Estiveram esquecidos durante “muitos, muitos anos” numa zona de difícil acesso do departamento de Zoologia da Universidade de Coimbra (UC). Mas num levantamento exaustivo que estava a ser feito das mais de 150 mil peças que integram a colecção do departamento, foram descobertos numa grande caixa de folha-de-flandres: lá dentro estavam 68 exemplares de uma colecção de peixes do Brasil, recolhidos no século XVIII pelo naturalista português Alexandre Rodrigues Ferreira naquela que foi, então, uma das maiores expedições científicas realizadas pelo país.
“Estas peças são de um valor e de um e significado absolutamente extraordinário”, considera o director do Museu da Ciência da UC, Paulo Gama Mota.
As peças, que Paula Gama Mota classifica de “belíssimas” e que estão “num óptimo estado”, foram conservadas através de uma técnica rara: “Podemos chamar-lhe quase uma espécie de herbário de peixe: em vez de plantas, são peixes que estão montados e secos em cima de folhas de papel”, descreve o professor universitário da UC.
De acordo a UC, os 68 exemplares de peixes serão oriundos do antigo Real Museu da Ajuda, ou Gabinete Real da Ajuda, para onde terão sido encaminhadas todas as peças que foram recolhidas na expedição filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, uma expedição na bacia do Amazonas que terá sido encomendada pela Casal Real portuguesa e que se prolongou durante quase dez anos, entre 1783 e 1792.
Ilustrado pelos pintores da expedição do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, no fim do século 18, o boto cor-de-rosa é uma espécie notável da Amazônia, cujos sinais de ocupação remontam há mais de 11 mil anos
As peças recolhidas por Alexandre Rodrigues Ferreira, que vão de artefactos de etnografia das tribos índias da amazónia a colecções de material botânico e zoológico sofreram, no entanto, várias vicissitudes ao longo dos anos: foram dispersas por várias instituições, uma parte significativa foi levada para Paris durante as invasões francesas, outra parte foi destruída no incêndio que deflagrou no Museu Bocage.
De acordo com o museólogo Pedro Casaleiro, que foi o responsável por esta descoberta, no arquivo do Museu Bocage existe mesmo o registo de uma “uma importante remessa de espécimes do Real Museu da Ajuda para a UC, datada de 1806, grande parte deles com origem na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira”, refere numa nota do Museu da Ciência.
Parte do espólio, que esteve fechado e esquecido durante décadas, será apresentado publicamente na próxima quarta-feira e o director do Museu da Ciência tem já planos para uma exposição dedicada à colecção agora descoberta. “Estas peças vão-nos permitir saber mais coisas. Em primeiro lugar, sobre os peixes atlânticos que existiam naquela altura naquela zona do globo. Depois, vamos conseguir estudar melhor o próprio trabalho de recolha do Alexandre Rodrigues Ferreira, que foi o responsável pela maior expedição naturalista portuguesa”, afirma Paulo Gama Mota.
publicado em O Público
Sobre Alexandre Rodrigues FerreiraALEXANDRE RODRIGUES FERREIRA nasceu no Brasil, na cidade de Salvador, em 27 de abril de 1756 (Prestes, 2000), mas foi educado em Portugal. Em 1770, aos quatorze anos de idade, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra onde permaneceu por dois anos. Em seguida, transferiu-se para a Faculdade de Filosofia, na qual, em 1778, obteve sua titulação em Filosofia Natural (ibidem).
Caracterizado por um perfil multitemático em suas investigações, foi denominado zoólogo, geógrafo, sociólogo, etnólogo, antropólogo, economista e agrônomo, pelos diversos autores que escreveram sua biografia.
Apesar de não concluir o curso de Medicina, escreveu a monografia Enfermidades endêmicas da Capitania de Mato Grosso contribuindo para a temática médica, sendo mesmo chamado de "médico" baiano (ibidem).
Aos 27 anos, recém-egresso da Universidade de Coimbra, foi indicado por Domingos Vandelli1 para chefiar uma expedição filosófica2 organizada, dirigida e financiada pelo Estado lusitano (Costa, 2001). Alexandre seguiu imediatamente para Lisboa; entretanto, esperou cinco anos para o início da expedição. Nesse intervalo se envolveu em atividades relacionadas à História natural que lhe renderam a eleição como membro da Real Academia das Ciências de Lisboa (Prestes, 2000).
Em 1783, finalmente, Ferreira partiu para a expedição, considerada o evento de cunho científico mais importante empreendido por Portugal em solo brasileiro. A expedição chefiada por ele, na qualidade de naturalista, estendeu-se pelas capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro (Amazonas) e Mato Grosso (Cuiabá).
Durante a viagem, Ferreira deveria estudar a etnografia das regiões percorridas, relatar e acondicionar os produtos encontrados e cuidar dos aspectos práticos da expedição.
