Manuel Alegre em Lisboa, frente à sede nacional da candidatura. fotos: Daniel Rocha e Nuno Ferreira Santos
Vem hoje no caderno P2 do jornal O Público, um trabalho de fundo de Maria João Oliveira sobre o percurso de vida de Manuel Alegre, candidato à Presidência da República. Começa assim:
Escreveu, aos vinte e poucos anos, que tinha "biografia a mais". Porque já vivera a guerra, a prisão e o exílio. A democracia não esmoreceu a sua capacidade de desobediência, embora lhe tenha dado momentos amargos, como o caso O Século, e períodos de solidão no PS. Manuel Alegre, poeta e político, recandidata-se obstinadamente a Belém. De certa forma é "um guerrilheiro/que traz a tiracolo/uma espingarda carregada de poemas".
Para ler na íntegra, clicando no link abaixo para expansão do texto.
O Século: um tabu
Manuel Alegre, 74 anos, não gosta de falar no assunto. Na biografia disponibilizada no site da candidatura, a sua primeira e única experiência governativa - foi secretário de Estado da Comunicação Social e adjunto de Mário Soares, primeiro-ministro, no I Governo Constitucional (1976/78) - é referida laconicamente: "Participa esporadicamente no I Governo Constitucional." E no livro Uma Longa Viagem com Manuel Alegre, de João Céu e Silva, o poeta admite que esses dias não são "uma boa recordação".
Contudo, sobre o caso que mais marcou a sua breve passagem (seis meses) pelo Governo - o fecho do jornal O Século - não se encontra nem uma palavra. Só em 2000, em entrevista ao Diário de Notícias, na qual reiterava que aqueles dias ainda "mexiam" com ele, ao fim de tantos anos, assumiu que o fecho da empresa era inevitável. "Em consciência, tendo em conta o interesse do Estado e os dinheiros públicos, não havia outra medida senão suspender a publicação do jornal, o que fiz. A decisão de encerramento foi tomada no Governo da engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo e não creio que tivesse alternativa."
A suspensão do jornal, em Fevereiro de 1977, quando o diário estava quase a completar um século de existência (nascera em 1880), resultou, porém, na sua morte e no despedimento de cerca de 900 trabalhadores. Alegre, que anunciou a decisão do Governo no programa Momento Político, na RTP, foi o rosto e a voz que ditou o fim do título histórico. Terá sido este o facto que transformou a sua estreia no Governo num momento traumático, ao ponto de, poucos anos mais tarde, recusar o convite de Mário Soares para integrar o Executivo do Bloco Central.
Na noite de 6 de Fevereirode 77, quando Alegre começou a ler o manifesto sobre a comunicação social estatizada, os trabalhadores d"O Século perceberam que estavam a ouvir o relato de uma morte anunciada. "Todas as revoluções têm o seu período de festa e fantasia. Todas as revoluções têm também a suahora da verdade. O nosso tempo de festa acabou. Chegou, para nós, a hora da verdade", começou por dizer, sublinhando logo de seguida: "Temo-nos dado ao luxo de gastar em oito empresas jornalísticas estatizadas cerca de 50 mil contos - o equivalente anual de 600 edifícios escolares primários."
Ao fim de 40 minutos, revelou ter assinado um despacho que determinava a suspensão, por 90 dias, de todas as publicações editadas pela antiga Sociedade Nacional de Tipografia: O Século e as revistas Século Ilustrado, Vida Mundial e Mulher - Modas e Bordados. Era a "única" medida que poderia salvar a empresa, justificou, assegurando que o pagamento de salários estaria garantido durante o período de reestruturação. "Nesse momento percebemos que nada daquilo iria ser cumprido", recorda a jornalista Maria Antónia Palla, que trabalhava então no Século Ilustrado. "Pagavam de vez em quando aos trabalhadores e estes só receberam indemnizações durante o Governo de [Francisco] Sá Carneiro", nota. "Quando Manuel Alegre saiu do Governo disse, numa entrevista, que todo aquele processo tinha sido muito traumático e que não queria aceitar mais cargos no Governo", lembra, apontando, porém, que o choque foi incomensurável para os trabalhadores. "Aquele I Governo não percebia o que era a imprensa livre. Queriam dominar o jornal e isso era muito difícil n"O Século. Era um jornal muito especial, havia uma liberdade imensa que não se sentia em nenhum outro órgão de informação."
