A Eloísa nasceu em Buenos Aires, na Argentina. Eloísa é o nome de uma encantadora Boliviana por quem Javier Barilaro se apaixonou no Verão de 2003. Barilaro é um artista Argentino que, junto com o aclamado escritor Washington Cucurto e a artista Fernanda Laguna, iniciaram um projecto social e artístico, uma editora de contornos bastante particulares, apelidada precisamente - Eloísa Cartonera.
Muito resumidamente, este projecto prima pela forma inovadora como consegue oferecer literatura de qualidade elevada a preços irrisórios, e ao mesmo tempo comprar o cartão de que são feitos os livros a cinco vezes o preço normal de mercado, desta forma também dando emprego a indivíduos que assim têm oportunidade de sair do sistema de recolecção de lixo das ruas - os "cartoneros".
Muito mais do que livros
O fenómeno editorial "cartonero" pela América Latina
O fenómeno editorial "cartonero" pela América Latina
Uma breve introdução ao fenómeno "cartonero"
Para uma introdução a este universo de livros de cartão, música cúmbia e personagens femininas com pouca roupa, eis uma breve panorâmica do contexto do qual o projecto-mãe brotou, a crise de 2001: Desde logo, falar de "crise" na Argentina é terrivelmente abrangente. Quando não esteve esta nação em crise? Com uma classe média condescendente e recorrentemente pacificada por meio de medidas políticas muitas vezes corruptas, historicamente a maior classe média da América Latina, a sociedade Argentina conseguia cohabitar espantosamente com as dificuldades das classes mais baixas, que sempre existiram. No entanto, esta enorme classe média foi forçada a despertar da sua indolência quando, em 2001, todas as contas bancárias foram congeladas e ninguém conseguia chegar às suas próprias poupanças (este episódio foi causticamente chamado de "O Curralito"). Metade da população caiu abaixo da linha de pobreza, trabalhadores foram despedidos em massa, indústrias e serviços fechados de um dia para o outro, e instalou-se uma agitação social sem precedentes. As pessoas tomaram as ruas, protestando e organizando-se num sem fim de expressões colaborativas, muitas altamente inovadoras. Para sobreviver, milhares de pessoas foram obrigadas a percorrer as ruas recolhendo cartão e papel dos contentores de lixo, dando origem a uma nova classe de pobreza urbana. Ficaram conhecidos como cartoneros (usualmente em português do Brasil "catadores" e em Português de Portugal "recolectores").
Eloísa Cartonera, a mãe de todas as cartonerias, é frequentemente descrita como "um produto da crise" ou um projecto que "estetiza a miséria". Verdade ou não, isso está longe da forma como eles se percepcionam a si mesmos. No seu discurso directo, a Eloísa é mais que nada um local para trabalhar e estar em conjunto. As pessoas juntam-se para estarem umas com as outras, para aprender umas com as outras, para ganhar a vida, e para servir a sociedade em torno de si mesmas. Como valor acrescido, sempre é referido o prazer de produzir e pintar livros e de conhecer pessoas novas, frequentemente de culturas distantes.
Ricardo Piglia, reconhecido autor Argentino e um dos autores publicados pela Eloísa, disse-o como ninguém:
"Não se trata de fazer um culto à pobreza, mas sim de não se deixar intimidar por ela."
A explosão Latino Americana
Treze países, trinta e duas editoras, em apenas seis anos. Surpreendente, no mínimo. E nunca a intenção de se expandir, não pela parte da editora-mãe, a Eloísa, que nem sequer tem contacto directo com boa parte das outras cartonerias. Foi a própria inspiração que emana do projecto que lhe conferiu o seu carácter viral. Hoje, é possível visitar a Sarita Cartonera em Lima, no Peru; a Animita Cartonera, em Santiago, no Chile; a La Cartonera em Cuernavaca, no México; a Yiyi Yambo e a Felicita Cartonera em Assunção, no Paraguai; a Dulcineia Catadora, em São Paulo, no Brasil; Mandrágora Cartonera em Cochabamba, na Bolívia ou a Yerba Mala Cartonera em La Paz, na Bolívia - e muitas outras...
Formas diferentes de trabalhar e de produzir, diferentes escalas e diferentes intervenientes - mas o mesmo conceito nuclear, a ideia de uma editora que vende "mais do que livros".
Muito mais do que livros
Todas estas editoras nascem da intenção comum de vender algo mais que apenas estes objectos-livros. Deste modo, conseguem "vender" (ou melhor, oferecer) visões e ideais alternativos ao mundo como o vivemos. Oferecem pistas sobre modos alternativos de funcionamento, novos valores, sonhos futuros - e oferecem esperança.