Foi acompanhado por dois riscadores,3 José Joaquim Freire e Joaquim José Codina, e por um jardineiro-botânico, Agostinho Joaquim do Cabo. Os riscadores registravam em aquarelas a fauna, a flora, a geografia e a etnografia brasileiras. Para desenvolver todo o trabalho da expedição, algumas pessoas da população local eram treinadas para os ofícios de preparadores de animais e aves, pois tudo havia de ser cuidadosamente coletado, classificado e preparado para o embarque rumo a Lisboa (Prestes, 2000).
Ferreira chegou ao Pará em outubro, iniciando seus trabalhos pela ilha de Marajó. Em 1784, partiu para o Rio Negro, que percorreu até a fronteira, e em seguida retornou para Barcelos, a capital da capitania de São José do Rio Negro. No final de agosto de 1788, subiu o Rio Madeira e o Guaporé, chegou a Vila Bela, capital de Mato Grosso, em 1789, sendo acometido de malária durante a viagem. Seguiu para Vila de Cuiabá em 27 de junho, descendo pelos rios Vila Cuiabá, São Lourenço e Paraguai, voltando para Belém em janeiro de 1792 para regressar a Portugal.
Casou-se com Dona Germana Pereira de Queiroz Ferreira em 16 de setembro de 1792. Regressou a Lisboa em janeiro de 1793, quando foi nomeado oficial da Secretaria Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Em 25 de julho de 1794, foi condecorado com a Ordem de Cristo e, em 7 de setembro, assumiu o cargo de diretor interino do Real Gabinete de História Natural e Jardim Botânico. Passou a vice-diretor em 11 de setembro de 1795. No mesmo ano, foi designado administrador das Reais Quintas e, posteriormente, deputado da Real Junta de Comércio. Em 24 de julho de 1807, ganhou um Ofício na Alfândega do Maranhão, vindo a falecer no dia 23 de abril de 1815.
Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e CuiabáA obra de Alexandre Rodrigues Ferreira representa uma preciosa e completa fonte de informação para o acesso à visão da Amazônia do século XVIII. Traz contribuições para os diversos campos da pesquisa, desde a história política até a história do cotidiano, faz uma detalhada descrição das riquezas existentes na Amazônia, além de uma importante referência etnológica ao descrever e comparar os povos do Novo Mundo com os europeus.
Sem dúvida, afirma Costa (2001), as grandes viagens marítimas anteriores à expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira trouxeram grande avanço para ampliação do conhecimento sobre a geografia dos continentes, agregaram inúmeras informações acerca dos reinos animal, vegetal e mineral, bem como contribuíram para desfazer mitos e descobrir povos com novas culturas. Porém, não foram suficientes para desvendar as terras interiores.
Nesse sentido, Humboldt (apud Costa, 2001) afirma que só é possível conhecer verdadeiramente um lugar quando se penetra seu interior, pois é justamente aí que consiste a possibilidade de conhecer sua fauna, flora, a composição do solo e, especialmente, os povos que o habitam. O continente americano não era uma exceção, e a exploração de parte do território amazônico, da capitania de Mato Grosso e Cuiabá fazia parte do acordo contido nos tratados assinados entre Portugal e Espanha.
Por força desses tratados (que definiam suas fronteiras com base na ocupação efetiva) firmados entre as duas colônias ibéricas, a expedição filosófica chefiada por Alexandre Rodrigues Ferreira foi idealizada em 1778 por Martinho de Melo e Castro, ministro da Secretaria dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, com o intuito de agregar o interesse científico e econômico ao caráter político-militar das comissões de demarcação (Costa, 2001; Prestes, 2000).
Conforme Prestes (2000), apesar de se propor à expansão das ciências, a expedição não possuía um caráter exclusivamente científico. O evento não se encarregaria somente de pesquisar a fauna, a flora e os minerais do Brasil. Vale ressaltar que ele também deveria responder a outro propósito: o de recolher uma variada gama de informações de ordem socioeconômica e política.
À época da expedição, assinalam Galvão & Moreira Neto (1974), Portugal havia exaurido a produção de ouro e diamantes do Brasil. Nessa ocasião, a metrópole redirecionava seus interesses para a agricultura brasileira, a qual se mostrava muito promissora. Prestes (2000) afirma que a Coroa portuguesa buscava desesperadamente encontrar ao mesmo tempo as causas e as soluções para o atraso e a decadência de suas atividades econômicas, mesmo que isso significasse permanecer muito aquém de outros países europeus no avanço da ciência. De fato, a Coroa portuguesa ainda esperaria muito tempo para esse feito.
Nesse cenário, Alexandre Rodrigues Ferreira aceitara uma grande empreitada que era a de estudar a natureza amazônica: encontrar uma forma de a exploração empreendida por sua expedição ser lucrativa para Portugal. Como o aspecto econômico não interessava aos avanços do conhecimento almejado pelo século das Luzes, é possível que o próprio Ferreira tenha contribuído para que sua expedição não fosse devidamente reconhecida como um evento de cunho científico.
Além de se propor ao avanço da ciência, a expedição demonstrava a grande visão estratégica portuguesa no final do século XVIII, pois o território brasileiro estava contido num projeto estatal com a finalidade de estudar a natureza segundo os critérios da História natural. Dessa forma, seria possível uma descrição geográfica exata de cada lugar que possibilitava a exploração racional dos territórios coloniais (Costa, 2001).
