80 idosos vítimas de maus tratos na região de Lisboa
A este propósito, faço seguir dois casos, dos vários que, por uma ou outra circunstância, me foram dados testemunhar de forma próxima:
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O estado de preocupação, tristeza e desalento lançou a senhora numa prostração que lhe retira o ânimo para sair de casa e enfrentar o 5º andar sem elevador em que mora. Além do mais o marido requer vigilância constante. Nem às compras vai, confessa que já nem não consegue ter vontade para cozinhar e que os dois mal se alimentam.
O casal tem dois filhos. Um deles mora e trabalha no Algarve, o outro vem visitá-los de vez em quando, alegando que a vida «não deixa vir mais vezes». Em suma, o casal tem dois filhos mas está unicamente entregue a si próprio.
O estado de exaustão da senhora é deplorável. É óbvio aos olhos de qualquer pessoa de bom senso que senhora não está em condições de continuar a tratar do marido e que, muito provavelmente, a violência da situação acabará por ainda a fazer morrer primeiro do que ele. No entanto, por causa do rendimento de IRS dos filhos, o senhor não tem direito a ser cuidado num lar. A única ajuda que lhes está atribuída por parte do Estado é a visita diária de uma auxiliar para ajudar com o banho, à hora do jantar.
A semana passada a auxiliar estranhou ninguém lhe abrir a porta quando tocou à campainha. Alertou a minha mãe e, com a ajuda de outros vizinhos, foram descobri-la desmaiada no chão, o marido mergulhado em fezes e urina. Ninguém pode dizer há quantas horas ou dias estariam os dois naquele estado de total abandono. A senhora esteve internada uma semana. Durante esse tempo o marido ficou sozinho em casa, confiado à sorte e à vigilância que os restantes moradores do prédio entenderam por bem ir repartindo entre si como podiam. Os filhos do casal alegam que não podem largar os seus empregos para vir cuidar dos pais, nem deixar de pagar as suas despesas e a escola dos filhos para passarem a pagar um lar para o pai. O Estado, por seu lado, teima em recusar ajuda ao casal idoso por considerar que os filhos «ganham bem». E, neste impasse, aquilo que quem está em redor observa é que duas pessoas que deram o seu contributo à sociedade no devido tempo, se vêem agora sem nenhuns direitos e completamente abandonados por todos, num empurrar de responsabilidades que os transcende e lhes é alheio.
Em suma, o Estado entende que não preenchem requisitos para serem ajudados porque os filhos têm dinheiro, os filhos dizem que o dinheiro não lhes chega para tanto e, enquanto isso, o certo é que o casal de idosos se arrasta dia após dia sem ajuda da parte de ninguém: nem dos filhos, nem do Estado. Vale-lhes a sorte de morarem num prédio onde, apesar de já não restar ninguém dos seus tempos, foi morar uma nova geração que não fecha a porta atrás de si e que não é cega a quem vive paredes meias, como sucede em tantos e tantos prédios da cidade. São eles que, não tendo recebido nos seus cofres um único tostão daquele casal e sem ter uma só gota do mesmo sangue a correr-lhes nas veias, se vão revezando a fazer panelas de sopa, a levar-lhes pão, leite e fruta, a ligarem várias vezes por dia para saber se está tudo bem, a lembrarem a hora da toma dos remédios e a galgarem escada a cima para os socorrer sempre que é necessário.
Porque não tendo recebido directamente os seus impostos, todos guardam consciência de que eles foram prestados e foram ou ainda estão a ser usados. Porque não tendo uma gota do mesmo sangue, todos se recordam que, acima de tudo, somos igualmente humanos e que isso, por si só, já nos torna parte de uma mesma família.
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O outro caso: uma tia muito, mas mesmo muito afastada, com 95 anos, viúva e sem filhos, a morar sozinha num prédio do Lumiar que, com os anos, ficou cercado por um bairro problemático onde a droga é traficada no hall da entrada, em plena luz do dia, sem cerimónia e à vista de todos. Além das mazelas da idade, tinha cataratas, osteoporose múltipla, um histórico de alguns acidentes vasculares cerebrais e entrou, de acordo com o diagnóstico dos médicos em 'estado de demência acelerado em virtude da idade avançada'. Tinha momentos desmemoriados em que não sabia quem era. Saía de casa, deixava a porta aberta e vagueiava pelas ruas incapaz de dizer a quem a encontrava onde morava ou como se chamava. Uma manhã fomos encontrá-la caída na casa de banho, inanimada.
