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Eduardo Gianetti e o tema do 'auto-engano' numa gravação antiga do programa Roda Viva

Posted: 8 de mar. de 2010 | Publicada por AMC | Etiquetas: , , ,



Um excerto do arquivo do célebre programa Roda Viva, da TV Cultura, emitido a 19 de Janeiro de 1998. O tema do auto-engano era a questão central no debate com o economista e cientista político Eduardo Gianetti, que tinha lançado por essa altura um livro homónimo. 

Infelizmente o  take , demasiado curtinho, não é muito elucidativo do pensamento do autor. Porém, clicando sobre o link abaixo e expandindo o texto, é possível aceder à transcrição integral do debate.



[TRANSCRIÇÂO INTEGRAL DO PROGRAMA]

Matinas Suzuki: Boa noite. Ele é um dos mais jovens e mais respeitados especialistas brasileiros em história do pensamento econômico. No centro do Roda Viva o economista e cientista social Eduardo Gianetti. Ele tem 40 anos, é formado em economia e filosofia pela Universidade de São Paulo e é PHD em economia pela universidade de Cambrigde, na Inglaterra. Eduardo Gianetti é professor de economia e pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas da USP [Universidade de São Paulo]. Em vários ensaios e 6 livros já escritos, ele vem expondo suas idéias sobre os rumos econômicos, o poder público, vícios e ética na economia e também sobre o comportamento da sociedade brasileira. No livro que acaba de lançar, com o título Auto-engano [pela Companhia das Letras], Eduardo Gianetti faz um estudo sobre os enganos e as mentiras que existem na relação entre as pessoas, enganos e auto-enganos que muitas vezes dão um sabor à vida, mas que também podem produzir fracassos. Para entrevistar o professor Eduardo Gianetti, nós convidamos: Marco Antonio de Rezende, diretor de redação da revista Vip Exame; José Nêumane, que é editorialista do Jornal da Tarde; a economista Dorothea Werneck, presidente do Excel Banco de Investimento e ex-ministra do Trabalho, Indústria, Comércio e Turismo; o economista Paul Singer, professor da Faculdade de Economia de Administração da USP e ex-secretário de Planejamento da prefeitura de São Paulo; o ensaísta Antônio Medina Rodrigues, professor de língua e literatura grega da Universidade de São Paulo; e o Flávio Paim, editorialista do jornal O Estado de S. Paulo. Boa noite, professor Eduardo.
Eduardo Gianetti: Boa noite, Matinas.
Matinas Suzuki: Bom, vamos começar por uma pergunta que eu acho que está na cabeça de todo mundo: por que um livro sobre o auto-engano?
Eduardo Gianetti: Uma motivação, antes de mais nada, muito pessoal. É um problema que me acompanha há muitos anos. Eu acho que todo ser humano no fundo deve se preocupar se ele está sendo franco, sincero e honesto consigo mesmo. Eu acho que a relação que define o ser humano, no fundo, antes de qualquer outra, é a relação que ele tem com ele mesmo. Mas é uma relação muito escorregadia, muito viscosa, se a gente parar para pensar, pois é muito difícil nós termos conhecimento seguro sobre o que acontece na nossa mente. Em muitas situações a gente acaba descobrindo que de alguma maneira embarcou em uma ilusão, em uma fantasia, criada por nossa própria mente. É o caso do sonho para dar um exemplo, estou falando em um caso extremo. Mas, antes de mais nada, por uma preocupação pessoal. Essa foi a primeira vez na vida que eu investi o meu trabalho de pesquisa e de reflexão em um tema puramente meu. Tentei pensar diretamente o problema, não fazer história das idéias, tentei trazer a minha experiência pessoal sobre essa questão e foi realmente um privilégio para mim poder investir.
José Nêumane: Professor, já que é uma experiência pessoal sua, me diga, o livro é dedicado à sua mãe, será que é porque ela foi o primeiro ser humano que o senhor enganou?[Risos]
Eduardo Gianetti: Não foi, mas o livro não é sobre engano interpessoal, é sobre o auto-engano. Ele é dedicado à minha mãe, entre outras coisas, pela sua influência. Minha mãe é psicanalista e minha mãe é poeta. Eu acho que ela teve uma influência muito marcante em toda a reflexão em que desembocou nesse livro.
Paul Singer: E posso fazer uma pergunta? Enfim, já que estamos nas coisas mais gerais, eu queria dizer, em primeiro lugar, que me encantou o seu livro. Eu li com muita curiosidade e com muito proveito. É um livro de filosofia, afinal, não de economia, não é meu campo de competência. Eu fiquei com uma dúvida, que é possível ter por causa da honestidade com que você fez esse livro. Você mesmo diz, na página 118, que o auto-engano é logicamente impossível. Você diz isso nos seguintes termos: "A primeira vista, a noção de auto-engano esbarra em grave contradição. Para que eu me engane com sucesso dentro do modelo proposto é preciso que eu minta para mim mesmo e ainda por cima acredite na mentira." Eu acho que isso me convenceu nesse momento, quando eu li isso, que o auto-engano é possível. Eu confesso que terminei o livro continuando a achar que ele é impossível. Quer dizer, o seu livro é um esforço muito grande, muito interessante, diria ainda proveitoso, de a gente procurar auto-entender-se um pouco. Mas você acha que o auto-engano logicamente é possível?
Eduardo Gianetti: Dentro da lógica padrão convencional. A lógica tem um princípio que é o princípio da não contradição. Você não pode aceitar que há e não há ao mesmo tempo. No caso de auto-engano, de alguma maneira muito estranha, que nós ainda não compreendemos muito bem, isso acontece. Veja, aí há um ponto interessante, a diferença entre enganar o outro e enganar a si mesmo. Quando você engana o outro, você sabe alguma coisa que o outro desconhece e você manipula a informação, existe uma simetria de informação que te permite fazer isso. Não há nenhum problema lógico. A lógica está perfeitamente satisfeita, a ética não gosta, mas a lógica aceita. Quando é o auto-engano, você, além de ter um problema ético, na relação que você tem com você mesmo, você tem um problema lógico, porque você não tem essa assimetria de informação. Como é que você pode ao mesmo tempo mentir para você e acreditar na mentira? 
Paul Singer: Pois é.
Eduardo Gianetti: E, no entanto, a gente faz. E, no entanto, é parte da experiência, eu diria, universal do ser humano. Eu colecionei muitos exemplos no livro. Você conversa com todo tipo de pessoa, desde a menos educada até a mais educada e todos reconhecem em si essa experiência. Durante muitos anos, eu conversei com pessoas à respeito desse assunto e cheguei a conclusão que a experiência é universal. Ela está na literatura, ela está na história das ciências que tem alguns exemplos, ela está na minha experiência, na experiência de todos, eu imagino. Só para completar, um exemplo, que eu acho que talvez seja o mais acabado de auto-engano e o mais fácil de ser identificado: o sonho. O que acontece no sonho, no sonho noturno? Enquanto o sonho está sendo sonhado, ele te dá uma sensação exata de que é uma experiência genuína de que é algo que está sendo vivido. Você tem a sensação, a experiência interna, diante do sonho, de que aquilo está acontecendo na realidade. Quando você desperta, você se dá conta de que aquilo não ocorreu, que era apenas um sonho. Agora, o sonho ao ser sonhado, convenceu a sua experiência interna da sua realidade. Então, uma parte da sua mente conseguiu convencer as outras de que aquela ficção, aquela fabricação subterrânea do seu pensamento, que é o sonho, tinha uma realidade própria, e não é o caso. Então, o fato da experiência do sonho eu acho que revela, entre tantas possibilidades, essa ocorrência do auto-engano. Evidentemente, existe o sonhar acordado, existe o devaneio, existe a fantasia, uma série de outras coisas que eu tentei mapear e discutir no livro.
Dorothea Werneck: Nesse ponto, até para entrar um pouco em algo que é um tema interessante... Afinal, se você não acredita nisso, o livro não tem sentido. Isso não acontece porque no início é um certo processo e, no começo, eu acho que eu sei? Eu tenho uma verdade dada e eu me engano em cima dela. Quer dizer, em um determinado momento, torna-se de fato um auto-engano dentro do que está descrito, porque eu me dou conta que aquele primeiro momento, aquela primeira idéia, aquela primeira crença, é absolutamente uma falsidade. E eu posso continuar nesse processo. Aí, sim, no auto-engano, por algum tempo, porque às vezes não dá para sair fora, pois é mais confortável. Porque, então, eu vou sofrer muito, levando ao pé da letra aquela situação que não me agrada, tanto é que eu não acreditei nela no começo. Então, talvez, eu não saiba se isso eu captei corretamente.                       
Eduardo Gianetti: Agora, tem um problema, Dorothea, se você se dá conta de que você está mentindo para você mesmo, você não acredita mais.
Paul Singer: Acabou o auto-engano.
Eduardo Gianetti: O auto-engano não é compatível com a tensão consciente. Ele é alguma coisa que tem que ser feita de forma espontânea, porque senão não cola.  
Dorothea Werneck: Mas você tem o benefício da dúvida.
Eduardo Gianetti: Aí, já não é auto-engano. A hora em que você começa a duvidar, que você perde aquela certeza íntima, deixou de ser auto-engano.
Dorothea Werneck: Não, na dúvida, você não tem certeza nem que sim e nem que não.
Eduardo Gianetti: Mas o estado de dúvida não é um estado de auto-engano. O auto-engano é quando você está convencido da realidade de alguma coisa que é fantasiosa, que é ilusória, que não é real.
Paul Singer: Mas, uma parte de você sabe. Esse é o ponto que eu queria explorar um pouco. Quer dizer, o auto-engano exige que você esteja enganado. Ou seja, que esteja convicto de algo que não é verdadeiro, mas que alguma parte de você está sabendo que não é verdadeiro.
Eduardo Gianetti: É melhor ver exemplos. Eu acho que a melhor maneira de ver isso é com alguns exemplos simples, como da pessoa que embarca no consumo de drogas. Ela acha que com ela não vai acontecer o que aconteceu com os outros. Se não fosse ela, ela veria o problema, mas como é ela, ela acha que não, porque com ela é diferente: "Comigo vai ser diferente". Alucinações, as pessoas têm ilusões, têm experiências sensoriais muito nítidas e convincentes. Depois, elas se dão conta de que não era. É o caso da anorexia, quer dizer, a mulher se olha no espelho e se sente obesa estando esquálida, mas a sensação íntima dela é de que está obesa. Ela pára de comer e por aí vai. Você tem milhões de exemplos.
Antônio Medina Rodrigues: Mas são impressões, porque eu estou entendendo o auto-engano, segundo você explica, como um ato voluntário de se equivocar acerca de alguma coisa interior.   
Eduardo Gianetti: Não digo voluntário, Medina, pois se for voluntário não cola. Se eu chegar para mim e dizer amanhã alguma coisa na qual eu não acredito, por exemplo, que eu sou o rei do universo, eu não vou conseguir me enganar de que eu sou o rei do universo. Para eu conseguir me enganar tem que ser alguma coisa com, pelo menos, aparência de verdade para mim. Aí eu vou.
Antônio Medina Rodrigues: Mas, por exemplo, no caso de ter uma responsabilidade. Eu tenho algum grande compromisso que eu não posso cumprir dentro de alguns anos. Então, eu procuro reprimir com tanto vigor essa idéia que eu acabo esquecendo esse compromisso.    
Eduardo Gianetti: O esquecimento perde o caráter voluntário. Se você lembrar o tempo inteiro que você está deliberadamente reprimindo aquele pensamento, aquela idéia, a coisa não funciona. O momento crítico do auto-engano é exatamente esse: você esquece.
Antônio Medina Rodrigues: Não, mas, numa repressão, aquela idéia é esquecida por mim.
Eduardo Gianetti: E você não só tem que esquecer como você tem que esquecer que esqueceu.
Antônio Medina Rodrigues: Certo.
Eduardo Gianetti: Senão, não vira auto-engano.
Antônio Medina Rodrigues: Então, seria auto-engano?
Eduardo Gianetti: Você tem que esquecer que esqueceu. No momento em que você esquece que esquece, é o auto-engano. Um outro exemplo muito comum da nossa experiência é a experiência artística, de você ir ao cinema, ir a um teatro, e viver a subjetividade daquela representação intensamente enquanto você está lá. Quando você sai, você percebe: “Puxa, como é que eu me envolvi tanto com a trama, com esses personagens, se a minha vida é complemente diferente?" No entanto, enquanto aquilo foi vivido, tinha uma realidade que pode te levar a chorar a viver alegria.
José Nêumane: Isso envolve o princípio do prazer, está certo. No Brasil, se fala cada vez mais: me engana que eu gosto. O auto-engano é um gosto ou é uma necessidade?