Para uma jornalista com tanta experiência como Maria Antónia Palla "nada foi tão mau na vida" como sair d"O Século:"Gostava de tudo, do lugar, da liberdade absoluta que me davam, das boas condições de trabalho. Foi uma dor que ainda hoje existe." "Formalmente", responsabiliza Alegre pelo trágico fim do jornal. "Mas vou votar nele", acrescenta.
Também a jornalista Maria Júlia Fernandes, a única mulher na redacção do diário, ainda hoje prefere não passar defronte do antigo palacete que outrora albergou O Século (na rua homónima, actualmente ocupado pelo Ministério do Ambiente). Na noite em que Alegre comunicou a decisão governamental "muitos já não acreditaram na ressurreição" do título.
Maria Júlia Fernandes começou a trabalhar na revista Cinéfilo, também propriedade d"O Século, em 1974, tendo sido depois transferida para a Modas e Bordados. Só depois de muito "berrar" conseguiu ser colocada na redacção do diário. Na última edição do jornal, que saiu para as bancas a 12 de Fevereiro com a manchete Não dizemos adeus, ela escreveu um Breve recado a Manuel Alegre. O texto, que começava por sublinhar tratar-se de uma "carta apolítica e apartidária", descrevia "os camaradas a arrumar papéis, a retirar objectos pessoais, a fazer, portanto, as malas". E prosseguia: "Para quem foi poeta, tudo isto terá a sua poesia, embora, em princípio, se trate de um adeus a prazo. Mas para quem tem filhos a sustentar a poesia é outra: um tanto sepulcral. Não queremos acreditar que esteja em risco de ser enterrada uma instituição quase centenária. Não queremos acreditar que esteja em risco a sobrevivência de quase 900 chefes de família."
Ninguém queria acreditar na morte da empresa, mas "depois veio a desilusão" porque a reorganização prometida por Alegre, "responsável formal pelo fecho", nunca aconteceu. Maria Júlia Fernandes esteve vários meses "sem dinheiro nenhum". "Foi uma aldrabice a história de pagarem salários durante a reestruturação. Muitos arranjaram emprego mais tarde, na Anop [Agência Noticiosa Portuguesa]; outros foram trabalhar para a Feira Popular, onde nos encontrávamos muitas vezes", recorda. Tal como Maria Antónia Palla, também ela defende que a escolha de O Século teve motivações políticas. "Era o jornal onde trabalhavam pessoas com muita qualidade e muita personalidade; não dava para transformá-lo numa correia de transmissão."
No derradeiro número da publicação, o director, Manuel Magro, escrevia, esperançoso, que Alegre, "um homem de cultura, não podia ser indiferente aos valores que O Século em si mesmo consubstancia", desejando que o título regressasse "mais jovem e mais forte". Não foi isso que aconteceu. E de nada valeram as palavras do Presidente da República, Ramalho Eanes, que o jornal publicou em letras garrafais na capa da última edição: "Desejo que O Século venha a reassumir o seu lugar na História da Imprensa Portuguesa como um jornal irreversivelmente livre, honesto e próspero. Espero que assim aconteça para bem do país."
34 anos depois, o adeus
Foi um dia emotivo. Sobretudo para aqueles que o acompanhavam desde a Assembleia Constituinte - Jaime Gama, Mota Amaral, Miranda Calha e Jerónimo de Sousa - e que agora viam sair da Assembleia da República (AR) mais um dos chamados "príncipes" da democracia.
Na tarde do dia 23 de Julho de 2009, Manuel Alegre subiu pela última vez ao púlpito da Sala das Sessões. Ao fim de 34 anos de vida parlamentar, como deputado e vice-presidente da AR, despediu-se com um discurso centrado na defesa dos direitos sociais e políticos, na crítica ao divórcio entre os cidadãos e a política (principal bandeira da sua primeira candidatura a Belém), na evocação da geração que resistiu ao fascismo e na recordação das "grandes figuras" que passaram pelo Parlamento - Adelino Amaro da Costa, Francisco Sá Carneiro, Salgado Zenha, Álvaro Cunhal, Carlos Brito e Mário Soares.