Foi internada no hospital. No dia seguinte percebeu-se que perdera o andar, sofrera uma paralisia do lado esquerdo e que o tempo que permaneceu tombada no mosaico frio da casa de banho lhe valera também uma pneumonia. Uma semana depois, nova queda na enfermaria, ao tentar sair da cama, somou ao rol fracturas na bacia, no fémur e no pulso.
O hospital declarou que dificilmente recuperaria qualquer tipo de mobilidade pelo que não reunia condições para continuar a morar sozinha, e recomendou que a assistência social fosse contactada no sentido de ser solicitada ajuda à Santa Casa da Misericórdia, uma vez que a idosa não possuía filhos nem familiares próximos e vivia apenas com uma magra pensão de viuvez.
Quem tentou ajudar nas voltas burocráticas iniciou ali um longo calvário que durou quatro meses, à mercê de exigências intermináveis da assistente social da sua área de residência, a quem foi entregue o processo. Exigiu cartas e procurações para tudo e mais alguma coisa. Pediu documentos onde se vasculhava de fio a pavio a vida e as finanças, inclusivamente, de quem só queria ajudar a encaminhar auxílio a uma idosa de 95 anos que não estava em condições sequer de a solicitar sozinha.
E isto, note-se, não sendo nenhuma das pessoas familiar directo da mesma e não estando, por conseguinte, obrigado por lei a prestar-lhe qualquer tipo de auxílio.
Foram 'reuniões' em cima de 'reuniões' com o único propósito de submeter quem queria ajudar a interrogatórios pidescos, sempre num tom irónico e constrangedor, recheado de insinuações abusivas e de extremo mau gosto, para não dizer ofensivas. E por não ser um mero pormenor, que fique dito que raras vezes a assistente social respeitava os horários que ela própria marcava, mesmo sabendo que as pessoas trabalhavam e precisavam de pedir dispensa no emprego, uma vez que, não sendo familiares directos, não gozavam legalmente do direito a essa tolerância.
A primeira vez que se atrasou, aliás, nem sequer pediu desculpa e quando interpelada respondeu, como se fosse aceitável, que se tinha atrasado para ir almoçar e que não podia retornar ao serviço sem almoçar. Quando lhe foi lembrado que as pessoas com quem ia reunir estavam a faltar aos seus empregos para estarem ali presentes, respondeu com um argumento intolerável: «Não fui eu quem veio cá pedir ajuda. Isto já se sabe, quem precisa tem que se sujeitar.»
Ora, como lhe disse na altura, eu diria de outro modo: o respeito implícito na pontualidade é um pressuposto válido para quem precisa de ajuda, tanto quanto para quem dela não necessita. Mais: talvez quem precisa de ajuda devesse ser quem primeiramente há que poupar a ter que se sujeitar seja lá mais ao que for.
Adiante. Nos últimos encontros ou 'reuniões' a assistente comunicou que a idosa teria que passar para a mão da Santa Casa o direito de plenamente aceder à conta da Caixa Geral de Depósitos onde tinha as magras poupanças de uma vida de trabalho mal retribuída, bem como quaisquer «outros bens pessoais de valor» que eventualmente possuísse. Isto depois das finanças certificarem que não possuía, nem nunca tinha possuído, nenhum bem ou imóvel em seu nome. «Nem nenhum cofre, nem jóias, nada?!», quis saber a assistente. Uma caixinha de madeira com a as alianças de casamento, dela e do marido, um ou outro par de brincos, o relógio de bolso do falecido, um alfinete de peito herdado da mãe... Procurando melhor talvez algum colar ou pulseira sem grande valor. «Mas isso tudo ainda pode valer algum dinheiro», respondeu muito prática. Estaria a querer dizer que em troca de uma cama num lar a senhora seria obrigada a ver confiscados os poucos haveres e recordações pessoais que possuía? Sim, estava exactamente a querer dizer isso. E para o caso de estarmos a demorar a recobrar do choque, tratou de nos animar: «Sabe que nestas idades já nem se liga ao que se tem, ás vezes já nem se lembram delas... E além do mais a senhora está desmemoriada e em processo de demência acelerado, não é verdade?! Pelo menos é o que eu tenho aqui no relatório médico!».
