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"Estamos, simplesmente, tramados"

por Clara Ferreira Alves

Os portugueses babam-se quando alguém diz bem deles. A apagada e vil tristeza transforma-se num otimismo irracional. Vai tudo correr bem. Se vai.
Vamos então imaginar que isto, o país aflitivo, vai correr bem. Vamos imaginar que limpamos a caderneta. O Estado reduz a dívida e as obrigações e passa a ocupar-se apenas dos serviços mínimos e dos mais desfavorecidos, deixando que a empreendedora sociedade civil e as leis do mercado se ocupem do bem-estar próprio e coletivo. Esta sociedade civil, dando mostras de organização e método, energia e empenho, passa a funcionar com esmero nos serviços e produtos, não cedendo à corrupção nem ao lucro fácil, não dependendo de facilitadores e favores, não exigindo mais do que aquilo que está disposta a dar para melhorar a comunidade.
Vamos imaginar que a nova geração de políticos impolutos faz tábua rasa do passado e deixa de ceder aos lóbis e interesses, às corporações e aos grupos financiadores da sua existência. Atuando no estrito interesse da causa pública, regulando os excessos da iniciativa privada, liberta o Estado da carga de compromissos e promessas, dos esquemas de paternalismo e proteção, e liberta os cidadãos do pagamento de impostos. Oops... quer dizer, liberta do pagamento de impostos apenas e só no dia em que o país se libertar da dívida, o que quer dizer, não antes de 15 ou 20 anos e dando de barato que o estado do mundo se mantém tal qual.
Vamos imaginar que a Justiça deixa de ser um conglomerado de interesses autoqualificados para agir como matriz reguladora e agente da agilização dos processos, fiscalizando e punindo, regulando os desvios, promovendo a paz social e a aplicação das leis com garantias individuais e equanimidade, abrindo o acesso à justiça a ricos, remediados e pobres. Vamos imaginar que a justiça expedita combate a corrupção. Vamos imaginar que deixa de ser um entrave burocrático, acelerando os processos para facilitar a vida dos cidadãos e das empresas.
Vamos imaginar que o Serviço Nacional de Saúde passa a ser assegurado por seguradoras e grupos privados que administram doentes e hospitais de um modo racional e eficaz, permitindo o tratamento a tempo e horas e organizando as carreiras médicas, de enfermagem e assistência de modo a que ninguém tenha o seu acesso à medicina negado, sem deixar de estimular a atividade científica e a investigação dentro dos hospitais e centros clínicos ou científicos.
Vamos imaginar que o capitalismo português, tradicionalmente fraco e sem imaginação, dominado pelos grandes grupos e empresas, patrocinado pelo Estado desde que começou a existir como capitalismo e dependente de tráfico de influências e do acesso político, passa a ser um grupo dinâmico de criadores do capital e, enfim liberto das tutelas, inventa, promove e vende produtos e serviços portugueses de excelência, sem danificar a relação com os trabalhadores, empenhados num futuro comum. E sem dependência energética.
Vamos imaginar que as novas gerações, carregadas de qualificações agora destinadas ao desemprego, viajadas pelos programas Erasmus e mestrados internacionais, desistem de sair de Portugal e arranjam posições dignas no mundo laboral privado, onde podem contribuir para a produtiva ativação da excelência no trabalho.
Vamos imaginar que deixamos de depender do consumo e passamos a apreciar o valor das poupanças, investindo no futuro, aferrolhando o dinheiro nos bancos que, capitalizados, passam a remunerar os depósitos a prazo decentemente e a conceder crédito que permita às pequenas empresas desprotegidas criar marcas e produtos novos para exportação.
Vamos imaginar que a nossa demografia muda e, espevitados por este capitalismo eficaz, os portugueses passam a ter cerca de 3 filhos e não 1,2, contribuindo para o rejuvenescimento da população envelhecida. Com a maternidade protegida.
Vamos imaginar que os funcionários públicos, em número reduzidíssimo, passam a sujeitar-se às mesmas regras de emprego dos privados, aceitando ser despedidos e avaliados. E que nos privados se corrige a desigualdade salarial, com remunerações niveladas.
Resta uma pergunta: o que vamos vender? O que temos para vender? Depois de pôr a casa em ordem temos de exportar num mundo global, competindo com a enérgica, a barata e a qualificada força de trabalho asiática. Somos um país ocidental que não tem, nem criou, uma grande marca de exportação. A não ser que incluamos o Cristiano Ronaldo.
Vamos exportar cérebros. Porque existem portugueses que, como eu, não acreditam neste futuro radioso que nos propõem, como se fosse possível mexer no conta-quilómetros de um carro velho e cheio de vícios e metê-lo a zeros. Estamos, simplesmente, tramados. E deprimidos.

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