A expedição filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira nos rendeu um inestimável conjunto de informações sobre a fauna, a flora, os minérios, herbários, animais empalhados, amostras de madeira, desenhos e aquarelas, e uma rica análise etnográfica das populações indígenas. No entanto, vários teóricos especialistas no assunto demonstram em seus textos que grande parte do material coletado pelo autor foi extraviado no transporte para Portugal ou saqueado, como o saque feito pelos franceses sob as ordens do marechal Junot, em 1808.
Ferreira estaria incumbido de percorrer 39 mil quilômetros de hileia e sertão observando, registrando e colecionando tudo o que encontrasse. Deveria, ainda, obedecer à árdua tarefa do conjunto de instruções burocráticas determinadas pelo governador e capitão-general do Estado, Martinho de Souza de Albuquerque.
A expedição durou quase dez anos, as narrativas de Alexandre Rodrigues Ferreira falaram de encontros, cenários e personagens. Em suas memórias e seus diários, registravam-se dificuldades, sucessos e fracassos. As cartas enviadas às autoridades portuguesas por Ferreira constatam esse fato quando ele fala das constantes deserções pelos soldados e índios domésticos.4
A primeira fase da passagem de Alexandre Rodrigues Ferreira pela Amazônia brasileira se deu nas capitanias do Grão-Pará e Rio Negro, onde passou a maior parte do tempo da viagem e durante o qual coletou um riquíssimo acervo e registrou suas descobertas em diários e memórias. A segunda se deu na capitania de Mato Grosso e Cuiabá, num trajeto entre os rios Madeira, Mamoré e Guaporé até os confins das terras lusitanas. A capitania de Mato Grosso e Cuiabá era pouco conhecida e estudada, mas era um grande atrativo para Portugal, pois era recém-ocupada pelos espanhóis, limite com o vice-reino do Peru, e rica em ouro e diamantes.
No que concerne aos relatos do cotidiano, registros em diários e quantidade de desenhos e aquarelas, percebe-se que a primeira etapa da viagem é vastamente documentada, enquanto a segunda, ou seja, a passagem por Mato Grosso, é pouco explorada e conhecida. Com efeito, apesar de menos documentada, o conjunto de informações deixado por Rodrigues Ferreira é o bastante para afirmar que a viagem pela capitania de Mato Grosso e Cuiabá foi suficiente para o reconhecimento das fronteiras com os territórios castelhanos e as questões referentes à mineralogia. Na avaliação dos demarcadores portugueses, essa capitania era uma das mais importantes de todo o Brasil, tanto pela sua extensão como pelas riquezas e por ser fronteira com o Peru.
O complexo inventário feito pelo autor sobre as regiões visitadas permite-nos o acesso a elementos muito importantes para a compreensão dos povos indígenas da época, o estudo de suas culturas e seu processo de colonização.
No universo de informações e representações construídas a partir das longas expedições realizadas pelos viajantes que aqui estiveram, Alexandre Rodrigues Ferreira faz parte de um grupo de pensadores que descreveram a Amazônia, formulando interpretações de amplo espectro e contribuindo de forma preponderante para a formação do pensamento social na Amazônia.
Nesse contexto, ler e analisar Alexandre Rodrigues Ferreira nos remete a uma reflexão antropológica de suas observações relativa ao homem do Novo Mundo. É justamente nesse sentido que vamos compreender a obra do autor; nesse trabalho, especificamente, quando observou e descreveu a classe dos mamíferos observados nos territórios dos rios Amazonas, Negro e Madeira. link
José Nailton Leite; Cecília Sayonara G. Leite, Alexandre Rodrigues Ferreira e a formação do pensamento social na Amazônia
Comandada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, a Viagem Filosófica foi a mais importante expedição científica portuguesa do século XVIII. Percorreu o interior da América portuguesa durante nove anos e produziu um rico acervo, composto por diários, mapas populacionais e agrícolas, cerca de 900 pranchas e memórias (zoológicas, botânicas e antropológicas).
O excelente desempenho de Alexandre Rodrigues Ferreira na Faculdade de Filosofia permitiu-lhe exercer o primeiro cargo de naturalista na burocracia estatal, sendo-lhe confiada a tarefa de percorrer as possessões do Reino «com a laboriosa comissão de ele ser o primeiro vassalo Português, que exercitasse o nunca visto em Portugal, nem antes do feliz reinado de Sua Majestade, exercitado emprego de Naturalista».
Até o início do século XX a Viagem Filosófica rendeu algumas polémicas: as descrições de Ferreira são de cunho meramente utilitarista, mercantil, ou trata-se de um verdadeiro naturalista? Ainda, vale destacar as condições precárias do incentivo à viagem, e o fim do autor. Ambiguidades que de algum modo lembram aquela passagem de Pero de Magalhães Gândavo, sobre essas terras: o que enfim é isso? lugar sacro (algum lugar que tem um fim em si mesmo), ou fonte de utilitários (mero meio para objetivos situados fora daqui)?
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