Explicou que decidira sair "por decisão pessoal" e que mantinha ainda o "sonho" de "construir uma democracia socialmente avançada". Foi ovacionado de pé por todas as bancadas, cujos deputados, mais velhos e mais novos, sempre viram nele uma voz "independente e combativa", considera Mota Amaral, deputado do PSD e antigo presidente da AR. Em nome do grupo social-democrata, coube-lhe intervir no momento da despedida de Alegre - uma despedida que, leu, "não seja afinal um adeus, mas apenas um até breve". "[A saída de Alegre] à primeira vista empobrece o Parlamento, que fica privado do seu idealismo - que apeteceria dizer romântico, mas a palavra certa é socialista! -, do brilho da sua palavra, do timbre da sua bela voz, do peso da sua autoridade política. Os que aqui voltarem para a XI legislatura vão sentir a falta de Manuel Alegre. E os seus amigos, que são muitos e de todas as bancadas, vão ter saudades dele", leu Mota Amaral.
A relação entre Amaral e Alegre remonta aos tempos da Constituinte, mas fortaleceu-se quando ambos integraram a Mesa da AR, como vice-presidentes, e quando o social-democrata presidiu ao Parlamento. "Era muito empenhado, dava muitos conselhos e dirigia os trabalhos com bastante firmeza", lembra. "Dentro do PS foi sempre uma voz independente, que saiu fortalecida das eleições presidenciais de 2006, sobretudo depois de derrotar Mário Soares", diz o político a quem Alegre vaticinou uma eventual candidatura à Presidência da República. Em 1994, dois anos antes das eleições que deram a vitória a Jorge Sampaio e deixaram Cavaco Silva em segundo lugar, Alegre, em entrevista ao Açoriano Oriental, fez questão de salientar o "perfil de homem de Estado" de Amaral, qualificando-o como "um dos candidatos possíveis do PSD".
A teia de amizades que Alegre criou ao longo de mais de três décadas na AR estendeu-se a todas as bancadas partidárias. Ribeiro e Castro, deputado do CDS-PP, considera-o "uma referência", apesar das ideologias que os separam. "É uma referência mais nítida para aqueles que viveram o nascimento da democracia", explica, sublinhando que muito do prestígio que Alegre granjeou junto dos outros partidos deve-se a "um percurso de afastamentos e aproximações relativamente à sua bancada que lhe permitiram seguir uma linha pessoal". Este caminho valeu-lhe, diz o deputado democrata-cristão, períodos de solidão política: "Sempre procurou, às vezes em momentos de enorme solidão, ser coerente com a sua própria história cultural e política. Nunca foi um clone ou uma marioneta."
A perseverança ideológica de Alegre, traduzida, por exemplo, no facto de nunca ter votado uma revisão constitucional, é um dos atributos apontados por Joaquim Romero de Magalhães, que, apesar de conhecer o escritor há 50 anos, dos tempos da boémia coimbrã, só veio a reencontrá-lo nas eleições para a Constituinte, em 1975. Ambos concorriam pela lista socialista de Coimbra e já nessa altura Alegre se mostrava "igual a si próprio, afirmativo e ideologicamente muito seguro", recorda o historiador.
Funcionários da AR: um outro olhar
A admiração dos seus pares, a que não é alheio o fascínio pela sua eloquência, não é partilhada por muitos funcionários da AR, que o consideram sobranceiro. No Parlamento não há quem queira identificar-se para contar algumas das histórias que estão associadas ao candidato presidencial, que, dizem, raramente cumprimenta os trabalhadores.Uma das mais conhecidas, e que terá contribuído para o recrudescimento dessa antipatia em relação a Alegre, aconteceu quando, ainda vice-presidente da AR, ordenou a compra de uma nova frota de automóveis para a presidência. Quando o pedido chegou à comunicação social, Alegre prontificou-se a desmentir a ordem, apesar de os funcionários já terem solicitado orçamentos a vários stands de marcas de luxo. "Deixou ficar mal os trabalhadores", contou ao P2 um funcionário da AR.
