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Maria Andresen Sousa Tavares, primogénita de Sophia de Mello Breyner Andresen, realça que a obra da poeta - tão acarinhada pela sua doçura- tem também um lado obscuro e que essa profunda dualidade devia ser alvo de maior estudo académico. Um grande evento cultural permitirá empreender esse caminho que começa, esta quarta-feira, com a doação do Espólio à Biblioteca Nacional, em Lisboa.
"Dei-me conta de que a minha mãe tem sido pouco estudada, muito pouco trabalhada academicamente. Há muita leitura de Sophia no ensino secundário, mas há pouca investigação. Penso que a sua obra, simultaneamente tão luminosa e tão opaca, radiante e fechada, mete medo às pessoas", disse Maria Andresen Sousa Tavares, professora universitária de Letras e coordenadora da organização do espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen, sua mãe e uma das maiores poetas *** (ver rodapé) portuguesa dos século XX, agraciada com o Prémio Camões, em 1999.
Falecida em 2004, aos 84 anos, Sophia - habitualmente referenciada apenas pelo nome próprio - deixou um rico espólio de manuscritos de textos publicados e inéditos, diários, reflexões, agendas, fotografias, cartas e muitos outros documentos de grande valor para o conhecimento da sua vida, obra e processo criativo.
"Ela não se importava com essa ideia de legado, mas a certa altura pediu-me que tomasse conta do que deixava. Eu não percebia nada de espólio e tive de convidar especialistas. Eu era especialista na minha mãe! No primeiro ano a Luísa Cabral colaborou, depois fiquei sou eu com a Manuela Vasconcelos", explica a filha da poeta que analisou cada peça dentro de 87 caixotes, guardados numa garagem.
Ao fim de mais de dois anos de trabalho -com apoio do Centro Nacional de Cultura, da Fundação Calouste Gulbenkian e do BPI - o acervo ficou ordenado e será doado para que seja estudado.
A família assina, esta quarta-feira, o Termo de Doação do Espólio à Biblioteca Nacional, em Lisboa, numa cerimónia que será presidida pela Ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas.
Amigos da escritora - Artur Santos Silva, Eduardo Lourenço, Gonçalo Ribeiro Telles, Guilherme d' Oliveira Martins e Mário Soares - vão falar sobre a sua vida e obra e alguns poemas serão lidos pelos actores Beatriz Batarda e Luís Miguel Cintra.
Segue-se a inauguração da exposição "Sophia de Mello Breyner Andresen- Vida de poeta" - a que corresponde um catálogo editado pela Caminho - e a apresentação do sítio na Internet.
Nos dias 27 e 28 de Janeiro terá lugar, nas instalações da Fundação Gulbenkian, um Colóquio Internacional, promovido por Maria Andresen de Sousa Tavares e realizado com a colaboração do Centro Nacional de Cultura.
Obra, família, intervenção cívica
"Há pessoas que dizem que lêem porque acham muito bonito, mas que só a certa altura é que percebem a verdadeira força da sua poesia. O encontro na superfície daqueles textos entre luminosidade e sombra é muito poderoso", explica Maria Andresen, que com a leitura do espólio verificou que ficaram mais claros os traços " de combatividade ao lado de uma certa fragilidade. Uma complexidade muito maior do que suspeitava".
Sophia nasceu no Porto, em 1919, no seio de uma família aristocrática. Estudou Filologia Clássica em Lisboa, onde se fixou depois de se casar com o advogado e jornalista Francisco Sousa Tavares.
Passa a dividir a sua actividade entre a poesia e a acção cívica, com grande combatividade contra o regime de Salazar (tendo o marido sido preso em Caxias) e com fortes intervenções como deputada, após o 25 de Abril.
"Não houve tempo de incluir no catálogo, mas está na exposição a "Carta dos 101 Católicos", que ela e o meu pai assinaram e que foi uma grande machadada no regime totalitário, que fazia uma guerra racista, e que achava que tinha na Igreja Católica um dos seus pilares", refere Maria Andresen Sousa Tavares.
A par desta combatividade, a doçura atravessava sobretudo a obra poética (embora também tenha escrito contos, teatro, ensaio e feito traduções) e os livros infantis que começou a escrever quando os filhos (três raparigas e dois rapazes) tiveram sarampo.
Além da referência à mitologia grega, a natureza e o mar, o humanismo, a relação da linguagem com as coisas e a magia são elementos que marcam a obra de Sophia, quer nos poemas, quer nos livros para crianças.
Gerações sucessivas deliciaram-se com títulos como "O Rapaz de Bronze", "A Fada Oriana", "O príncipe da Dinamarca" ou "A Menina do Mar".
Textos sobre a espuma dos dias e um tesouro antigo
Correspondência com vários amigos e familiares, agendas, diários e outros papéis mostram como era o quotidiano de Sophia, as suas obrigações sociais e viagens, as preocupações diárias.
Reflexões sobre a arte da escrita e o processo criativo são também fundamentais para perceber a sua marca na literatura portuguesa. Sobre o poema disse que "é justo quando é necessário àquele que o escreve e necessário ao mundo".
Mas nem sempre a relação com os textos era pacífica e há cadernos que foram rasgados pela autora e só recuperados graças à intervenção de um amigo que os colou.
Outro tesouro descoberto por Maria Andresen Sousa Tavares há poucos meses, numa arca de fotografias, foram os manuscritos de poemas da adolescência, escondidos num fundo falso.
"Chamámos-lhes imediatamente "os mais antigos cadernos", já que eram do tempo em que ela tinha 12/13 anos. São os primeiros poemas e vão até 1941", refere.
Enquanto não são tomadas decisões sobre os inéditos, a editora Caminho reuniu agora num só volume "A Obra Poética", com cerca de um milhar de páginas das mais belas palavras de Sophia. Belas mas também obscuras, de "meter medo", como diz a filha.
"O lado mais sombrio é o medo da treva, da morte, do lado obscuro das pessoas e das relações, da perda do tempo. Isso sente-se muito na obra poética. Há uma angústia com a passagem do tempo, com as coisas perdidas", explica Maria Andresen Sousa Tavares.
***Apesar de no dicionário aparecerem os termos Poeta como "Escritor cuja forma de expressão literária é o verso" e Poetisa "Mulher que escreve poesia", muitas mulheres que se dedicam a esta arte começaram a descrever-se poetas, seguindo o exemplo da própria Sophia de Mello Breyner Andresen, a primeira a fazê-lo. Existem declarações de Sophia, citadas pelo próprio CIBERDÚVIDAS, dizendo que poetisa não era verdadeiramente a forma feminina de poeta, pois atribuía às mulheres um estatuto de menoridade face aos homens com idêntica actividade. O próprio catálogo da exposição, editado pela Caminho, intitula-se "SMBA - Vida de Poeta".
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