiras águas",
quando o rio dá sinal de que tem vontade de crescer. Tempo de enchente,
de vazante, tempo de seca. E o regime das águas condicio­nando e
transformando a vida do homem amazônico ao longo das etapas do ano. Em
qualquer lugar do Amazonas. Não só no interior das florestas, na beira
dos rios. Também nas cidades e nos princi­pais centros urbanos da região
- o homem sofre os efeitos da subida ou da descida das águas. Na sua
casa, na sua comida, no seu trabalho de cada dia. O regime das águas é
um elemento constante no cál­culo da vida do homem. Porque são também
ciclos econômicos. Grandes vazantes significam grandes colheitas: a
terra da várzea inundada é fertilizada pelo rio, que lhe deposita sais
minerais e matérias orgânicas. É tempo de grandes pescarias, tempo de
bom plantar. Grandes cheias correspondem a duras calamidades e amargas
misérias: o peixe se esconde nos lagos de remanso, as plantações são
destruídas, o gado tem de ser levado para as alturas da terra firme ou
então é reunido na "maromba", exíguo curral erguido sobre esteios acima
das águas. O soalho das casas fica submerso, as sucurijus se aproximam
no faro dos animais domésticos. O homem fica à mercê do rio. Mas não
desanima: espera pela vazante, e alteia o soalho, e aproveita a terra
enriquecida pela enchente. O rio diz para o homem o que ele deve fazer. E
o homem segue a ordem do rio. Se não, sucumbe.

O rio diz para o homem. Sucede que a floresta não pode dizer. A floresta
não anda. A selva fica onde está. Fica à mercê do homem. Por isso é que
há quatro séculos o homem vem fazendo da floresta o que bem quer. Com
ela, e com tudo que vive nela, dentro dela. A floresta entrega o que
tem. São séculos de doação que a floresta amazônica tem de bom para a
vida do homem da região e das mais afastadas partes da terra. Sobretudo
para os homens da Europa e da outra América, que são, ao longo da
história da exploração dos recursos naturais da Amazônia, os que melhor
fruíram e mais se enriqueceram com as riquezas da nossa floresta.

A floresta dá tanta coisa para o homem há tanto tempo. Desde o começo,
quando os europeus chegaram, na busca das especiarias. Era o cravo, era a
pimenta, a canela, a baunilha, a salsa, a alfavaca.

O saque começou pelas drogas do sertão. E continua, até os dias de hoje,
cada vez mais impiedoso. De suas essências, a principal delas a do
pau-rosa, o privilegiado fixador de perfumes. Os seus produtos
medicinais, extraídos de folhas, raíles e cascas de árvores. A andiroba,
a copaíba, o sumo da casca de mungubeira, o curare milagroso e maligno,
e a extraordinária quina, nativa do nosso chão. Os alucinógenos: ipadu,
iagé, paricá, o caapi dos sonhos telepáticos. O guaraná estimulante que
os índios descobriram e até hoje cultivam. O alimento generoso de suas
frutas inumeráveis. O mundo inteiro consome a chamada
"castanha-do-Pará", tão rica de proteína e gordura e sais minerais. O
cacau é originário da Amazônia. Não cabe aqui a louvação nem resumida
das virtudes da nossa floresta. Mas como não gravar aqui, mesmo de
relance, a marca funda, conquanto suja, que deixou na vida da Amazônia
as qualidades das seivas e gomas elásticas da selva. A borracha - a
famosa Hevea brasiliensis - é o fundamento de
todo um período histórico da vida social e econômica da região, durante
o qual a Amazônia conheceu extremos de opulência e de miséria. Milhares
de homens se adentram pela mata para extrair o leite das seringueiras. A
Amazônia entre 1895 e 1909 exporta mais de 400 mil toneladas de
borracha, pagas pelos europeus a preço de ouro. Em Manaus, Belém e
Iquitos vivia-se a grande vida, erguiam-se palácios. Sucede que em 1881,
as sementes da Hevea brasiliensis, levadas pelos ingleses em sacas escondidas, e plantadas na Malásia, frutificaram em Singapura.
Depois em Java, e na Sumatra. Em 1911 o Amazonas produz 45 mil
toneladas, enquanto as seringueiras da Malásia apenas 8 mil. Mas em
1920, a asiática alcançava 360 mil toneladas e a do Amazonas descia a 8
mil, vendidas a preços aviltados. Era o fim do ciclo da borracha. E um
saldo de milhões de seringueiras murchas.