Eduardo Gianetti: Pode ser ambas as coisas, não diria que é uma ou outra. Muitas vezes ele traz uma satisfação íntima, de você se convencer de alguma coisa que te dá enorme prazer, enorme satisfação, por acreditar. Por exemplo, quando Hobbes, o filósofo inglês [Thomas Hobbes, (1588-1679)], provou a quadratura do círculo [um dos mais famosos problemas da matemática, mais especificamente da geometria] e se convenceu de que a prova dele era geometricamente impecáve. Ele viveu o resto da vida acreditando que tinha provado matematicamente a possibilidade de fazer a quadratura do círculo. Quando os geômetras do ócio o acusaram de cometer erros idiotas, imbecis, ele falou que aquilo era inveja dos geômetras do ócio, que estavam babando pelo fato de ele ter conseguido fazer uma coisa que se perseguiu durante os séculos, que é uma quimera. Hoje se sabe que não é possível fazer a quadratura do círculo, mas isso deu uma enorme satisfação ao Hobbes. Um outro químico, Boyle [Robert Boyle, (1627-1691)], pai da química moderna, se convenceu, logo antes de morrer, que ele tinha descoberto a fórmula química para o ouro. Com metais comuns ele era capaz de produzir o ouro. Ele morreu eufórico porque, finalmente, tinha encontrado o segredo. Ele ficou tão convencido disso internamente que ele deixou como herança para o melhor amigo dele, que era o filósofo Hooke [Robert Hooke, (1635-1703)], a fórmula química da produção do ouro. E o Hooke, que não conhecia muito química, ficou algum tempo tentando produzir ouro com aquela fórmula e não conseguia. Até que o Newton [Isaac Newton, físico, (1643-1727] disse para o Hooke: "Você nunca vai conseguir, isso aqui não vai funcionar." O Boyle morreu em êxtase, achando que encontrou a fórmula ou química...
José Nêumane: Mas existe o exemplo oposto, ou seja, quando o auto-engano produz a infelicidade?
Eduardo Gianetti: Existe. Estados depressivos que te levam a acreditar em coisas melancólicas a seu próprio respeito, você vira um pária na sarjeta da sua própria subjetividade. É aquela coisa do Fernando Pessoa [poeta português, (1888-1935)]: "Não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu". Isso é um auto-engano. É de alguém que está no estado depressivo do auto-engano. É uma tortura nesse caso.
Antônio Medina Rodrigues: Você parece crer, embora não tenha visto nenhuma afirmação peremptória, que o auto-engano é o mal.
Eduardo Gianetti: Não, pelo contrário, eu tentei muito no livro mostrar que o auto-engano, ao mesmo tempo que é semente de coisas ruins, ele pode ser também, em muitos casos se mostra assim, a semente de algo muito  positivo, muito criativo.
Antônio Medina Rodrigues: Quando a pessoa percebe que estava enganada?
Eduardo Gianetti: Não, não, quando o auto-engano, ou a mentira que você conta para você mesmo, te faz embarcar em projetos, que se fossem fria e racionalmente examinados você não embarcaria... Por exemplo, Paul Gauguin [Eugène-Henri-Paul Gauguin (1848-1903), pintor francês], quando saiu para o Taiti para se tornar um grande artista, como ele se tornou, uma pessoa de fora que examinasse friamente, logicamente e racionalmente o que ele estava fazendo diria: "Esse cara é um louco. Ele vai largar tudo, ele tem um emprego confortável como corretor de ações, ele tem uma família, tem 2 filhos, ele nunca se destacou como pintor." E, de repente, ele jogou tudo para cima e foi para o Taiti embarcar em um projeto de ser pintor. Qualquer observador externo, examinando uma situação desse tipo, falaria: "Esse sujeito está praticamente insano. É uma loucura."
Paul Singer: Sobretudo se fosse economista? 
Eduardo Gianetti: Os economistas. Concordo.
Paul Singer: Está falando do examinador racional?
Eduardo Gianetti: Exato.
Paul Singer: Lembra muito o operador econômico que sai julgando com probabilidades. Quer dizer, qual é a probabilidade de um corretor de ações de 40 anos naquelas condições virar um gênio da pintura?
Eduardo Gianetti: É praticamente zero. E, no entanto, aconteceu.
Paul Singer: Pegando o caso do Gauguin, há outras variáveis que escapariam ao olho do economista, mas talvez não do pintor?
Eduardo Gianetti: Certamente há. Para a humanidade foi melhor que esse homem tenha cometido o ato de aparente loucura que ele cometeu, porque a humanidade hoje agradece a existência do Paul Gauguin, que é um pintor imortal. Agora, à luz da racionalidade estritamente econômica, jamais se justificaria uma aposta imponderável desse tipo. Um grande economista, nós até conversamos sobre isso, Keynes [Johan Keynes, economista mais influente do século XX, criador da macroeconomia,(1883-1946)] falava dos animals spirits, não é? Dos espíritos animais que movem um genuíno empreendedor, que age movido por forças que ele não domina totalmente, não conhece, e faz investimentos em capacidade reprodutiva, que a lógica estritamente econômica muitas vezes não justifica, não corrobora.
Paul Singer: Mas isso é auto-engano ou é intuição?
Eduardo Gianetti: Rompe com o princípio da racionalidade e da ação calculada com bases inconseqüentes previsíveis. É uma ficção, alguma força. O Keynes usava essa expressão, espíritos animais, que é alguma força que está dentro da psicologia, da motivação desse indivíduo e que ele não conhece devidamente. E ele não sabe muito bem porque está fazendo isso, é quase um chamado. Ele se sente chamado a fazer alguma coisa que ele não sabe muito bem o que é.
José Nêumane: O senhor classificaria, por exemplo, o suicídio coletivo, do pessoal que seguiu Jim Jones [reverendo americano que comandou um suicício coletivo em Jonestown, nos Estados Unidos, em 1978] de uma grande tragédia de um auto-engano?
Eduardo Gianetti: Acho que poderia ser. Seria, me parece que é cabível.
José Nêumane: Canudos? [Guerra de Canudos, entre 1893 e 1897, movimento social e religioso de luta contra o regime republicano. Os crentes, comandados por Antonio Conselheiro, foram massacrados pelas tropas do governo. O escritor Euclides da Cunha, então repórter do jornal O Estado de S. Paulo, tranformou suas reportagens no grande clássico da literatura brasileira Os sertões]
Eduardo Gianetti: É.
José Nêumane: O episódio do massacre de Pedra Bonita, quer dizer, aquele sonho. [O massacre de Pedra Bonita aconteceu entre 1835 e 1838, em Pernambuco. Na época, um fanático, conhecido como João Antônio, reunia pessoas em torno de um grande rochedo e estimulava suas mortes com base em um cordel sobre D. Sebastião, rei de Portugal. O fanático afirmava que o rei faria do lugar um reino encantado e que, para isso, a pedra precisaria ser banhada de sangue]
Eduardo Gianetti: São ações de auto-engano coletivo.
Marco A. Rezende: Professor Giannetti, por favor, eu acho o tema do livro fascinante e me interessa mais o aspecto coletivo do auto-engano do que o pessoal. No pessoal, eu sou vítima dele freqüentemente. A propósito do coletivo, não lhe parece espantoso, no caso do auto-engano ideológico, que muita gente boa, competente, conhecida, tenha ficado fascinada, por exemplo, pelo modelo soviético? Mesmo depois da queda do Muro de Berlim, mesmo depois do golpe contra o [Mikhail] Gorbatchev ainda havia gente acreditando que houvesse alguma coisa de bom naquele sistema que estava claramente falido, que era repressor, enfim. Não tinha nada de positivo e ainda hoje pode se encontrar no Brasil gente que faz uma análise ou tem uma visão muito positiva da ditadura cubana, por exemplo. Acham que Cuba tem muita coisa a nos ensinar. Digamos que Cuba até tenha coisas básicas, como educação, saúde e aquelas coisas de sempre, mas é uma ditadura sem sentido, em que o irmão do ditador já está nomeado como seu sucessor [referindo-se à Fidel Castro, que em abril de 2008 renunciou ao poder e teve seu irmão, Raul Castro, indicado como sucessor]. Por que esse tipo de auto-engano, de ilusão, pode durar tanto tempo? No caso da União Soviética, [com o comunismo stalinista] por exemplo, nos anos 30, o Boris Souvarine [ativista comunista e escritor (1895-1984) um dos fundadores do PC francês e dos primeiros biógrafos de Stalin] já tinha denunciado o regime, o caráter repressivo e idiota do regime. Depois, o André Gide [1869-1951, escritor francês], depois, nos anos 50, Yves Montand [1921-1991, cantor francês], muita gente foi denunciando, para não falar do Krushev [Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Sociética por 11 anos, considerado um líder político mundial, (1894-1871)] que denunciou os crimes do Stalin. No entanto, essa ilusão perdurou tanto tempo. Como é possível ocorrer esse fenômeno de massa duradouro assim?
Eduardo Gianetti: Eu não sei se tem uma resposta geral para isso, mas um caso posso configurar razoavelmente. Você fez uma aposta tão alta, investiu uma esperança tão grande em alguma coisa, que você não pode admitir para o resto da sua vida que aquilo fracassou, porque aquilo destrói a sua identidade, a sua vida e a maneira como você se relaciona com o mundo. A sua identidade como pessoa ficou tão misturada a essa crença, com o modelo econômico, no sucesso de uma revolução, em alguma coisa que preencheu tanto e deu tanto sentido à sua trajetória, à sua existência, que depreciar repentinamente isso levaria a pessoa a uma depressão e a um estado de desnortiamento completo. Então, a pessoa se agarra ao fiapo de esperança, de crença, que resta e que dá uma estrutura e um sentido numa trajetória, eu acho que isso acontece.
Matinas Suzuki: Um pouco na linha do que o Marco Antônio estava perguntando para o senhor, o Marcos César de Freitas, diz o seguinte: "Na sua opinião, o marxismo foi ou é um grande formulador de padrões de auto engano?"
Eduardo Gianetti: Eu não o condenaria, eu acho que o marxismo, como qualquer doutrina econômica, tem muita coisa boa e muita coisa ruim. Marx, na minha percepção, teve uma ilusão que é formidável e que todos nós adoramos, que é a seguinte: você encontrar o enredo secreto da história da humanidade. O Marx acreditou nisso para ele mesmo e vendeu para muita gente a idéia de que o enredo da evolução da história humana podia ser desvendado. Uma lei simples explicaria a sucessão dos modos de produção desde o início da humanidade até o futuro, na superação do capitalismo etc. Qual era o enredo secreto do Marx? Existe uma contradição entre o impulso da humanidade de dominar a natureza de um lado, que é muito poderoso e que acaba se afirmando, uma contradição entre isso e a maneira como está organizado o sistema econômico, as chamadas relações de produção. Toda vez que o crescimento das forças produtivas entram em choque com as relações de produção, a sociedade entra em crise, entra em convulsão, e aparece um outro modo de produção superior àquele, que vai liberar novamente as energias criativas do homem. Marx acreditou que podia contar toda a história da evolução econômica do homem com base nesse enredo, que é simples, que nos dá uma sensação íntima de poder. De repente, a história do homem cabe na palma da sua mão. Quando a gente discute isso com os alunos, eles ficam encantados: "Puxa, finalmente eu tenho uns milênios de evolução da história humana resumidos de uma forma fantástica, simples, e que me permite ver a auto-estrada dos modos de produção." É aquela sensação de poder intelectual inebriante, é uma coisa muito forte. Hoje, nós vemos que não é tão simples essa sucessão de modos de produção. Eu já tenho dúvidas, para ser muito franco, se o capitalismo existiu. O capitalismo é parte da criação desse mobiliário conceitual de Marx, que facilita muito as coisas para nós. A gente imagina que existe um grande "sistemão" que, desde a Primeira Revolução Industrial até hoje, está aí dominando tudo. Nós podemos criticar ou achar que em um momento ele vai ser superado, talvez abruptamente, por um outro modo de produção. Nos acostumamos a pensar assim, mas eu não vejo mais as coisas como tão simples. Eu não sei se existe essa sucessão de modos de produção, se o que acontece na evolução humana tem esse sentido de um impulso de dominar a natureza versus relações de produção e propriedade que, eventualmente, entra em conflito e assim por diante. O que eu diria, para resumir, finalizar a resposta, é o seguinte: tomar cuidado com essa sensação de que você descobriu o segredo da trajetória da humanidade, tem uma filosofia da história e desvenda todos os segredos do que aconteceu e do que acontecerá. Ninguém descobriu isso ainda, não sabemos sequer se essa evolução tem um sentido e leva para alguma coisa. Nós estamos muito mais perdidos do que Marx imaginava.  