Na realidade, oferecem valores diferentes a públicos diferentes: ao Argentino médio, oferecem uma oportunidade para questionar a sua potente indústria editorial, e as armadilhas da sua cultura profundamente capitalista. Para as classes mais baixas, oferecem a perspectiva de um caminho para aqueles que se sentem impotentes perante a falta generalizada de emprego. Para todos os outros, oferecem imagens maravilhosamente românticas de outras formas pelas quais o mundo poderia funcionar. Oferecem acesso e visibilidade a um fenómeno que não pode passar omisso, a realidade destes milhares de pessoas que vivem diariamente dos detritos e sub-produtos das sociedades que os acolhem.
Para todos nós, envolvidos com a ideia de que "um outro mundo é possível", oferecem um exemplo inspirador de um projecto autónomo e auto-sustentável. E ainda nos oferecem livros que são símbolos do poder comunitário e colaborativo em momentos de crise.
Mas eles também vendem livros, certo?
Ah, mas é claro! - Também vendem livros. Sobretudo, vendem livros. Lindos livros de cartão, que certamente mancharão a mala do seu feliz proprietário, ou se colarão à sua carteira, mas que contêm algumas das melhores vozes que a literatura sul-americana tem para oferecer.
Estes livros são sem dúvida uma experiencia literária inusual. Nas mãos, seguramos um objecto extremamente leve, de miolo de papel com capa de cartão, cortado e colado e pintado expressivamente. As capas são assumidamente coloridas e divertidas, pintadas à mão em todos os estilos imagináveis - portanto, cada livro é sempre uma peça única. Não há dois livros iguais. Têm uma aura estranha mas preciosa, uma experiência a anos-luz da experiência normalizada e padronizada de qualquer livraria convencional. É praticamente uma aventura.
Muito mais que livros... muito mais que um catálogo vulgar
Uma das maiores conquistas deste projecto é o impressionante elenco literário que conseguiu reunir. Nos primeiros anos, Eloísa começou com escritores consagrados, como Ricardo Piglia e César Aira. Depois seguiram-se textos mais experimentais de autores desconhecidos ou emergentes, bem como livros raros. Hoje, com quase duas centenas de títulos, o catálogo da Eloísa abrange poesia a contos, romances curtos a peças de teatro, até literatura para crianças, incluindo autores Chilenos, Mexicanos, Uruguaios, Brasileiros, da Costa Rica ou do Peru.
É admirável como com tão escassos recursos de produção, em sentido material, se pode dar corpo a tão alto valor social, e cultural. Não custa quase nada produzir um destes itens, pelos padrões ocidentais, mas a qualidade literária é ainda assim de valor muito elevado.
"Las tapas feas venden más"
A pobreza e o défice material são muitas vezes uma deliberada opção estética. Não se trata no entanto de uma estratégia enganosa para vender mais livros, ou de um golpe de marketing, na pior acepção do termo. Estas capas descrevem exactamente o cenário de que nasceram, e, nesse sentido, são cruelmente genuínas.
As pessoas que vendem e pintam estes livros estão bastante consciente dos valores e dos mitos que fazem com que os livros se vendam como se vendem, e não hesitam em tirar partido disso. O "mal pintado", o "tosco", o "artesanal" são sensações defendidas pelas escolha primária de cores e os acabamentos pouco cuidados.
A posição do designer ou director-artístico foi alegremente abolida. Qualquer livro pode ser montado e pintado por qualquer pessoa. Qualquer pessoa que entre na loja e sinta vontade de arregaçar as mangas, é muito bem-vindo a fazê-lo. Qualquer coisa que conseguir materializar será bom o suficiente, não há capas melhores que outras. Na Eloísa, vale tudo - e isso tem qualquer coisa de libertador.
O paraíso dos jornalistas
Outro feito extraordinário é sem dúvida a atenção mediática que tem e teve este projecto (e mais tarde os seus similares) desde o primeiro dia, quando ainda se vendiam legumes junto com os livros, na antiga sede de Almagro (hoje em dia a Eloísa reside no bairro de La Boca, um dos bairros mais vibrante de Buenos Aires).
Todos os dias aparecem de visita repórteres, fotógrafos, estudantes, ou estudiosos de todo o tipo. Este projecto já deu origem a várias dissertações académicas, e até a um documentário (de autoria da realizadora Norueguesa Annie Rostad) que deverá sair muito em breve. Somando a isso o facto de que um dos iniciadores do projecto - Washington Cucurto - é um polémico infant-terrible da literatura Argentina - amado por muitos, odiado por outros tantos - o resultado é que é imenso o que já foi dito e publicado sobre a Eloísa.