A extração de madeiras da floresta, iniciada desde o instante em que o
primeiro índio derrubou a pri­meira árvore para fazer a sua canoa e
construir a sua maloca, nunca mais cessou. E cada dia cresce mais o
deflorestamento. A floresta amazônica, fragmentada em toros de madeira
de lei, espremida na superfície dos compensados, hoje é levada para
quase todos os lugares do mundo.

Vamos, vem ver o reino vegetal. Entra comigo na espessura úmida. A
floresta já sabe que chegaste, todos os verdes se movem, querendo saber
quem és. O silêncio se anuncia, gota a gota, despencado das asas de
mariposas e pássaros. A selva te recobre, com a sua abóbada de palmas e
te encerra na umidade da escuridão diurna. As frondes colossais acumulam
o tempo, nas nervuras geométricas das folhas. Os caminhos se fecham nos
emaranhados verdes. O silêncio é penetrado pelo punhal agudíssimo do
zum­bido dos insetos, que proclamam, em ondas de sombra, a chegada do
anoitecer na selva. Ouve o lamento ancestral dos guaribas, o silvo
mágico das serpentes, o esturro das feras felinas que percorre vibrando
as distâncias da planície ferida. Subitamente, a selva inteira estremece
e vibram as raízes mais antigas das sumaumeiras altíssimas. É a
floresta amazônica submetida pelo relâmpago, devas­sada na sua tenra
intimidade pelo fulgor vertiginoso do raio.

A chuva é um elemento constante na selva amazônica. Chove todos os dias,
mesmo no verão, que é o tempo da seca. As grandes nuvens bojudas e
brancas do céu equatorial, de repente se movem pesadas, escurecem e se
dissolvem: desce a pancada d'água, o temporal do Amazonas, a ventania
cantando. É de manhãzinha, é no meio do dia, é quando tu vais de noite
atravessando o rio, a escuridão rasgada de relâmpagos, de uma margem à
outra, iluminando a face enfurecida das águas.

Vale registrar o índice de pluviosidade na Amazônia: 3000 mm por ano. É
um dos lugares onde mais chove neste mundo dos homens. E a chuva lava e
vai levando tudo da terra para o rio. O solo desmatado fica sem o pouco
húmus que lhe sobrou, levado pela chuva. E os homens respeitam,
temerosos, as forças do temporal, que verga e derruba árvores imensas,
muitas levadas pela correnteza, troncos que se chocam contra os barcos,
estraçalhando quilhas e calados. Morreu afogado no temporal - é frase
frequente nos barrancos da minha terra.

De um temporal desses, uma vez no Solimões peruano, nós escapamos vivos: o índio Morón e seu filhinho de cinco anos, eu e o caboclo Rios. Eu passara o dia numa pequena aldeia dos índios yaguas, aprendendo a vida com o jovem tuxaua, que muitos sabia do floripendio e de ervas mágicas. Ao entardecer, saímos de canoa, com motor de popa, rumo a Choriaco, pequena povoação ribeirinha. Coisa de duas horas de viagem. Tempo de cheia. Subíamos o rio, rente
à margem da floresta, já na metade do percurso, quando de repente, o
temporal desabou. "Este vai ser dos medo­nhos", disse tranquilo, lá da
popa, onde controlava o motor, o meu amigo índio. Junto a ele, no chão
da canoa, o seu
filho pequenino, todo encolhido de frio. Lembro-me de que, antes de escurecer totalmente, do banco da frente onde eu ia, virei-me e vi o brilho intenso de seus dois olhos enormes. Era o pavor. No banco da proa, sem camisa, o caboclo Luis. Enfrentamos o temporal em silêncio: juntos, caladamente solidários. A correnteza crescia, a canoa balançava na crista das ondas, a chuva vergastava por todos os lados. Houve um momento em que não vimos absolutamente mais nada. Escuridão total. Repetidas veres a proa topava num tronco. O baque surdo, a canoa parecia que ia virar. Ramón inclinava o motor para a frente, para que as hélices ficassem fora
da água, evitando o choque. Só os relâmpa­gos nos ajudavam, cortando o
céu de um lado a outro: a luz fugaz iluminava um tronco enorme, uma
árvore
inteira derrubada, que já vinha quase em cima de nós. Morón, ágil e calado, desviava a canoa num golpe de leme. A escuridão era tanta que eu sequer enxergava a minha mão aberta a centímetros de meu rosto. Mesmo assim, em vários momentos tive a certeza de que o índio Morón conseguia enxergar alguma coisa das águas e da margem. Os seus olhos conseguiam ver. Ou os seus ouvidos, os seus sentidos todos, agudíssimos sabiam o que da canoa se aproximava. Porque de repente ele dava uma guinada para a esquerda, logo aprumava o rumo, ou diminuía a marcha do motor. E emitia um som rouco e grosso e breve com a boca entrecerrada, que incrivelmente se ouvia no meio de todos os fragores do temporal. Era como se ele fosse um parente das águas. A tempestade cessou antes que chegássemos a Choriaco. Pouco antes. E duas coisas que aconteceram agora eu sinto precisão de contar. A primeira é que mal dobramos a boca do Paraná de Choriaco, demos com várias canoas que vinham em nossa direção. Eram homens e mulheres daquele pedaço do mundo que nunca esquecerei: certos de que deveríamos chegar no começo da noite, nos sabiam surpreendidos pelo temporal, e iam ao nosso encontro, para nos salvar. Quando nos viram, foi um imenso e prolongado grito de alegria. A segunda coisa
é que depois do temporal o céu acendeu as suas estrelas, perdão, todas
as suas estrelas, que pairavam enormes, sol­tas no campo da noite.