Matinas Suzuki: A Jurema Nascimento, de Sorocaba, pregunta, sobre as relações do auto-engano com uma realidade externa: "O senhor não acredita que o sistema econômico em que estamos inseridos e que nos torna seres individualistas favorece o auto-engano?"
Eduardo Gianetti: É muito fácil para todos acusar o sistema e atribuir a ele a culpa e a responsabilidade pelos nossos problemas. Isso  torna a vida muito mais confortável, você imaginar que o problema está todo fora, em um sistema, e não está dentro de cada um de nós. Não dá para falar com essa tranqüilidade que "o homem é bom e a sociedade o corrompe". Eu não tenho tanto certeza. O próprio Rousseau [Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço (1712-1778)], já que entrei nesse caminho, deixou 5 filhos sem indicação de paternidade na porta do orfanato. Será que foi o sistema corrupto que levou Rousseau a cometer essa atrocidade de abandonar 5 crianças recém nascidas? É muito confortável para ele acusar o sistema: "Olha, se não fosse o sistema eu não cometeria isso". Eu já não sei.
Fábio Paim: Eduardo, a forma com que você tem tratado o seu tema, me faz perguntar se o economista está ficando para trás e se o filósofo está imperando no seu trabalho. Foi isso que eu senti ao longo da leitura [do livro] que, aliás, foi uma leitura rápida, quero ler mais vezes, porque sugere inúmeros temas, inúmeras reflexões, principalmente sobre autoconhecimento. Mas me ficou a indagação: o economista ou o filósofo, quem vai predominar?
Eduardo Gianetti: Olha, existem duas tradições na história do pensamento econômico. Existe uma tradição de economia que é mais de matemática, de engenharia econômica, que é da modelagem, da ergonometria e dos métodos quantitativos, essa é uma tradição. Existe uma outra tradição na qual a economia é a economia política e está muito ligada a problemas e questões filosóficas, como ética e psicologia. Essa tradição é muito rica e considero meu trabalho como pertencendo a essa segunda linhagem da filosofia econômica. Quem são os autores, quem são os grandes pensadores dentro desse campo da filosofia econômica? Primeiro de todos, sem dúvida alguma, Adam Smith [(1723-1790) economista e filósofo escocês, considerado o  pai da economia moderna. Principal teórico do liberalismo econômico, defendia a livre concorrência, a divisão do trabalho e o livre  comércio, como forma de alcançar a harmonia e a justiça social] que além de autor de Riqueza das nações é autor da Teoria dos sentimentos morais, um livro que  foi muito importante para mim ao pensar o tema do auto-engano. Jonh Stuart Mill [inglês, (1806-1873)], é um autor que era filósofo e se tornou um grande economista político, pertence claramente a essa mesma linhagem.  
Fábio Paim: Karl Marx?
Eduardo Gianetti: Marx, sem a menor dúvida. Todo projeto de Marx, em uma outra tradição, é juntar a crítica da economia clássica inglesa com a filosofia pós-kentiana alemã, na qual Marx se formou. O doutorado de Marx foi em filosofia, filosofia antiga inclusive, e ele fez o projeto de articulação de uma crítica à economia clássica inglesa à luz de  uma tradição filosófica na qual ele se formou.
José Nêumane: Aliás, antes dessa moda de economismo que se vive hoje, se falava realmente da economia política ou política econômica, não havia economia...
Eduardo Gianetti: O nome da disciplina foi economia política até o final do século 19. No final do século 19 surgiu a pretensão da economia de se tornar uma ciência com o mesmo status das ciências naturais, uma ciência exata, uma ciência rigorosa, uma ciência com o mesmo prestígio das ciências naturais. Então, eles abandonaram o termo política em economia política e a economia virou economics, porque eles achavam que uma ciência jamais poderia ter o nome política no seu rótulo, na sua denominação.
Paul Singer: Aproveitando a deixa, vou voltar ao Marx. Acho que você, ao expor um dos pensamentos de Marx, talvez o que mais nos influenciou, que é o da relação entre desenvolvimento das forças produtivas em relações de produção... Eu não sei se dá para dizer que isso foi um engano ou não. Eu vejo isso como uma hipótese e uma hipótese colocada em termos humildíssimos. Ele aparece em um prefácio que ele escreveu em um dos livros dele, dizendo: "Eu quero deixar claro ao  leitor", como uma espécie de desnudamento...
Eduardo Gianetti: Posso fazer só um parêntese? Eu acho que o engano está na crença ilusória de que isso resolve todos os problemas.
Paul Singer: Mas ele nunca disse isso.
Eduardo Gianetti: Não, não, aí já não estou falando de Marx, estou falando do que aconteceu.   
Paul Singer: Era isso que eu queria dizer a quem está assistindo o programa. A interpretação dessa página e meia do prefácio para economia política é a chave de todo o desenvolvimento histórico de Marx. Ele não tinha essa interpretação.
Eduardo Gianetti: Mas você concorda que se tornou quase um dogma e se investiu uma enorme quantidade de crença na tradição marxista, nessa visão, nessa filosofia da história?
Paul Singer: Eu acho que houve, eu concordo com você de que houve um investimento, inclusive, um motivo etc. Mas isso crucificaria a revolução que se desejava, por outro lado, enquanto hipótese científica, deu lugar a uma produção histórica muito respeitável. Não sei qual a sua opinião. Eu diria que, principalmente, a historiografia inglesa foi muito influenciada por essa hipótese de Marx e produziu resultados interessantes.
Eduardo Gianetti: Não, eu não discordo. Eu admiro a historiografia marxista inglesa antes de mais nada porque ela faz pesquisa empírica, ao contrário da francesa, que fica no plano puramente conceitual e não leva a nada. Realmente, é muito sem substância. Agora, o que mais vejo em Marx, hoje, o que mais me instiga e que acho mais merecedor de um aprofundamento, de uma reflexão? Eu acho que é a discussão do jovem Marx sobre a alienação, é uma coisa de uma enorme atualidade, muito rica, e que pode até ser - quem sabe e quem sou eu para dizer isso -, mas pode até ser um caminho de renovação do marxismo. Isso, depois de perder tantas batalhas e tantos confrontos, como aconteceu ao longo do século XX. Essa idéia da alienação está muito ligada ao tema do auto-engano. É o fato de que as pessoas não se percebem levando a vida que poderiam levar e Marx fez uma formulação muito boa nos manuscritos de 44, que eu gosto muito e acho muito feliz:"O trabalhador só se sente ele mesmo quando ele não está trabalhando. Quando ele está trabalhando, ele não se sente ele mesmo." Ou seja, naquela atividade, que é o centro da existência da atividade produtiva, que é a realização do trabalho, o trabalhador está suspenso da sua individualidade. Ele não é ele mesmo. Ele se alugou, se vendeu temporariamente para que outros se utilizassem daquilo para os seus próprios fins.
José Nêumane: Professor, dentro dessa sua leitura, eu gostaria também de aproveitar a questão do Marx para saber o seguinte. Até que ponto se pode atribuir para a herança marxista toda a prática assassina ao longo do século em nome dele. Quer dizer, Stalin que matou 20 milhões, Mao Tsé-Tung [revolucionário e ditador chinês, (1893-1976)] que matou 65 milhões, coisas que tornaram Hitler [Adolf Hitler, ditador alemão, (1889-1945)] um criminoso de quinta categoria [risos]. Até que ponto isso pode ser atribuído? Não, o Hitler matou 27 milhões, saiu agora no livro, saiu o "livro negro" do comunismo, que os outros caras mataram 100 milhões, 4 vezes mais do que o Hitler matou, está certo? Só o Mao Tsé-Tung matou 65 milhões. Não sei se você leu a biografia do Marx, que um médico escreveu, é uma coisa espantosa. Então, até que ponto se pode atribuir os crimes de Stalin e de Mao Tsé-Tung a Karl Marx?
Eduardo Gianetti: Eu acho que não se pode. Esse é um tema que me interessa muito. É o seguinte: nenhum autor controla o uso que será feito das suas idéias e nenhum autor sequer controla a interpretação que os outros darão às suas idéias. Isso escapa completamente do controle de qualquer autor. Marx jamais poderia imaginar que um dia os bolcheviques [corrente revolucionária russa que dominou a revolução de 1917, criando o regime comunista e dando origem à União Soviética] se apropriariam de seu pensamento e o reinterpretariam fazendo mudanças muito profundas e justificariam uma enormidade de crimes contra a humanidade em nome da sua própria doutrina. Eu me pergunto: imagine a situação do Marx tendo que assistir uma aula sobre materialismo histórico dada pelo Stalin? Quer dizer, ele se contorceria, seria uma tortura inominável.
José Nêumane: Completamente.
Eduardo Gianetti: Aliás, tem até um episódio...
José Nêumane: Deve ter se contorcido na tumba.
Eduardo Gianetti: Um episódio curioso. Um namorado da filha dele, que era um militante marxista, escreveu um panfleto.
José Nêumane: O Paul Lafargue [escritor e ativista político francês, (1842-1911)]?
Eduardo Gianetti: O Paul Lafargue escreveu panfletos sobre o pensamento de Marx, que era a interpretação econômica da história, já naquela linha. O Marx leu aquilo e falou: "Se isso é marxismo, eu não sou um marxista." Já foi a primeira experiência dele em se defrontar com o que poderia acontecer, com a má interpretação das suas idéias, com o mal entendimento das suas idéias, e nenhum autor escapa disso. Quer dizer, você veja as caricaturas que são feitas de Adam Smith, é a mesma coisa.
Matinas Suzuki: Eduardo, estamos falando um pouco... Eu ainda não entendo nada desse assunto. Então, se eu estiver falando bobagem, me perdoe. Mas nós estamos falando do auto-engano em relação às ideologias, vamos dizer assim, na base dessa sociedade todas as relações não são de auto-engano? Se nós estamos mediados pela mercadoria - vamos supor que seja verdade, certo? Todas as relações, na medida em que nós não percebemos essa mediação da mercadoria, ela não é visível, são de auto-engano  permanente, não são?
Eduardo Gianetti: Eu não entendo o que você está querendo dizer com isso.
Matinas Suzuki: Não, eu não estou querendo entrar em coisas, como o fetichismo do mercado,  ou coisas que você não perceba na base das relações sociais. Essas coisas estariam...
Eduardo Gianetti: Veja, os gregos escreveram no tempo de Apolo, em Delphos [templo sagrado da Grécia antiga]: "Conheça-te a ti mesmo", já reconhecendo a enorme dificuldade e o desafio para cada ser humano que é conhecer a si mesmo. Sócrates [filósofo grego, (470 a.C - 399 a. C)] passou a vida inteira interrogando seus...
Matinas Suzuki: Não, a linguagem é uma produtora de dificuldades de auto-engano e de enganos.
Antônio Medina Rodrigues: O fato de os seres humanos hoje, sobretudo na vida urbana, serem atores. Quer dizer, as pessoas no trabalho são como atores.
Eduardo Gianetti: Então, você não está questionando a visão do trabalho.
Antônio Medina Rodrigues: Elas estão simulando, elas estão simulando ser alguma coisa.
Eduardo Gianetti: Por quê?
Antônio Medina Rodrigues: A questão não é tanto de elas sinceramente pensarem "eu sou isso ou sou aquilo". Eu posso simular e ter êxito na simulação. Então, é um auto-engano mais ou menos convencionado.
Eduardo Gianetti: A simulação é parte da existência humana em qualquer situação social. Imagine se as pessoas pudessem ler o pensamento dos outros, daqueles com quem interagem. Imagine se nós tivéssemos um choque de transparência? Em qualquer sociedade que nos permitissem ter acesso aos sentimentos e ao pensamento daquele com quem nós estamos conversando... A dissimulação é inevitável, é parte, ela permeia toda a relação humana em graus diferentes.
Antônio Medina Rodrigues: Não entendi, porque a simulação você associou a essa...
Eduardo Gianetti: Porque você não está dizendo para o seu interlocutor tudo que você pensa, tudo que você sente. Você está selecionando permanentemente coisas que você acha que podem transparecer e coisas que não podem transparecer.
Antônio Medina Rodrigues: Certo.
Eduardo Gianetti: Em qualquer sociedade e em qualquer circunstância.
Antônio Medina Rodrigues: Sim, mas o que eu estou dizendo é que na sociedade capitalista isso chega a uma completa...
Eduardo Gianetti: Seu problema, Medina, é a divisão de trabalho.
Antônio Medina Rodrigues: ...relação de perversão de papéis. O indivíduo é o contrário. Ele executa uma performance que é contrária em relação àquilo que ele é, que ele sente. Entretanto, ele tem que fazer aquilo no dia-a-dia na profissão dele. E não é só ele, são todos.