Sustentabilidade económica
A Eloísa é um caso raro de um projecto de cariz social e artístico que conseguiu alcançar a auto-suficiência, que nunca aceitou um subsídio ou financiamento de qualquer espécie. Sendo isto incomum e admirável, também é verdade que coloca uma pressão económica sobre o projecto que lhes serve de justificação em várias situações para que aspectos sociais e artísticos sejam negligenciados. Simplesmente porque os livros têm impreterivelmente de ser vendidos.
A estimativa aponta para a necessidade de vender pelo menos 400 livros por mês para suportar as pessoas que mantêm o projecto, e isso não é pouco considerando que um livro pode levar facilmente meia-hora a fabricar. Este é certamente um desafio - a sustentabilidade económica e a integridade ética e social - com que se confrontam imensos - se não todos - projectos sociais do mesmo cariz, o chamado grassroots ou bottom-up.
Reciclagem e aspectos ambientais
Imagine-se que a cada noite, dezenas de milhares de pessoas (os números apontam para cerca de 100,000) caminham pelas ruas de Buenos Aires vasculhando cada contentor e cada saco de lixo. Eles são os cartoneros, o sistema não-oficial de reciclagem em Buenos Aires. Abrem contentores e rasgam os sacos de plástico, deixando atrás de si um caos indescritível, e levando consigo não só cartão, mas qualquer outro material que possa ser vendido e reintegrado no ciclo de consumo.
Se por um lado esta actividade possibilita que muitas famílias não caiam completamente abaixo do limiar de pobreza, e permite que os materiais desperdiçados sejam reintroduzidos na cadeia de produção e consumo; por outro lado, a maneira como o fazem é também o que torna Buenos Aires num enorme contentor urbano
e, portanto, diminui a qualidade de vida, e a qualidade ambiental dos espaços colectivos.
É frequentemente dito que a Eloísa vende livros reciclados - mas isso é incorrecto. Utilizam cartão que de outra forma seria revendido ou desperdiçado, dando-lhe uma nova vida. E isso tem sem dúvida o seu valor. Mas em qualquer caso, é importante notar que produzem os seus livros utilizando papel branco branqueado e pigmentos químicos convencionais. Não trocam livros por outros bens, vendem-nos.
Ou seja, não criam directamente qualquer solução brilhante para qualquer questão ambiental. O que eles fazem sim, e isso tem de ser valorizado, é sensibilizar-nos a todos para o potencial de prolongamento de vida que tem qualquer material dentro dos nossos contentores de lixo.
Se levar-mos esta ideia até ao seu expoente máximo, podemos até observar como metaforicamente existe aqui uma declaração bastante poderosa, acerca da forma como escolhemos desperdiçamos ou reintroduzir tantos os nossos excedentes materiais, como humanos. E isso é pertinente quando se fala da parte material, o cartão, mas terrivelmente polémico e destabilizante quando se dirige à parte humana, os cartoneros.
Com tudo isto em questão, o resultado é um fascinante e vibrante ponto de encontro entre expressões artísticas, sistemas sociais, e a vida-em-geral. Esta característica inclusiva tem muito a ver com as abordagens artisticamente unificadoras que nos deixaram tradições como a de Joseph Beuys, com o seu conceito de "escultura social". É de notar que Javier Barilaro (novamente, um dos três fundadores do projecto-mãe, apesar de nos dias que correm Javier se ter desligado para desenvolver o seu próprio trabalho autoral) tem em diferentes entrevistas referenciado justamente este importante link.
"Falemos de um sistema que transforme todos os organismos sociais numa obra de arte, em que todo o processo de trabalho esteja incluído ... algo em que os princípios de produção e de consumo assumem outra qualidade. É um projecto gigantesco." Joseph Beuys (tradução livre). Beuys não deixa de ter razão em relação às proporções do que ele próprio propõe mas, como se diz, até a viagem mais longa começa com um pequeno passo. Eu arrisco-me a propor que estes trinta e dois projectos (e a crescer) são trinta e dois pequenos passos.
E finalmente, como agarrar um destes livros?
Se estiver em Buenos Aires (... que sorte!) a passagem obrigatória é por La Boca, perto do emblemático estádio do Boca Júnior. A Eloísa mora na rua Aristóbulo del Valle, 666.
É também possível encomendar via postal através do site: www.eloisacartonera.com.ar
Notas:
Joana Bértholo trabalhou com a Eloísa Cartonera durante meio ano, em 2009. Especial agradecimento ao trabalho académico de Johana Kunin pela perspectiva mais alargada das restantes 20 editoras. http://johanakunin.blogspot.com/
por Joana Bértholo
Outubro 09
via IM Magazine
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