Agredida, violentada, a floresta se defende. Defende-se antes de tudo
com os seus elementos mais variados. Com o seu calor úmido, abafado. Com
os cipós emaranhados, as touceiras de espinhos, as folhas que provocam
queimaduras de brasa, as hastes que cortam como lâminas. Defende-se com
poderes de encantamento. E como se de repente as árvores e arbustos
mudassem de lugar, fechando o caminho por onde o homem avançou. São as
palmas dos buritizeiros que silenciosa e bruscamente se entrelaçam
inaugurando a noite em pleno dia da mata.

Mas a floresta sobretudo se defende com a sua fauna, que dela faz morada
e cidadela. A fauna defende a flora e se defende. São as nuvens de
mosquitos, os que atacam de dia e os que chegam com a noite. Os
carapanãs, as mutucas sugadoras, os terríveis piuns diurnos. As aranhas
venenosas, caranguejeiras cabeludas, o ferrão venenoso. Defende-se a
floresta invadida com os insetos transmissores de malárias, de febres
negras fatais. Com as formigas de fogo, as tocandiras, que sobem do chão
e descem das árvores de cujas horas o homem corre em desespero. De
repente, ao parar debaixo de um tachizeiro, o homem em poucos segundos
se vê coberto de formigas dos pés à cabeça, sem nada poder fazer contra
as ferroadas insuportáveis.

Defende-se com as suas feras: a onça suçuarana, a onça pintada, a
maracajá. E principalmente com as suas serpentes, a mais temível de
todas a surucucu, porque terrivelmente venenosa. Mas na beira dos rios,
nas águas caladas da selva, nos centros da mata, lá está a fabulária
sucuriju, a constritora.

Sucede que o homem, para vencer a floresta, derrota também a fauna. E
tem na fauna mesma um grande objeto de sua cobiça. O animal tem carne
para ser comida, e couro para ser vendido. Há milênios que os bichos do
Amazonas vêm sendo abatidos, os da terra e os da água. Algumas espécies
estão perto da extinção. O peixe-boi está beirando o seu fim. Nos
últimos anos foi proibida a captura de tar­tarugas e a caça ao jacaré.
Como cumprir a lei na vastidão da selva? Mais de 20 mil onças mortas
anualmente. Os números são assustadores. Na década de 1960 saíram da
Amazônia mais de um milhão de couros de jacarés. Venho de passar mais de
um mês varando rios, paranás e furos do Baixo Amazonas. Ao contrário do
que sucedia há pouco mais de dez anos, não vi nenhum jacaré.
Trans­formados em bolsas, sapatos, cintos, eles caminham hoje pelas
avenidas das principais cidades do mun­do. Na luta contra a natureza, na
última e porventura definitiva luta do homem contra a natureza, que se
trava na Amazônia, o homem parece ganhar. Sem se dar conta de que, ao
fim da cega peleja, ele poderá ser o grande derrotado.

Olha bem, leitor companheiro, olha devagarinho estas fotos, que captam,
para perdurar no tempo, um momento da vida de uma tribo de índios da
Amazônia. Não te chamo a atenção para a beleza, de fina qualidade
poética. Não. Olha bem detidamente, porque estás, seguramente, diante de
um dos últimos testemunhos do que ainda resta, na Amazônia, quase
intacta em sua pureza, da vida dos seres humanos que primeiro habitaram
esta selva e cuja raça está caminhando já muito perto do fim. A verdade é
que no céu dos índios, apodrecido pelo furor branco, já se apagam as
últimas estrelas.