Eduardo Gianetti: Seu problema não é o capitalismo, é a divisão social do trabalho.
Antônio Medina Rodrigues: Que seja, eu falei capitalismo para dar um bom exemplo.
Eduardo Gianetti: Não, a divisão social do trabalho.
Antônio Medina Rodrigues: Mas de qualquer forma o auto-engano acaba sendo uma decisão mais ou menos convencional. Dá a impressão, pelo seu livro, que é algo cartesiano, que o indivíduo pergunta para si mesmo: "Eu estou me enganando ou não estou me enganando?" Não é essa a pergunta. A pergunta é: "O que eu devo fazer para sair bem na minha vida? Que papel eu devo representar?" É o papel do ator. Então, eu achei que um problema que fica na berlinda no seu trabalho é ter dado demasiado peso para essa solidão cartesiana, do sujeito consultando a si mesmo. Nós não temos mais tempo de fazer isso, ninguém mais faz isso.
Eduardo Gianetti: Discordo, como não temos? Nós temos que fazer isso e muito mais.
Antônio Medina Rodrigues: É impossível quem é que pode consultar a si mesmo em sua solidão.
Eduardo Gianetti: Nós fazemos isso permanentemente. Nós nos perguntamos, principalmente ao tomar decisões importantes na vida, que tipo de pessoa nós desejamos ser. É lógico que temos uma enorme quantidade de limites.
Antônio Medina Rodrigues: Aí, sim, nós nos perguntamos coisas relativas ao nosso futuro, mas nós não temos essa pergunta ontológica dentro de nós mesmos. Nós só fazemos para nós mesmos as perguntas cujo referente é o futuro, é o desejo. Nós só nos perguntamos intimamente aquilo que dá resultado no futuro. Perguntamos: o que eu quero ser, o que eu quero ter e o que eu devo fazer para conseguir essas coisas? Agora, eu tentar saber que sentimentos eu tenho que é quimérico.
Eduardo Gianetti: Eu não acho quimérico, eu acho muito difícil, eu tenho a impressão que todos nós fazemos isso permanentemente.
Antônio Medina Rodrigues: Você sabe qual sentimento?
Eduardo Gianetti: Há um momento...
Antônio Medina Rodrigues: Você conhece os seus sentimentos?
Eduardo Gianetti: Eu me interrogo à respeito dos meus sentimentos. Eu acho que você faz o mesmo.
Antônio Medina Rodrigues: E você tem algum resultado nisso?
Eduardo Gianetti: Em alguns momentos eu posso, por exemplo...
Antônio Medina Rodrigues: Por exemplo, se você pergunta para você mesmo: "Serei bom? Serei honesto?" como você colocou no seu livro?
Eduardo Gianetti: Se eu começo a ter muita certeza de que sou honesto, eu já fico desconfiado, não é?
Antônio Medina Rodrigues: Mas não é esse o problema. Quando você pergunta se você é honesto, você já não pode mais responder, porque honesto é um critério do mercado.
Eduardo Gianetti: Não.
Antônio Medina Rodrigues: Honesto. Imagina, não existe honestidade fora de padrões. Tem de haver o que é ser honesto fora dos padrões para mensuração coletiva.
Eduardo Gianetti: Existem valores e princípios éticos que a humanidade ao longo de muito tempo preserva e que nos permitem...
Antônio Medina Rodrigues: Para os hindus era um [valor ou princípio], para os gregos era outro, para os brasileiros é outro.
Eduardo Gianetti: Não, eu acho que no fundo não sou tão relativista assim.
Dorothea Werneck: Deixa eu pegar esse ponto. Tem um momento do seu livro onde você fala exatamente dessa evolução e aprimoramento das pessoas, que você coloca de uma forma que para mim foi difícil, não sei se eu entendi até.
Eduardo Gianetti: Vamos lá.
Dorothea Werneck: Você coloca como se fosse quase impossível o aprimoramento da regeneração do animal humano.  
Eduardo Gianetti: É uma grande regeneração, é uma grande regeneração.
Dorothea Werneck: E aí você fala especificamente que não é no ensino, não é na coisa que, é o whishing for thinking.
Eduardo Gianetti: É.
Dorothea Werneck: Isso não é muito... Se você parar e dizer "não tem jeito", você mesmo questiona que não é bem assim, mas é.
Eduardo Gianetti: Não.
Dorothea Werneck: Você não admite a possibilidade do melhoramento do indivíduo e da coletividade por nenhum mecanismo? É meio draconiano isso, não?
Eduardo Gianetti: Não, eu não vou tão longe, Dorothea. Eu digo que é um caminho muito escorregadio e cheio de regressões. Muitas vezes você volta, faz um pequeno avanço, depois, paga por isso, e há um retrocesso. O que não dá para ter, a essa altura da história da humanidade, na minha percepção, é a crença em uma súbita e completa regeneração moral da humanidade, ou na idéia de que, por exemplo, um novo modo de produção vai nos transformar em cidadãos perfeitamente éticos e cívicos.
Dorothea Werneck: Desculpa, eu vou te citar, você foi duro: "O equipamento moral do animal humano é o que é. Imaginar que ele possa vir a ser radicalmente aprimorado..."
Eduardo Gianetti: Radicalmente, radicalmente, friso radicalmente.
Dorothea Werneck: Aprimorar não é radicalmente, regenerado é, aprimorar não é.
Eduardo Gianetti: Mas aí é o radicalmente, radicalmente, é gradualmente.
Dorothea Werneck: Aí você diz: "... é abraçar fantasias de precário consolo e nenhuma validade." Eu falei: aí não dá, está certo? Quer dizer, esse ponto me deixou realmente com uma certa angústia. Quer dizer, você não pode sequer sonhar. Nos seus sonhos, nessa crença que existe um cenário, existe uma possibilidade, existe um caminho, onde você pode ter uma certa esperança de que as coisas vão ser um pouco melhores.
Eduardo Gianetti: Até aí eu vou, na esperança de que as coisas possam ser um pouco melhores, sim. O que eu estou dizendo é o seguinte...
Dorothea Werneck: Que elas não serão.
Eduardo Gianetti: Não. Não será uma grande revolução, com r maiúsculo, um salto como muitos imaginavam, uma nova realidade completamente diferente da nossa, um novo homem. No século 20, se apostou muito nessa possibilidade do surgimento de um novo homem, um homem regenerado, um homem que não é marcado pela corrupção da mercadoria, do fetichismo etc. As experiências do século 20, os 70 anos de doutrinação insistente na União Soviética, não transformaram em praticamente nada esse velho animal humano, nosso conhecido. Eles saíram de lá exatamente como eram, talvez um pouco pior, por desejarem ainda mais tudo aquilo que foi negado durante tanto tempo. Então, não há possibilidade de uma doutrinação, de uma lavagem cerebral, de uma suposta regeneração, que mude completamente o modo de pensar ou a minha opinião.
Paul Singer: Deixa eu dizer uma coisa. Na realidade, há um ponto cego do seu livro, que é exatamente a relação entre a sociedade e o auto-engano. Isso não existe no seu livro, acho que você ficou...
Eduardo Gianetti: Não a minha ótica é individual.
Paul Singer: Exatamente, agora, aí que está. Você chega na página 110, eu vou tentar ler essa frase porque ela é extremamente enigmática. Diz o seguinte: "O auto-engano coletivo em grande escala é a resultante trágica e grotesca de uma multidão de auto-engano sincronizada entre si no plano individual." Eu acho que essa é uma das teses mais interessantes. Eu não estou convicto sobre ela. Quer dizer, como é que se dá essa sincronia dos auto-enganos individuais a ponto de criar uma sinergia grotesca e trágica.
Eduardo Gianetti: Posso dar um exemplo que talvez ajude a pegar. O que é um auto-engano coletivo? Tem um exemplo que é de um episódio recorrente em Lisboa, na época da Inquisição. Os tribunais dos autos-da-fé [rituais de penitência pública ou humilhação de heréticos e apóstatas] tinham uma cláusula que, se o herege fizesse uma confissão pública muito convincente, se fizesse uma conversão muito convincente, ele teria o privilégio de antes de ser queimado, ser enforcado, para não ter que padecer das dores de ser queimado em carne viva. E isso era um privilégio que era concedido a alguns poucos hereges que tinham uma conversão, algum tipo de arrependimento muito convincente. O que os fiéis faziam com freqüência? Eles atropelavam a decisão do tribunal, invadiam as prisões da Inquisição, seqüestravam o herege para queimá-lo em carne viva, porque não aceitavam aquela indulgência, aquela leniência do tribunal. E tudo isso feito em nome da fé cristã fervorosa. Na verdade, está na cara que se trata de um prazer sórdido e cruel com o sofrimento alheio, que está se passando na subjetividade do crente como sendo a mais santa e pura fé. Então, os fiéis sequer admitiam que o sujeito fosse enforcado antes de ser queimado. Eles faziam questão de oferecer ao público aquele espetáculo, que é romano no fundo, aquela coisa da arena, de jogar o homem na crueldade completa. Isso é um auto-engano coletivo.
Paul Singer: Veja bem...
Antônio Medina Rodrigues: Mas o auto-engano estaria por acaso no ato desses fiéis acreditarem que fazendo essa barbárie estariam sendo mais coerentes com a sua doutrina religiosa?
Eduardo Gianetti: É.
Dorothea Werneck: Defendendo a fé.
Eduardo Gianetti: Eu acho impossível imaginar que alguém que não esteja auto-enganado...
José Nêumane: O caso clássico contado pelo Koestler [Arthur Koestler, escritor húngaro, autor de Zero e o infinito (1905-1983)], do zero infinito.. Quer dizer, ele se convence de que ele, mesmo sendo fiel ao marxismo, por Stalin o considerar um traidor, ele seria um traidor e aceita a morte. Quer dizer, isso é um caso clássico do auto-engano.
Matinas Suzuki: Professor Eduardo, quando haveria o não-engano?
Eduardo Gianetti: A dúvida. A dúvida, se você passa a se interrogar e se questionar, e a pensar, você não pode estar incorrendo em auto-engano. Quando você abre a porta e a janela da dúvida, já é uma outra situação.
Matinas Suzuki: Sim, mas você não pode ficar duvidando permanentemente.
Eduardo Gianetti: Não pode, não pode.
Matinas Suzuki: Quer dizer, nem de cara a dúvida é para chegar em alguma coisa.
Dorothea Werneck: Eduardo, esse ponto...
Matinas Suzuki: Não, eu só... Na base das relações, Eduardo, eu estou completamente convencido que você pode achar que não existe o fetichismo, que não é nada, mas, na linguagem, a linguagem é o fim. Ela instala o auto-engano, o mecanismo de aquisição da linguagem, o uso da linguagem é necessário. Então, a consciência do auto-engano, mediada pela linguagem, já tem uma mediação muito grande. Essa dose de ambigüidade que leva aos enganos permanentes ou auto-enganos permanentes. 
Eduardo Gianetti: Então, é inescapável, você está dizendo que é. 
Matinas Suzuki: Em certo sentido, sim, a base das relações é essa.
Eduardo Gianetti: Eu gosto de pensar essas coisas com exemplos, do que ficar nesse plano totalmente conceitual e com termos que às vezes podem significar coisas diferentes para pessoas diferentes. Você pega historicamente situações em que a própria pessoa reconhece que se enganou durante algum tempo e volta atrás. 
Matinas Suzuki: E pode estar se enganando outra vez.