Acresce que a dita reforma deixaria de imediato de ser paga à idosa e passaria a ser automaticamente depositada numa conta da Santa Casa. Para pagar as despesas do lar onde fossem colocá-la, explicou. E mesmo assim ia dar prejuízo, também acrescentou. Perguntaram as pessoas que tratavam de requerer o apoio em nome desta idosa, com que dinheiro ficaria ela para pagar médicos, remédios crónicos e fraldas, já para não falar noutra qualquer necessidade que pudesse vir a ter: uma ou outra peça de roupa, por exemplo, uma vez que nada disso seria assegurado pela Santa Casa ou podia ser considerado incluído «nos serviços do lar». Encolheu os ombros e disse com a maior naturalidade do mundo: «Pois isso agora... Não se pode ter tudo, não é?! Mas pode ser que no hospital lhe dêem a medicação de graça, se qunado precisar de ser consultada chamarem antes o 112 e a levarem às Urgências... Quanto à roupa, com estas idades já só precisam de dois pijamas para irem trocando e de pantufas. Não estou a ver que se justifique ou precise de mais do que isso».
Ao fim de quatro meses de andanças, exigências de documentação que custou bom dinheiro, implicou perder um tempo incalculável em filas e deslocações múltiplas para aqui e para ali, com a assistente social a exigir inclusivamente acesso aos extractos bancários das pessoas que estavam a ajudar a dar as voltas necessárias para que a idosa tivesse o apoio que necessitava e a que tinha direito, sem sequer serem seus familiares directos, o processo foi arquivado a pedido dos mesmos.
O hospital não podia ter a idosa internada por mais tempo, a sua saída estava iminente e era necessária uma solução. A assistente social continuava incapaz de garantir fosse o que fosse quanto ao destino da senhora, não obstante o volume cada vez maior de papelada que ia juntando ao processo.
As mesmas pessoas uniram-se e, dentro das suas próprias dificuldades financeiras, assumiram elas próprias o pagamento do lar da senhora. Para ser suportável foi preciso procurar fora de Lisboa. Ficava a 57km da cidade e, mesmo assim, a idosa nunca passou uma semana sem que a visitassem pelo menos duas vezes por semana. Quando morreu, o médico que passou a certidão de óbito comentou: «esta senhora, com todos os problemas que tinha, não teria durado mais do que uma semana se não tivesse tido quem cuidasse dela».
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Se, por um lado, os dois exemplos acima me compadecem profundamente, por outro representam dois grãos de esperança preciosos no ser humano a que sou imensamente reconhecida e grata, porquanto todos os dias me dão testemunho próximo de que nem todos se eximem da responsabilidade social e cívica para com o outro. Mesmo quando o Estado e a família a sacodem por cima do ombro e a descartam para trás das costas.
Por mais revoltante e gritante a situação, vale-me o consolo de olhar em redor e perceber que por pior que seja o Estado, há ainda (felizmente!) larga parte da sociedade que segue sendo incomparavelmente melhor do que ele. Enquanto assim for, suponho, estamos todos a salvo. Até porque, bem vistas as coisas, a sociedade é de longe bem mais importante do que o Estado. Em última instância, basta olhar em volta para ter a certeza que mais importa: podemos, sim, sobreviver a um mau Estado, a um Estado desleixado, displiscente, injusto, indiferente e insensível. Qualquer que ele seja, mesmo que o nosso próprio Aquilo a que não sobreviveríamos seguramente era a uma sociedade que se revelasse ser pior ou tão só igual a ele.
Não me alongo mais. Creio que estes dois exemplos bastam para deixar claro que o maior agressor da população idosa é o Estado português. É o Estado – esse mesmo que deveria constituir garante máximo e exemplo superior – o primeiro a somar quotidianamente tristes exemplos de maus tratos continuados a idosos. É o Estado, sim, o primeiro responsável pela vergonhosa constatação de que envelhecer em Portugal, é salvo raríssimas excepções, passar invariavelmente à condição de vítima.
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