Eles eram mais de um milhão quando chegou o colonizador europeu. De
extermínio em extermínio, depois de quatrocentos anos, hoje eles não
chegam a cinquenta mil. E desses, quase todos já perderam, feridos
fundamente na essência dos valores de sua etnia, a sua própria condição
de índios. Uns poucos ainda resistem, escondidos nos grandes centros da
selva, fugindo ou evitando o máximo que podem o contato com os chamados
agentes da civilização. O que desejam esses pequenos resíduos tribais
ainda espalhados pelo chão da Amazônia, como de outros raros lugares do
Brasil, é simplesmente poder ser e seguir sendo simplesmente índios.
Querem o direito de ser o que são.

É esse direito que lhes foi impiedosamente usurpado pelo branco invasor,
que apodrece os seus corpos com as suas doenças, e mata neles o que
para o índio é o seu próprio centro de gravidade: o gosto e a alegria de
viver. Degradação, palavra que, como estigma, queima a alma da raça que
fundamentalmente nos formou.

Índio aculturado é índio degradado, disse o santo Noel Nutels, pouco
antes de morrer, depois de toda uma vida dedicada à redenção do índio da
Amazônia. A maioria abrumadora dos nossos índios enfrenta hoje essa
degradação imposta pelo branco e que começa já no simples contato com o
civilizado e que se prolonga sem nunca terminar, porque só acaba com a
morte, durante o que a terminologia da proteção oficial chama de período
de transição. É durante esse período que a tribo se vai perdendo de si
mesma, que o índio vai deixando de ser índio, afastando-se dos seus
ritos, dos seus mitos, dos seus valores tribais - enfim, de toda uma
cultura construída durante séculos e que de repente é esvaziada de
significado pela imposição inevitável dos padrões culturais do homem
branco.

A perda de sua cultura conduz o índio à dependência e à submissão aos
trunfos de uma cultura que nunca será a sua, mas da qual ele precisa
para sobreviver. Aqui está o cerne do drama indígena: sub­missão que tem
gosto de traição do próprio ser. De qualquer maneira e seja qual for o
desenvolvimento do contato, o índio sai sempre perdendo. Não perde só a
terra, que lhe é usurpada pelas frentes invaso­ras da sociedade
nacional. Não perde só o vigor físico e a sua própria integridade. Perde
o que era bom, o que era límpido, e é obrigado a incorporar o que é
sujo, o que é ruim. Para poder sobrexistir, ele é obrigado a não confiar
mais. A utilizar-se da mentira e do roubo, finas virtudes brancas. Dos
brancos que da não aprenderam a conjugar o verbo amar. Sabe que está
mentindo, que está degradado. Transforma a dignidade perdida em duro e
silencioso rancor. Que vai degenerando, dor que punge calada até
transformasse no que Darcy Ribeiro, valente irmão dos índios, chama de
desengano. Desengano da vida, desgosto de ser gente.

O problema do índio é portanto um problema do branco. Na medida em que
só começa a existir a partir do instante em que se dá o encontro com o
civilizado. Antes ele era um ser livre, feliz, e glorioso. Dono de seu
poder e de sua forca de viver e de conviver. Na sua tribo, ele é um
integrante dela, como todos os outros, de qualquer sexo ou idade. Com os
mesmos direitos à utilização coletiva dos rios, das matas, das fontes
de subsistência. Com a simples mas poderosa alegria do trabalho coletivo
que faz de um homem irmão de outro homem. Por isso precisamente é que o
índio se degrada e caminha para o extermínio, ao participar de uma
sociedade que se fundamenta na exploração do homem.

Que os yanomami, isolados dos brancos no alto da Amazônia, observem ainda por largos anos a sua límpida glória de viver.

Índios isolados, índios degradados e desculturados, integram o
agrupamento humano da Amazônia, juntamente com o homem típico da região,
o caboclo ribeirinho, o caboclo das cidades, o brasileiro de outros
estados que aqui vivem e os homens de tantos países do mundo que, cada
dia mais numerosos, habitam a Amazônia. Fazem parte do grande complexo
humano, físico e geográfico da planície, que abrange os rios, árvores,
animais terrestres e aquáticos, o solo, as várzeas, as plantas aquáticas
e, por fim mas não por último, o subsolo amazônico, com todas as suas
riquezas.

É o ecossistema da grande Amazônia.