Eduardo Gianetti: Pode, quer ver um caso? Um caso clássico é o biólogo Darwin [Charles Darwin, (1809-1882)], que é fantástico. É o seguinte: durante toda a juventude, ele acreditava que questões de prioridades cientificas não tinham importância. Ele era altruísta, era generoso, buscava desinteressadamente o conhecimento. Não tinha a menor importância se ele fosse o primeiro a descobrir ou não alguma coisa. Ele estava trabalhando na sua Teoria da Evolução [que explica a evolução das espécies tomando como eixo de partida um ancestral comum]. De repente, apareceu um jovem biólogo chamado Wallace [Alfred Wallace, (1823-1913)] com uma teoria muito parecida com a dele e que seria apresentada antes do que a dele em uma reunião científica. O Darvin perdeu completamente a compostura e fez todo o esforço com os seus colegas cientistas para impedir que o Wallace apresentasse a sua teoria antes da dele. Então, ele escreveu uma carta: "Como eu fui tolo de imaginar que eu não me deixava levar por questões de vaidade e de prioridade. A hora que apareceu esse rival eu mudei completamente de posição. Agora eu quero." Ele reconheceu que queria ser o primeiro. E foi o primeiro, porque ele estava trabalhando nisso há muito mais tempo, o trabalho dele já estava mais amadurecido. No final da vida, o Darvin escreveu uma autobiografia em que ele voltou sinceramente a afirmar: "Nunca me deixei preocupar", isso já velhinho. "...por questões de vaidade, de prioridade científica." Voltou à situação que ele imaginava na juventude, porque ele já estava de novo coroado com todo êxito, com todo triunfo. Ele podia de novo recair no auto-engano de achar que ele era diferente dos outros cientistas, que não tinha preocupação com prioridade. Você tem na trajetória do Darwin esses três momentos: auto-engano, reconhecimento pelo próprio sujeito e, depois, de novo, o status do auto-engano tomando conta. Agora, o importante é que há um reconhecimento. Então, dá para sair, em algumas situações críticas, se a pessoa tiver um pouco de honestidade, um pouco de humildade, ela reconhece. "Olha,  de fato eu me imaginava uma pessoa que eu não era, eu sou vaidoso. Eu tenho uma enorme preocupação com a prioridade da minha descoberta. Se alguém passar na minha frente ou atrapalhar a minha vida eu não vou ficar nada satisfeito." Agora, depois, voltou. 
Matinas Suzuki: O Fábio Franzinni, de Santa Gertrudes, interior do estado de São Paulo, diz o seguinte: "Gostaria de perguntar ao professor Eduardo Gianetti o seguinte: ao julgar pelo quadro político atual, uma possível reeleição de Fernando Henrique Cardoso não seria um belo exemplo de auto-engano, tanto coletivo quanto individual, já que os reeleitores e o presidente continuarão a crer piamente que esse é um ótimo governo?" [Fernando Henrique Cardoso foi reeleito presidente da República em 1998, permancendo na presidência entre 1995 e 2002]
Eduardo Gianetti: É curioso que o auto-engano é sempre do outro, é sempre o outro. Eu tento no livro provocar, para que cada um pense em si próprio e que busque dentro de si os auto-enganos que fazem parte da sua situação. Eu não faria uma acusação jamais, genérica assim, de um auto-engano coletivo nacional em relação a nada. 
José Nêumane: Não seria um auto-engano deles, por exemplo, achar que o Plano Real não fez uma revolução social. A questão é essa. Mas eu lhe pergunto o seguinte: não será um auto-engano do presidente Fernando Henrique Cardoso ele convocar os seus ministros e dizer que neste ano eleitoral o governo vai ser austero, não vai gastar nada? É possível no ano eleitoral não haver uma economia artificial?
Eduardo Gianetti: A política é um prato cheio para a questão do auto-engano, porque o político, antes de mais nada, tem que acreditar nele mesmo. É incompatível com a aspiração de poder político uma pessoa descrer de si própria e duvidar permanentemente de si. Então, aí já tem um problema, porque uma postura científica diante das coisas te leva a estar permanentemente interrogando, duvidando e questionando o que te leva a acreditar em algo. Você jamais pode transformar uma paixão em argumento ou critério de verdade. No campo da política é exatamente o contrário, sem uma grande paixão, sem uma convicção muito poderosa, você não sai do lugar. Se você não acredita em você, seus seguidores, muito menos, acreditarão, porque os seus seguidores, os seus eleitores, querem alguém que tenha confiança em si, que acredite profundamente naquilo que afirma. Eu diria que todo político precisa achar que, com ele no poder, as coisas serão melhores. É impossível um político imaginar consigo mesmo que ele vai levar o país para uma situação pior do que a que existe. É parte da aspiração do político, ele precisa se convencer disso  de alguma maneira. Precisa acreditar que, com ele estando lá, tudo vai melhorar. E talvez melhore mais para alguns do que para outros, mas, no geral, a sociedade se sairá melhor se ele for o governante do que se for outro. Todos conseguem acreditar nisso com a maior boa fé. É evidente que nem todos podem ter razão, com muitos governantes, muitos políticos, provavelmente, as coisas estarão pior do que estão hoje. Mas todo aspirante à política acaba intimamente ouvindo, acreditando e apostando na sua própria competência, na sua própria sabedoria. 
José Nêumane: Mas, na prática, é possível no ano eleitoral a austeridade governamental?
Eduardo Gianetti: É logicamente possível, mas é muito improvável. Logicamente, é muito improvável.
Marco A. Rezende: Eu era criança em Belo Horizonte quando seu avô [Américo Gianetti] era prefeito da cidade. Era uma época em que havia ainda homens como ele na política, na administração pública, pessoas honradas, cultas. Os belorizontinos têm saudades dele. A propósito do auto-engano na política, na sua opinião, o que faz uma cidade como São Paulo, que produz boa parte da renda nacional, onde há boas universidades, onde se concentra parte consistente da produção intelectual do país, o que faz o eleitorado de São Paulo escolher, entre vários candidatos, o Pita como prefeito? [Celso Pita, foi prefeito de São Paulo entre 1997 e 2001]. Com tudo que ele significa, com todas as relações óbvias que ele tem com a figura polêmica, para dizer o mínimo, do Paulo Maluf, por que os paulistanos acharam que Pita seria um bom prefeito para uma cidade como São Paulo?
Eduardo Gianetti: Eu, infelizmente, não tenho resposta. Eu não quero entrar em discussões partidárias. Como pesquisador e como cientista, eu procuro manter um certo distanciamento, posso apenas observar a realidade. Não vou me pronunciar aqui à favor de algo contra A ou B. O que me preocupa, hoje, no Brasil - aí acho que eu tenho um ponto a comentar-, é o padrão que existe não é só em São Paulo, mas parece que em outros lugares ocorre algo parecido. Você tem o grande realizador de obras que mostra muito serviço, até fisicamente, para a população. Ele [Maluf] é sucedido por um saneador das finanças públicas, o realizador de obras, e se endividou, porque arrombou as finanças para fazer tudo que ele fez. Ele acabou esticando além do limite o orçamento. Aí, vem o saneador das finanças públicas [Pita], faz o seu trabalho, não apresenta serviço para população, e vem uma nova eleição. Então, aquele primeiro realizador aparece em público e diz o seguinte: "Olha, no meu tempo se fazia, está vendo. Esse aqui não fez nada porque o trabalho dele não aparece." Aí, o eleitorado pensa: "Bom, na época dele fazia, agora não fez." O eleitorado vai e dá um novo mandato e você vai reproduzindo um ciclo. Se a democracia funciona em algum momento, a população percebe que alguém pode ter realizado muita coisa, mas as custas de um comprometimento muito sério das finanças públicas. Portanto, da não realização de outras coisas durante muito tempo. Então, se a democracia funciona, há um aprendizado, o eleitorado vai gradualmente se dando conta de que não pode deixar se iludir dessa maneira. Para pegar um exemplo, Juscelino kubitschek. Juscelino fez uma aventura inominável de finanças públicas, foi um presidente que quadruplicou a base monetária do Brasil em 5 anos de mandato. É uma loucura, ele construiu Brasília imprimindo dinheiro, deixou um quadro de inflação crônica, arrombou a Previdência no Brasil, foi o 1º estrago sério na Previdência brasileira, e saiu endeusado como o maior estadista do país no pós-guerra.
Dorothea Werneck: Eduardo, mas tem o resultado, não é? Quer dizer, a percepção da população é o que chega até ela. Você arrumar as contas não chega. 
Eduardo Gianetti: Pois é, mas tem que haver um aprendizado, Dorothea, porque para a coletividade é muito mal viver essa ciclotimia.
Dorothea Werneck: Certo, mas eu acho que o problema não é mudar a coletividade, é mudar quem está sentado na cadeira.   
Eduardo Gianetti: Não, quem escolhe é a população.
Dorothea Werneck: Há o equilíbrio. O equilíbrio é que está no meio, na solução desse problema, de quem está tomando a decisão política. Não é só olhar para as contas e botar a casa em ordem. Aliás, deveria ter falado ao contrário... 
Eduardo Gianetti: Tem que encontrar o equilíbrio.  
Dorothea Werneck: Não é só fazer obras e também não deve ser só tomar conta da casa.  
Eduardo Gianetti: Perfeito, tem que haver um equilíbrio.
Dorothea Werneck: Eu acho que isso tem muito mais haver com essa percepção de quem exercesse funções públicas. 
Eduardo Gianetti: Mas quem elege os governantes na democracia é a população, são os cidadãos. Eles é que vão encontrando gradualmente esse equilíbrio, o que eu concordo perfeitamente. Nem é tudo realização e nem é tudo ortordoxia fiscal, tem que encontrar um meio termo. Agora, o desenvolvimento do Brasil foi muito prejudicado até aqui por causa dessa ciclotimia. Se você olhar a experiência brasileira de desenvolvimento, qual é o signo principal, é a descontinuidade. O país tem surtos alucinantes de crescimento e, depois, fica anos prostrado, tentando se recuperar dos desequilíbrios provocados por aquele crescimento. Nós temos que sair disso, nós temos que ter um crescimento mais equilibrado, não um surto milagroso, mas algo que não vai nos levar à prostração.
Antônio Medina Rodrigues: Você acha que é principalmente isso que tem prejudicado o país.  
Eduardo Gianetti: Isso é um ponto muito sério na nossa experiência. Se a gente tivesse crescido menos...
Antônio Medina Rodrigues: Por que não seria...?
Eduardo Gianetti: ... mas mais consistentemente, estaríamos muito mais na frente.
Dorothea Werneck: Mas nós somos o país do mundo que mais cresceu no século 20. 
Eduardo Gianetti: Mas é porque partimos do nada.
Dorothea Werneck: Mas nós, quando comparado.... 
Eduardo Gianetti: Partimos do nada.
Dorothea Werneck: Não, por décadas.. Eu acho esse argumento um pouco delicado. Você pega a Segunda Guerra, até 82, com certeza nós crescemos mais. Inclusive, mais que o Japão, está certo? 
Eduardo Gianetti: Não, Dorothea, pega da Segunda Guerra para cá. Japão e Alemanha eram um monte de cinzas, completamente destruídos, e hoje são países com renda per capita várias vezes maior que a nossa. 
Dorothea Werneck: Começaram pior do que nós, no pós-guerra. 
Eduardo Gianetti: Pois é, e, no entanto, hoje são o que são.
Dorothea Werneck: Claro, mas estou dizendo essa coisa da... 
Paul Singer: Eu posso colocar o meu bedelho nisso? Não é verdade, o Japão e a Alemanha tinham sido potências industriais e a sua população....
Eduardo Gianetti: Tinha capital humano. 
Paul Singer: As cinzas são mais fáceis de se repor do que as pessoas.
Eduardo Gianetti: É verdade, é verdade. 
Paul Singer: Portanto não é correto.
Eduardo Gianetti: Mas foi um crescimento equilibrado. Eles não incorreram nesse ciclo brasileiro de ter surtos insustentáveis de crescimento, construindo novas capitais, e não investindo em capital humano. 
Paul Singer: Olha, Eduardo, pense se isso não é uma questão brasileira mas, sim, do capitalismo? Ou seja, é típico do capitalismo. 
Eduardo Gianetti: Não é do capitalismo. 
Paul Singer: Os círculos cumulativos não são uma coisa muito peculiar, todos os países capitalistas têm rumos, crises e depressões, passaram o século 19 inteirinho nessa forma.
Eduardo Gianetti: 50 anos em 5 [referindo-se ao slogan de campanha de Juscelino Kubitschek]. Depois, 10 anos de total prostração e de recomposição. Depois de décadas perdidas, vem o milagre econômico e, depois, mais uma década perdida. O Brasil vive essa ciclotimia, de euforia e depressão de maneira muito mais aguda do que os demais países que se desenvolveram ao longo do século 19. Você pega o desenvolvimento americano do século 19, século 20, tem momentos de maior crescimento, momentos de menor crescimento, mas há uma consistência, não levou a crises imperinfracionais. 
Dorothea Werneck: Levou à depressão dos anos 30 ...
Paul Singer: Não, levou à depressão dos anos 80, 90, do século passado... 
Eduardo Gianetti: Mas não perderam a condição de países desenvolvidos. É uma outra trajetória, que acho bem diferente. Eu não faria essa acusação ao capitalismo por esse tipo de problema. Tem economias capitalistas maduramente capitalistas, como o Canadá.
Paul Singer: Eu não faço questão nenhuma de acusar o capitalismo. Qualquer economia de mercado que não tenha um grau de coordenação - o que até hoje dificilmente se atingiu- está sujeita a outras situações. 
Eduardo Gianetti: Isso como a Austrália, como Canadá, como a Noruega.
Paul Singer: Se você olhar de perto, todos eles tiveram grandes oscilações. 
Eduardo Gianetti: Mas não com a violência das nossas, com uma década perdida nas circunstâncias em que nós passamos.   
Paul Singer: A década perdida que você está falando, toda América Latina passou. Não foi só o Brasil, foi o Chile, foi o México, foi a Argentina. 
Eduardo Gianetti: O Chile não. O Chile está crescendo e já estava crescendo na época da década perdida.
Paul Singer: Sim, mas teve uma década perdida, principalmente depois do golpe do Pinochet [Augusto Pinochet (1915-2006), que governou o Chile com poderes ditatoriais entre 1973 e 1990, após ter comandado um golpe militar contra o presidente Salvador Allende], até começar a crescer consistentemente, foi exatamente parecida com a nossa, só que um outro momento. 
Eduardo Gianetti: De qualquer maneira, nós deveríamos pelo menos concordar no seguinte: seria melhor para o Brasil ter um crescimento menos descontinuado e mais sustentado. Se nós embarcarmos em crescimentos irresponsáveis, nós vamos pagar muito caro por isso, mais uma vez. É melhor ter um crescimento mais moderado, mas de forma contínua e sustentado, ao longo do tempo, do que viver de novo uma euforia artificial de achar que o país decolou, vai crescer 10% ao ano. Com isso,  em 3 anos, nós estaremos em uma crise, ou de inflação ou de balanço de pagamento, que vai nos custar anos para ser resolvida.  
José Nêumane: Concordo, mas o sonho do consenso coletivo brasileiro ainda é o Juscelino Kubitschek. Toda sua análise do Juscelino Kubitschek é perfeita, mas é uma análise politicamente incorreta, porque a média padrão do sonho, do consenso coletivo brasileiro, é o JK. Tanto que o presidente Henrique Cardoso sonha em ser o JK. Ele olha no espelho e pensa que é o JK. 
Eduardo Gianetti: O JK ofereceu para o país um sonho impossível de crescimento, sem dor, sem poupança interna, na base de inflação, de uso de recursos que não existem. Isso não leva à coisa boa, termina mal.
José Nêumane: É, mas a verdade é essa.
Paul Singer: Eu entendo inclusive a sua profunda convicção. Está escrito no livro. Quer dizer, você tende a reagir muito criticamente a tudo que é paixão, a tudo que é crença muito forte. 
Eduardo Gianetti: Nem todas.
Paul Singer: Ninguém está fazendo um pergunta apenas porque é você quem está sendo entrevistado. O que você me diria sobre os animals spirits no plano do político do governante?
Eduardo Gianetti: Tem o seu lugar, tem o seu papel. Agora, a sociedade precisa saber se proteger de alguns perigos que podem ser muito nocivos para a coletividade. Uma população mais amadurecida, mais capaz de se organizar não vai dar carta branca para um governante arrombar tudo e fazer o que quiser. Agora, você tem toda razão. Eu acho que sem os animals spirits, sem algumas paixões, nada de grandioso, nada de inovador, ocorreria. Há um caso que eu cito...
José Nêumane: Está na sua página 153.
Eduardo Gianetti: O David contra Golias [David viveu por volta de 1050 a. C e foi o segundo rei de Israel. Há um história bíblica que diz que, para casar-se com a filha do rei Saul, primeiro rei de Israel, David precisou matar o gigante Golias, armado apenas com uma funda]. Quer dizer, de repente, aparece um menino armado de um bodoque que ousa enfrentar o gigante do exército inimigo que nenhum soldado israelense tinha coragem de enfrentar. O que um economista racional diria? Essa criança é... "É ridículo, é grotesco, não devem deixar isso acontecer porque vai ser um massacre." Todos zombaram de David e ele foi lá, munido daquela crença de que Deus estava ao seu lado, acertou a primeira pedrinha, derrubou o Golias, as tropas se reergueram e o  exército foi em frente.
Matinas Suzuki: Eduardo, por falar em Deus, tenho várias perguntas aqui sobre religião, que acabaram não sendo faladas antes. O José João Junior, de Sorocaba, pergunta se o criador da filosofia cristã enquanto filósofo cometeu um auto-engano? A Eni Braga, de Cerqueira César, um bairro aqui de São Paulo, pergunta se a fé religiosa é considerada um auto-engano? A Teresa Vargas, de Porto Alegre: "As religiões podem ser consideradas auto-enganos? João Gustavo, de São Gonçalo, do Rio de Janeiro: "Uma vez que existem várias religiões e que em vários pontos elas se contrapõem, a religião em si não seria uma situação de auto-engano?" O Alexandre Moreira, de São Paulo: "Colocar a vida de uma coletividade baseada na existência de um Deus, que enviou um Salvador para orientar nossa vida, pode ser considerado um auto-engano coletivo crônico?" E a Regina Toneli, de São Paulo, pergunta se o senhor diria que a fé em Deus é um auto-engano?
Eduardo Gianetti: É uma bateria de perguntas que eu não tenho a menor pretensão de oferecer uma resposta. A minha posição em relação à religião... Eu respeito a busca de sentido. Eu acho que a ciência não oferece, pela sua própria natureza, o tipo de sentido, o tipo de resposta, o tipo de explicação que nós aspiramos ter em relação ao que é tudo isso, nossa existência individual, a nossa existência coletiva, o nosso lugar na natureza. Toda a crítica científica da religião é precária, porque ela não oferece nada como alternativa, não tem nada para por no lugar. Agora,  incomoda-me quando a pessoa é tomada de fanatismo. Aí, eu acho que provavelmente tem algum tipo de auto-engano, pois a pessoa está tendo certezas íntimas e se ela pudesse se olhar um pouco mais de fora, ter uma perspectiva externa, ela não embarcaria nisso. Então, eu sou muito crítico da fé adorosa, fervorosa, que leva ao fanatismo. Por exemplo, aquele comportamento da Inquisição, toda a perseguição, eu acho absolutamente inaceitável a perseguição em nome de fé religiosa. Isso é uma coisa de barbárie primitiva. Mas tenho um enorme respeito, por outro lado, por essa busca de alguma coisa que faça sentido na escala humana. A ciência não vai dar uma resposta, por mais que ela avance, uma resposta que sacie essa vontade que nós temos de saber, afinal de contas, o que nos aconteceu? Por que estamos aqui? Se é que tem resposta. Mas alguma coisa muito estranha deve ter acontecido e a gente imagina que pode ter uma resposta que faça sentido humano para essa coisa. E, aí, surge a religião, com um Deus personificado, uma historinha, uma narrativa etc, que sacia muita gente, mas não deve ser investida de muita crença. Se for assim, acho que começa a escapar, realmente, do que seria razoável em termos de religião. Basicamente é isso, Matinas.
Matinas Suzuki: Olha, agora sobre psicanálise. A Ana Amélia Pereira, de Santa Maria, de Minas Gerais, pergunta se você teve a possibilidade de ler Freud e suas análises sobre o subconsciente. A Claudia Cruz, psicóloga de Porto Alegre, diz:"Do ponto de vista psicanalítico, quando uma pessoa se esquece de algo, comete um ato falho, ou tem um lapso de linguagem, não é um engano, já que o inconsciente não se engana. O que acontece é a expressão de um desejo." Eu queria registrar também que chegaram várias manifestações lamentando a ausência de um psicanalista nesta mesa. Eu acho que foi uma falha mesmo nossa.
Eduardo Gianetti: É verdade. Eu tenho interagido com psicanalistas. Inclusive tive o privilégio de poder expor meu trabalho na Sociedade Brasileira de Psicanálise, aqui em São Paulo. Tive debates que acreditei muito ricos e muito interessantes com psicanalistas. Como já mencionei anteriormente, eu tive indiretamente uma convivência com a psicanálise, porque a minha mãe exerce a profissão de psicanalista há muitos anos. Agora, eu tomei muito cuidado no livro para não entrar em uma área que eu não me considero bem informado e competente o suficiente para me manifestar. Inclusive, como regra metodológica, eu me impus desde o início evitar a todo custo uma palavra, que é a palavra inconsciente. Eu acho que ela facilitaria demais o meu trabalho se eu começasse a invocar repetidamente o inconsciente e dizer: isso é consciente, isso é inconsciente. Eu não uso essa palavra do começo ao fim do livro. O Freud aparece em alguns momentos do livro. Ele aparece como leitor e admirador do grande filósofo alemão que foi Nietzsche [Fiedrick Nietzsche (1844-1900)]. Tem uma situação curiosa, em que ele diz que temia ler Nietzsche, porque sabia que encontraria lá as suas próprias descobertas. Agora, se ele sabia que encontraria, como é que ele podia saber se ele não tinha lido. Eu achei isso uma coisa curiosa. Outra coisa curiosa do Freud é o problema dele com o charuto. Ele passou anos e anos fazendo auto-análise para perder o vício de fumar charuto e jamais conseguiu vencer esse vício - nem o próprio Freud. E, afinal, acabou morrendo de câncer na boca, muito provavelmente provocado pelo vício que ele tinha de fumar charutos. Então, os limites da psicanálise acho que ficaram muito bem configurados nessa incapacidade do pai da psicanálise de se libertar do seu hábito de fumar charuto. 
Dorothea Werneck: Na verdade, eu não sei se levaria você nessa seara que você não quer entrar: um pouco de psicanálise e sei lá que caminhos. Mas eu senti um pouco de falta de pelo menos uma tentativa de explicar o porquê do auto-engano. Mais do que isso, porque o auto-engano coletivo acontece em determinada situação, ou tem chance de acontecer mais em uma determinada situação do que não outra? Da mesma forma, o auto-engano é individual porque tem pessoas mais propensas a se auto-enganarem do que outras? Eu não sei se você chegou a levantar isso, mas me passa pela cabeça um pouco que o auto-engano é uma tábua de salvação para o não saber, que é muito difícil você assumir que não sabe. Então, você cria uma verdade e se auto-engana.
Eduardo Gianetti: Perfeito, concordo com você.
Dorothea Werneck: E tem o medo que você tem de descobrir certas coisas. Então, você não segura e chora.
Eduardo Gianetti: Verdades que doem muito, não é?
Dorothea Werneck: Não é?
Eduardo Gianetti: É.
Dorothea Werneck: Então, eu não sei se caminha um pouco por aí.
Eduardo Gianetti: Eu trato disso no capítulo 2. Na verdade, é uma tentativa de aprofundar a dificuldade do auto-conhecimento. É tão difícil para cada indivíduo conhecer os conteúdos da sua própria mente e ter um pouco mais de firmeza em relação a quem é quando volta para si mesmo. A partir dessa discussão sobre a dificuldade, que tem um caráter muito escorregadio de todo o projeto de auto-conhecimento. Eu tento mostrar como é que aparece a possibilidade do auto-engano. Então, a minha abordagem na questão do porquê é pela via da epistemologia do auto-conhecimento. O que torna esse projeto do auto-conhecimento alguma coisa que desafia os homens a ponto dos gregos terem colocado em Delphos a máxima: "Conheça-te a ti mesmo," como um desafio de eterna qualidade. Esse desafio pode ser recolocado em qualquer momento, em qualquer época, e a humanidade sempre vai se deparar com a enorme dificuldade de avançar nesse caminho.
Antônio Medina Rodrigues: Mas isso é um caso particular, a religiosidade grega de uma época é a filosofia do Sócrates, que você explica. Os gregos não se preocupavam muito com o eu, eles nunca tiveram essa preocupação. O Sócrates introduziu uma coisa diferente na Grécia, e o dionisismo também, por outro lado, trouxe alguma coisa diferente. Mas os gregos nunca perguntaram para si mesmo quem sou eu ou o meu mundo interior...
Eduardo Gianetti: Eu discordo, eu até cito uma passagem de um diálogo com Fedro, por exemplo, em que o Sócrates se coloca..
Antônio Medina Rodrigues: Sim, mas eu estou falando do Sócrates.          
Eduardo Gianetti: Dizendo :"Eu não sei quem sou, eu posso ser um monstro como Tifão".
Antônio Medina Rodrigues: Mas o Sócrates representa uma revolução filosófica.
Eduardo Gianetti: Eu estou falando dessa revolução socrática.
Antônio Medina Rodrigues: Já tardia, é o que eu estou dizendo.
Eduardo Gianetti: Eu não estou falando do grego arcaico, eu estou falando do Sócrates.
Antônio Medina Rodrigues: Mas mesmo o Sócrates, esse "eu" socrático não é esse mundinho pelo qual nós interrogamos, não é? O eu é uma forma gradativa de iluminação para se chegar ao logos [razão], para se chegar à verdade, que é hiper, super pessoal. Não tem nada de pessoal, se a gente for achar qualquer coisa no próprio Sócrates de pessoal é decepcionante. Os gregos não, não.  