Já não se esconde mais a tensa inquietação a propósito do futuro da
Amazônia, cujo equilíbrio ecológico está fundamente ferido. Por isso
quero contribuir, com este trabalho (elaborado no interior do Amazonas,
nas margens do Paraná do Ramos que banha a pequena Barreirinha, onde
nasci, ao lado do rio Andirá, morada dos últimos resíduos dos índios
maués), para a causa da Amazônia. Quero que ele sirva de testemunho e
sobretudo de advertência.

A Amazônia, que só tem feito servir ao homem, vem sendo explorada e
ocupada de maneira insensata, desordenada e assustadoramente predatória.
A denúncia é feita por cientistas que sabem o que dizem. É claro que a
Amazônia precisa ser ocupada e desenvolvida. Mas sempre levando em conta
os fatores ecológicos e a sua necessária harmonia. A floresta tem que
ser utilizada, mas humanamente. Utilizada, e não degradada.

É momento de lembrar que cinquenta por cento do oxigênio que a
humanidade respira é produzido pela floresta amazônica. Ela não para de
trabalhar, dia e noite, para servir à necessidade fundamen­tal do homem:
o ar que ele respira. Mas é esse mesmo homem que não se cansa de
destruir a floresta generosa. Guardemos este número: mais de 10 milhões
de metros cúbicos de madeira estão sendo extraídos anualmente da nossa
floresta. Isto quer dizer mais de 3 milhões de árvores. Sem contar os
outros tantos milhões que foram necessariamente abatidos para a
construção das grandes estradas tran­samazônicas nos anos recentes. É
assustador o desmatamento da floresta amazônica, que constitui, faço
questão de repetir, a última grande reserva vegetal do planeta. O
desflorestamento é cada vez mais intensivo e indiscriminado. Já houve,
inclusive, a (tentativa de) utilização do herbicida Dioxim, usado na
guerra do Vietnã, que mata a clorofila. Empresas multinacionais,
empenhadas na criação de gado bovino na Amazônia, estão destruindo pelo
fogo grandes extensões de floresta para transformá-los em campos de
pastagem. Alguns incêndios - os jornais divulgaram - foram tão vastos
que chegaram a ser detectados pelos satélites artificiais. Sabe-se
estranhamente pouco sobre o que se passa nos limites do maior latifúndio
do mundo, abrangendo dois milhões e duzentos mil hectares, ao longo das
margens do rio Jari. Onde o desflorestamento tem sido também intenso.
Houve inclusive substitui­ção da floresta.

A Amazônia já não é mais a região misteriosa de antigamente. Muito dela
ainda está por ser conhe­cido. Mas de muito já se sabe. Não é a Manoa
del Dorado, o rio do Ouro, o País das Amazonas. Também já não se trata
apenas do paraíso nem do inferno verde. É a selva com a sua exuberância
de riquezas naturais e os seus recursos minerais que despontam cada dia
maiores, em descobertas que se sucedem. O ferro da Serra dos Carajás, a
bauxita do Trombetas. São reservas calculadas em bilhões de toneladas. O
subsolo se mostra cada dia mais rico. Mas o solo se confirma pobre. E
mais empobrecido se torna com a floresta derrubada. É preciso trabalhar
ainda muito para se chegar ao conhecimento e domínio de técnicas que
favoreçam o uso correto do solo. E preciso ocupar a Amazônia para
ajudá-la a viver, a fim de que ela possa ajudar melhor o homem, quero
dizer, a humanidade.

Fim de tarde de junho deste ano.

Acabo de entrar no barco atracado no lugar chamado Simão, na margem
do belíssimo rio Andirá, onde se abriga uma pequena aldeia dos índios
caterê, denominação recente da primitiva nação maué. Guardo ainda o
gosto forte do guaraná que, em cuia coletiva, foi servida à despedida
por uma índia que o preparou, ralado em língua de pirarucu.

O barco se afasta devagar. Do alto da proa, descubro de repente, o olhar forte
da índia menina sentada no barranco. Aceno-lhe com a mão, ela demora a
responder. Nos seus olhos apertados, cresce um brilho que me perturba,
onde pal­pitam misturados a força e o desamparo. De repente, me lembro
do olhar gravado na última foto deste livro, foto que demoradamente
contemplei tantas vezes. É o mesmo olhar da indiazinha do barranco.
Poder e desamparo, uma espé­cie de esperança amedrontada. É o olhar,
como o da própria Amazônia, de alguém que sente precisão de amor.


Thiago de Mello
Barreirinha, 1978

* originalmente publicado para Instituto Moreira Salles

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