Eduardo Gianetti: Os diálogos socráticos são interlocuções, Medina. Sócrates pega o interlocutor e mostra basicamente duas coisas: você imagina que sabe o que você não sabe.
Antônio Medina Rodrigues: Certo.
Eduardo Gianetti: E, por outro lado...
Antônio Medina Rodrigues: Isso não tem nada a ver com o eu?
Eduardo Gianetti: Não. E por outro lado, você sabe mais do que você imagina que sabe é maiêutica [método de ensino socrático, que busca a verdade no interiror do homem, ação conhecida como "parto" intelectual].
Antônio Medina Rodrigues: Certo.
Eduardo Gianetti: Ele é o parteiro do conhecimento.
Antônio Medina Rodrigues: Não tem nada a ver com o eu?
Eduardo Gianetti: Não tem nada a ver com o eu, mas ele mostra o desconhecimento. Primeiro o desconhecimento ao quadrado de alguém que imagina que sabe e que desconhece. Depois, o desconhecimento de alguém que sabe o que não sabe que sabe.
Antônio Medina Rodrigues: Sim, mas por cima da cabeça das pessoas, acreditava Sócrates, havia um universo da verdade ao qual o indivíduo deveria ascender.
Eduardo Gianetti: Não tenho essa impressão que ele, eu não, não, me...
Antônio Medina Rodrigues: Mas aonde quer levar? O Sócrates quer levar as pessoas aonde?
Eduardo Gianetti: Para algum tipo de verdade. Ele é um parteiro do saber que está no indivíduo com quem ele interage.
Antônio Medina Rodrigues: Mas está nesse indivíduo por quê? Porque esse indivíduo, desde outras vidas, já conhecia isso. É um saber objetivo, é um saber cosmológico, não é nada romântico. A sua inspiração é romântica, de certa forma, é o "eu" romântico. Um pouco, talvez, o "eu" da filosofia moderna, mas os gregos não queriam saber do eu, a não ser que você perguntasse para o grego: "onde você mora?" Bom, eu moro em tal lugar. Mas um grego começar a falar de seus botões, com esse narcisismo, que ficou inflacionado a partir do século 18, do romantismo para cá, isso não aconteceu. Para eles, o grande barato do mundo, era conhecer o mundo mesmo, não era conhecer o eu. Por isso que eles foram grandes e cultivaram os deuses. Cultivaram a pólis [modelos das cidades na Grécia antiga].
Eduardo Gianetti: Eu tenho a impressão que o Sócrates mudou, o Sócrates mudou um pouco disso.
Antônio Medina Rodrigues: Eles inventaram a filosofia, trabalharam a matemática, inventaram a democracia porque eles jamais pensaram nesse eu.
Eduardo Gianetti: Então, você está dizendo que o indivíduo não existe no mundo grego, é isso?
Antônio Medina Rodrigues: O indivíduo existe, o individualismo existe, mas não o indivíduo do tipo você tem quer ser o melhor.
Eduardo Gianetti: Não, mas o indivíduo existe.
Antônio Medina Rodrigues: Você tem que ser o melhor nas Olimpíadas, mas só para você curtir.
Eduardo Gianetti: O Sócrates foi julgado pelo tribunal ateniense como um indivíduo transgressor da ética cívica. Ele foi julgado pelo tribunal ateniense, como indivíduo transgressor da ética cívica e da religião grega.
Antônio Medina Rodrigues: Certo.
Eduardo Gianetti: Ele foi julgado como indivíduo, ele fez uma opção individual, está claríssimo isso no julgamento e depois quando ele teve oportunidade de fugir da prisão.
Antônio Medina Rodrigues: Ele foi acusado de degenerar a juventude e de introduzir deuses novos na cidade.
Eduardo Gianetti: E ele declara que se eles assim o julgaram... Ele teve a oportunidade de escapar.
Antônio Medina Rodrigues: Espera aí, Eduardo, existe uma diferença muito grande no sentido grego entre o indivíduo e o individualismo. A Grécia é, realmente, a areté [virtude], o desafio, o indivíduo deve ser o melhor, a competitividade, mas não para o vencedor ficar dizendo: "Veja como eu sou lindo, maravilhoso, eu tenho coisas."
Eduardo Gianetti: Não, isso eu não digo.
Antônio Medina Rodrigues: Não, não existe isso. O indivíduo é da era burguesa...
Eduardo Gianetti: Aí é um conflito, Medina, entre a história da filosofia e a filosofia. A filosofia analítica trabalha com a seguinte abordagem: há um problema e vamos refletir sobre esse problema, pensando, inclusive, como é que a tradição filosófica refletiu sobre esse problema. Há um pouco de anacronismo, você está me acusando de anacronismo. Eu estou projetando para o passado remoto. No caso grego, socrático, um problema que não era pertinente àquela época e àquele contexto. Os filósofos analíticos são recorrentemente acusados desse tipo de anacronismo. O historiador de filosofia, que é o que você está colocando, ele tenta olhar para a época nos seus próprios termos e à luz das suas próprias preocupações. É um outro tipo de exercício e de história da filosofia, em que não se incorre no anacronismo, mas se incorre em outra coisa. Eu só quero completar...
Antônio Medina Rodrigues: Mas às vezes dá a impressão que o eu, que você defende, é universal e eterno.
Eduardo Gianetti: Não, eu só quero completar, você não incorre no anacronismo aí, mas você pode incorrer no antiquarianismo, de ficar buscando o passado pelo passado. São dois problemas.
Antônio Medina Rodrigues: O passado aqui evocado [interrompido], pois não.
Matinas Suzuki: Eu sei que o Eduardo tem evitado os termos, mas você poderia fazer...
Eduardo Gianetti: E nada radical.
Matinas Suzuki: É, nada radical em nossa reta final do programa. Quero aproveitar, que temos muitas pessoas ligadas à economia. Você podia fazer um balanço de como você está vendo essa crise asiática, o Brasil diante isso, essas coisas todas que são faladas por aí.
Eduardo Gianetti: Nós vamos ter um ano muito delicado, não há a menor dúvida. Muito provavelmente um ano de baixo crescimento econômico e um quadro eleitoral, o que complica. Vai ser uma experiência inédita. Quer dizer, viver uma situação desse tipo em um ano eleitoral. E a grande dúvida, a maior dúvida, hoje, diz respeito à possibilidade de o Brasil obter financiamento externo, ingresso de capitais externos, para honrar os seus compromissos em transações correntes com o resto do mundo. Nós vamos ter uma necessidade de recursos externos da ordem de 50 a 55 milhões de dólares. O déficit das transações correntes, mais a amortização, a rolagem das dívidas, que vão vencer este ano. É um volume considerável de recursos: 55 milhões de dólares. Se nós não conseguimos capitais do resto do mundo entrando aqui dentro para fazer frente a esses compromissos, nós vamos ter que usar o quê? Vamos ter que usar reservas cambiais. Mas, se começarmos a usar reservas cambiais para pagar essas contas, isso vai deflagrar uma crise cambial, porque todos vão perceber, o mercado financeiro percebe isso muito rapidamente, que é uma trajetória insustentável. Então, a política cambial terá que ser alterada, vai haver uma ruptura que pode ser antecipada ou forçada, como, infelizmente, ocorreu no México no final de 94. Então, o ponto crítico, o nervo hoje de toda a situação macroeconômica brasileira, é saber se o país terá condições de atrair os recursos externos para fazer frente aos seus compromissos com o resto do mundo. A privatização se torna, nesse contexto, a pedra de toque, porque é ela que nos dará, se tudo correr bem, condições de trazer recursos do resto do mundo, capitais externos ou montantes suficientes para não usarmos reservas cambiais, no financiamento do hiato externo. Então, muito resumidamente, é isso que eu acho sobre a situação que estamos hoje.
Paul Singer: Posso fazer uma pergunta? Vamos colocar isso que você falou, que eu acho que é de muito bom senso, no contexto internacional. Já houve quedas de taxas cambiais imensas na Ásia, o que torna todas as taxas cambiais do mundo, no mínimo, questionáveis neste momento. Quer dizer, mesmo que as taxas cambiais originais não fossem perfeitas, as atuais são inconcebíveis, que se mantêm em 30, 40, 60% inferiores ao que eram. Nesse sentido, qual é a sua previsão? Como vão se realinhar as moedas do mundo inteiro para voltarem a ter o mínimo, vamos dizer assim, de equilíbrio universal, comercial e financeiro?
Eduardo Gianetti: Há uma enorme volatilidade hoje. Houve uma rodada quase geral. Poucos países não desvalorizaram o câmbio, em relação ao dólar principalmente. O Brasil fica nesse contexto, o Brasil fica em uma situação muito incômoda, porque Brasil, Argentina e alguns poucos países...
Paul Singer: Hong Kong?
Eduardo Gianetti: Como são poucos os países que não participaram dessa rodada, já é um quadro de subvalorização cambial no Brasil, que se torna mais grave ainda, no momento em que o mundo inteiro faz uma rodada de desvalorização. Vai ser muito difícil sustentar essa situação por muito tempo. Eu não sei por quanto tempo.
Paul Singer: Em termos internacionais, o que você preveria? O que deverá acontecer, não em termos de Brasil, mas em termos de Fundo Monetário Internacional, sei lá?
Eduardo Gianetti: A Ásia aumentou bastante a sua participação no comércio mundial, nos últimos 15, 20 anos. Eu acho que, provavelmente, se esgotou, pelo menos por algum tempo, esse processo de ampliação da presença asiática no fluxo mundial do comércio. Eu acho que essa é uma previsão.
Fábio Paim: Eduardo, eu gostaria que tocasse um pouco na questão da corrupção. A corrupção , como um elemento macroeconômico, é importante. Veja o que está acontecendo na Ásia neste momento.
Eduardo Gianetti: Certo.
Fábio Paim: E como é que você vê esse afloramento da corrupção e dessas práticas? Elas não vão contribuir com a sua discussão sobre uma evolução de todos os sistemas? Inclusive, aqueles sistemas mais fechados, mais escondidos? 
Eduardo Gianetti: Ficou muito claro, agora, na Ásia, o incesto entre política e economia e a maneira como decisões, que deveriam ser tomadas com critério econômicos, no sistema financeiro, com excessão do crédito, foram tomadas com base em impressão política e corrupção. Com base em arranjos que não passariam no teste de uma análise fria de mercado. Isso levou  a uma situação de dívidas irrecuperáveis monstruosas. A magnitude do crédito podre na Ásia é o que mais assusta. E aí está, provavelmente, o nó de toda a crise muito séria pela qual a Ásia está passando.
José Nêumane: Onde é que estavam os economistas do mundo que não perceberam, por exemplo, que a [...], que tem 40% do PIB [Produto Interno Bruto] do país deles... Quer dizer, como é que, de repente, acontece uma crise, e a gente descobre que a verdadeira América Latina é a Ásia.
Eduardo Gianetti: Eu acho o seguinte, não era tão bom antes e não é tão ruim agora. A gente tem que dar um desconto para os dois lados. A Ásia não era aquele milagre intocável, aquele modelo para todo mundo, mas também não é essa tragédia, essa ruína, esse fim de festa completo que está se pintando agora. Não é nem uma coisa nem outra. Eles fizeram conquistas importantíssimas e que não vão se perder por pior que seja a crise financeira. A Ásia, hoje, tem capital humano, esses países têm educação, escolarização, indicadores sociais brilhantes. A Coréia do Sul, recentemente, venceu uma... Faz-se, periodicamente, testes e exames de competência em matemática e ciências no mundo. Os alunos sul coreanos, de 13 anos, tiraram o primeiro lugar, em comparação com os Estados Unidos, com a Áustria, com a Alemanha. Isso dá ao país uma base de competência de capital urbano que vai continuar existindo e que vai voltar a levar o país para um caminho de prosperidade. Isso não vai desaparecer. Então, eu acho que é um exagero agora pintar essa crise asiática com sendo a derrocada completa e absoluta de todo modelo econômico, de toda uma lógica. Não é tão ruim assim, como não era tão bom antes também, até porque a relação político-econômica lá estava muito mal resolvida. Principalmente no caso do crédito do sistema bancário. O sistema bancário não pode funcionar com base em critérios extra-econômicos. Ou seja, políticos, de preferência familiar, que acabam levando...
José Nêumane: É um caso de auto-engano altamente remunerado, não?
Eduardo Gianetti: Não é um elemento do auto-engano. É o seguinte, eles não queriam se dar conta do tamanho desse problema. Eles relutaram muito tempo e até hoje está se apurando coisas em relação a isso.
José Nêumane: Mas eu falo dos altíssimos executivos, que ganham salários absurdos nas empresas, nos grandes bancos americanos. O FMI, o Banco Mundial, não vêm isso, não sabem disso, não avisam isso aos seus patrões? Isso que é auto-engano.
Eduardo Gianetti: É muito fácil fazer o pós mortis. Depois que morreu é facílimo, você faz a autopsia. Eu quero ver quem faz o negócio enquanto é tempo.
José Nêumane: Exatamente.
Fábio Paim: Eduardo, evidentemente, uma crise daquelas proporções vai ser ruim para todo mundo. Entretanto, o Brasil fica em uma situação um pouco menos ruim, na medida em que as suas vulnerabilidades são um pouco menores, principalmente na área do sistema bancário. Que medida nós poderíamos tomar para nos beneficiar dessa percepção melhor do mundo sobre a gente?
Eduardo Gianetti: Se houver uma percepção dos investidores externos de que a nossa situação não é tão vulnerável, é muito diferente da situação de outros mercados emergentes, como esse da Ásia, podemos, eventualmente, nos beneficiar. Infelizmente, eu não vejo isso acontecer até o momento, até porque a situação brasileira ainda é muito vulnerável e vai continuar sendo muito vulnerável enquanto tivermos um déficit em transações correntes tão alto. Quanto temos hoje? Vamos lembrar o seguinte, Fábio, a equipe econômica dizia, em 95, que o máximo de déficit em transações correntes tolerável era 3% do PIB. Nós estamos hoje com o déficit em transações correntes de 4,2% do PIB. Se nada fosse feito chegaríamos a 4,5% a 5%. Essa situação estava se tornando natural e se passou a contar com o ambiente externo, eternamente favorável ao Brasil, coisa que não foi mais, no caso, a partir do final de outubro. Então, nós estamos vulneráveis, não há que ter ilusões em relação a isso. Dizer que estamos vulneráveis não significa prever que vai acontecer uma crise cambial, mas significa dizer que ela é possível e não pode ser descartada. Ela paira hoje no nosso horizonte e é uma possibilidade. Então, há muita confusão entre você dizer que é uma possibilidade e você dizer que é uma probabilidade, estar prevendo o que isso vai acontecer. Eu acho que é um pouco cedo, vamos esperar os resultados do primeiro trimestre para poder de fato...
Dorothea Werneck: Os Estados Unidos estariam de certa forma em uma posição também menos confortável ou ameaçada, para dizer a palavra inteira, pela crise japonesa? Porque isso tem ressurgido muito. O que acontece com a economia americana, a partir do momento em que a economia japonesa, que é a segunda, não consegue reagir rapidamente a esse desafio da crise?
Eduardo Gianetti: Hipoteticamente sim, está ameaçado, mas não há qualquer movimento ainda, por exemplo, de repatriação de capitais japoneses na crise.
Dorothea Werneck: Mas dentro da sua lógica talvez, na sua argumentação, é uma possibilidade que não pode ser descartada.
Eduardo Gianetti: Não pode ser descartada. Agora, quando o mundo fica em um lugar muito incerto e inseguro, as pessoas buscam segurança e buscam previsibilidade. Trocando isso em miúdos, são os títulos do tesouro americano, está certo? É uma das coisas mais seguras e previsíveis que existem hoje em termos de ativo financeiro. Então, se a coisa se deteriora muito lá fora, as pessoas vão buscar a segurança.
Dorothea Werneck: Que foi a primeira reação em outubro e novembro?
Eduardo Gianetti: É.
Dorothea Werneck: A minha dúvida é...
Eduardo Gianetti: Acho difícil que aconteça uma fuga do instrumento financeiro mais seguro que o planeta oferece, que é tesouro americano.
Dorothea Werneck: Mesmo com o volume de títulos que estão hoje no governo japonês?
Eduardo Gianetti: Eles têm muitos outros recursos para serem mobilizados antes de chegar nesse, que oferece o máximo de previsibilidade e segurança no mundo, que ficou bem mais imprevisível
Matinas Suzuki: Agora, você teria algumas medidas de prevenção, tem que esperar que...
Eduardo Gianetti: Não, o que o Brasil vai ter que fazer, de um jeito ou de outro, é diminuir sua necessidade de financiamento externo. Nós estamos vivendo além dos meios durante bastante tempo já. Isso todos sabem que não vai continuar indefinidamente. A equipe econômica reconheceu isso até antes da crise. Quer dizer, em junho já começou um discurso bem diferente. Eles começaram a dizer que havia um problema de desequilíbrio externo, que havia alguma sobrevalorização cambial, mas que ela seria gradualmente corrigida em doses homeopáticas, em um horizonte de 2 a 3 anos. O que a crise de outubro mostrou é que não temos tanto tempo assim. Nós vamos ter que ter mais serenidade na redução do nosso déficit em transações correntes, ou seja, do tamanho da poupança externa que estamos absorvendo do resto do mundo.
Matinas Suzuki: Eduardo, e do ponto de vista político, que análise você faz? Você acha que o presidente está com as eleições asseguradas?
Eduardo Gianetti: É o que me preocupa. Eu acho que há um risco de contaminação de incerteza econômica e incerteza política no seguinte sentido: suponha que o ambiente externo continue desfavorável e que medidas contracionistas de juros muito elevados, de redução no nível de atividade econômica, se tornem necessárias. Esse não é um cenário remoto. Ele está aí. Isso, provavelmente, vai tornar o quadro sucessório muito mais indefinido, porque vai haver um desemprego muito grande, vai haver um desalento muito grande no país. A reeleição do FHC vai provocar dúvida. Muito provavelmente teremos um segundo turno. A lógica da eleição em segundo turno é outra história, são dois candidatos, uma outra configuração. A incerteza política em relação ao quadro sucessório por sua vez se reflete no mercado financeiro, porque vai começar a aparecer dúvidas sobre a continuidade das políticas em curso, principalmente a cambial. Se você tiver essa retro-alimentaçao, entre incerteza política e incerteza econômica, a coisa vai ficar muito complicada no segundo semestre do ano. Porque, à medida em que o quadro sucessório fica mais indefinido, aumenta também a incerteza dos gestores de capital e de recursos em relação ao que virá depois. Eles vão tomar medidas defensivas para evitar que mudanças os peguem desprevenidos. Por exemplo, em uma eventual desvalorização cambial logo depois da eleição. Então, se isso acontecer, a coisa vai ficar bastante conturbada, É o que mais me preocupa hoje.
Marco Antônio de Rezende: Se o Brasil ganhar a Copa [do Mundo de Futebol]?
Eduardo Gianetti: Bom, será uma alegria para todos nós, mas eu acho que os agentes econômicos não vão mudar de comportamento por conta da euforia que uma vitória na Copa trará.
Fábio Paim: Eduardo, mas isso toca na questão da sorte. Eu vi que você é um pouco cético com a questão da sorte. Em uma entrevista para o Nêumane você citou até o Dorival Caymmi: "Pobre de quem acredita na sorte do dinheiro para ser feliz".
Eduardo Gianetti: Na glória e no dinheiro, não, não, não.
Fábio Paim: Não é não? Não é na sorte?
Eduardo Gianetti: Pobre é quem acredita na glória e no dinheiro. Se saiu sorte foi um erro.
Fábio Paim: Saiu sorte. É porque a sorte, afinal, é essencial não é?
Eduardo Gianetti: Não podemos contar com ela, Fábio. Eu acho que é ótimo a sorte. Vamos torcer, eu sou um torcedor, todos nós torcemos, esperamos o melhor. Agora, o momento que você passa a contar com a sorte é quando a sorte vai embora.
Fábio Paim: É um auto-engano.
Eduardo Gianetti: É, quando se passa a contar com a sorte é porque o quadro... É melhor não contar com isso.
Marco Antônio de Rezende: Eu queria fazer uma fazer uma pergunta, uma última pergunta, não sei se temos tempo. Você fala no livro, acho que rapidamente, sobre o auto-engano no amor, na paixão amorosa. Eu acho isso um tema fascinante, deixando de lado um pouco os macrosistemas econômicos, filosóficos e a Grécia. Eu acho importantíssimo, eu acho mais interessante discutir essa questão entre as pessoas, a relação interpessoal, sobretudo a relação de amor. Existe um estudo, acho que de um sociólogo italiano, Alberone [Francesco Alberone], que escreveu um livro chamado Enamoramento e amor. Ele analisa um fenômeno que acontece quando, no caso de uma paixão, um dos dois resolve saltar fora, acaba o amor, e o outro insiste, faz juras de amor, manda presentes, telefona, se desespera, ameaça se matar e faz de tudo. Mas ele faz isso sabendo que a insistência só contribui para afastar o outro, porque acontece esse fenômeno em nível de decisão pessoal?
Eduardo Gianetti: Paixões muito poderosas, particularmente as paixões amorosas, transfiguram completamente a nossa percepção, o nosso juízo, a nossa capacidade de encarar as coisas com o mínimo de objetividade. Então, assim como na política, na vida pública, na vida coletiva, o amor, a paixão, no plano das relações pessoais e individuais, é o equivalente. É onde essas paixões muito poderosas, que são fantásticas no que elas têm de generosas e de gloriosas, até no sentido de realização, levam a situações de auto-engano. Quer dizer, as juras apaixonadas, o prometer amor eterno, tudo isso é um prato riquíssimo para uma análise de auto-engano. E a literatura está repleta disso. Quer dizer, você observa que recorrentemente a poesia, o romance, mostra exatamente como é que se dá essa transfiguração e como ela é totalmente verdadeira enquanto está sendo vivida. É um pouco como o sonho. Não é que a pessoa está com uma fé ou está mentindo ao dizer o que disse. Ela está absolutamente tomada por aquilo, só que aquilo não dura para sempre, é um êxtase, não é? A palavra grega êxtase significa que está fora de si, a pessoa fica fora de si. Em grego, êxtase, diz exatamente isso, a pessoa perdeu o pé de si mesma, está totalmente tomada por um estado que lhe parece eterno, mas que nós observamos de fora e sabemos que é temporário. Vinícius de Moraes: "Que seja eterno [o amor] enquanto dure." Já está embutida até esse conflito, não é? Basicamente é isso. Eu tentei configurar como um exemplo muito rico e muito interessante de auto-engano. Os auto-enganados da paixão, as promessas que o apaixonado faz, a percepção que o apaixonado tem do outro, tudo fica seriamente comprometido pela virulência do que ele está vivendo internamente.
Matinas Suzuki: Eduardo, nós estamos chegando ao final. Eu peço desculpas, perdi uma pergunta que era a seguinte: "O Brasil é um auto engano?
Eduardo Gianetti: Não, de jeito nenhum. Eu acho que o Brasil é um país que tem muito a oferecer ao resto do mundo, uma sabedoria enorme, mas que ao mesmo tempo é uma coisa que o Antônio Cícero, um filósofo carioca, diz e com qual eu concordo muito: nós não resolvemos questões muito elementares, muito básicas, da nossa convivência, como a precariedade da nossa vida coletiva no campo da educação, da saúde pública, e isso é realmente o que nos prejudica. Eu acho que se o Brasil conseguir, o Brasil não precisa ser um Estados Unidos, não precisa buscar ser uma potência econômica e nem é isso o que nós desejamos. No momento em que conseguirmos resolver essas questões muito básicas da convivência, ligadas, fundamentalmente, eu diria, à educação e à saúde universal para a população, diminuirmos essa vergonha da pobreza em massa... Quer dizer, da pobreza em larga escala. Eu acho que nós teríamos um país invejável porque há em nós uma alegria, uma espontaneidade, uma generosidade das paixões, das entregas, que outras culturas, outras sociedades não têm, ou nunca tiveram, ou perderam, já não têm mais. Eu acho que a minha visão do que seria seria conquistar o mínimo de civilização sem perder, ao mesmo tempo, isso que temos de muito bom, que é a capacidade da entrega, a capacidade da fantasia, capacidade de buscar o prazer de maneira vigorosa. O brasileiro é fantástico nessa busca. Acho que poucos povos no mundo têm uma intensidade tão grande na busca do prazer, da satisfação, da alegria, não é? Combinar essas duas coisas, não é fácil, nenhuma sociedade, aparentemente, conseguiu de fato juntar esses dois elementos, que é uma convivência civilizada, ao mesmo tempo preservando alguma coisa que é de um passado provavelmente pré-civilizado que é um espírito animal, uma alegria, uma generosidade, uma espontaneidade, uma fé espontânea no viver.
Matinas Suzuki: Eduardo, muito obrigado pela sua presença aqui no Roda Viva esta noite. Muito obrigado aos nossos entrevistadores que colaboraram com o programa, muito obrigado pela sua atenção, pela sua participação, lembrando que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às 10h30 da noite. Até lá, uma boa semana e uma boa noite para todos.

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