Um outro episódio que é frequentemente contado como uma espécie de anedota prende-se com a utilização excessiva do automóvel e do motorista contratado pela AR, a que Alegre tinha direito enquanto vice-presidente. Não há quem não conheça o "cão de caça" do poeta - o seu motorista, a quem cabia também apanhar a caça no Alentejo - e recorde que, sem estar no exercício do seu cargo, o deputado abusava dos privilégios que lhe eram atribuídos. Nomeadamente do carro e do condutor: a utilização do veículo implicava que gasolina e portagens eram pagas pela AR, tal como as horas extraordinárias, sublinhou uma outra fonte do Parlamento.
Contactado pelo P2, Manuel Alegre diz que o primeiro dos episódios relatados "é totalmente falso". Quanto à segunda das histórias, o candidato esclarece que o carro de que dispunha quando era vice-presidente da AR foi-lhe atribuído "a título pessoal": "Cheguei a prescindir do abono dado pela Assembleia para as deslocações, pelo que podia usar o carro à vontade." E a caça? "Posso ter ido uma ou outra vez..."
Ninguém me cala
Além dos funcionários da AR, há também muitos socialistas que não morrem de amores por Alegre. Ao longo de mais de três décadas no Parlamento, foi na sua bancada e no seu partido que ele originou mais ódios de estimação. Sobretudo durante os Governos de António Guterres, quando os casos Vizela, co-incineração e despenalização do aborto elevaram o candidato ao estatuto de rebelde com causas e de transgressor da disciplina partidária.
Nos tempos mais quentes da discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, cujo primeiro referendo aconteceu em 1998, tendo Guterres admitido votar "não", Alegre nem sequer participava nas reuniões do grupo parlamentar. Um dia, julgando que a bancada iria debater a despenalização do aborto, apareceu na reunião e foi surpreendido com uma mudança repentina de tema. Saiu-lhe a regionalização (que ele ainda hoje contesta). Mas não desarmou: displicentemente pôs-se a ler o Manifesto do Surrealismo, de André Breton, que trazia numa pasta, contou a revista Focus.
As críticas a Guterres e à tentativa do primeiro-ministro e secretário-geral de "governamentalizar" o PS, aproximando-se simultaneamente do chamado "centrão", provocaram a organização, entre socialistas, de verdadeiros esquadrões anti-Alegre. José Lello, socialista de serviço para o contra-ataque interno, chegou, em 1997, a avisá-lo de que seria melhor abandonar o partido se não silenciasse as críticas ao Governo. O poeta desvalorizou o recado, mas não deixou de acicatar o então secretário de Estado: "José Lello é um bobo do partido. É um bobo de Estado. E gosta sobretudo de ser bobo da corte."
Depois de Lello, apareceu um dos chamados pesos-pesados do partido: ainda em 97, António Costa, ministro dos Assuntos Parlamentares, afirmou que "deixou de haver liberdade no PS para os que pensam como Manuel Alegre e outros guardiões do templo". Em causa estavam não apenas as afirmações do escritor em diversas entrevistas - o Governo "não é de esquerda nem de direita", proclamava - mas também os artigos que, semanalmente, publicava no Expresso. Um deles, titulado Um pouco mais de esquerda, desafiou a paciência dos socialistas: escreveu sobre a "descaracterização e a diluição ideológica e política" do PS, alertando para o "risco" de o partido "cair na lógica que tanto se criticou ao PSD - a da governamentalização do partido". "O que não é bom", continuava, "nem para o PS, nem para o Governo, nem para a democracia. Muito menos para uma perspectiva de esquerda em Portugal".
Um ano depois de derrotado o"sim" no referendo, Alegre afirmou que o debate sobre a despenalização do aborto tinha sido o "único momento desagradável" nas suas relações com Guterres. Não foi. Em Fevereiro de 2001 continuava apostado em não abrandar a sua luta interna contra o guterrismo: "Neste momento o PS é um partido muito governamentalizado, muito situacionista, muito de aparelho, muito sem causas, sem projectos e sem rumo", disse a O Independente.
E um ano depois da consulta popular andava novamente em bolandas com o PS, nomeadamente com a bancada e com o então líder parlamentar, Francisco Assis. Alegre e Almeida Santos tinham quebrado a disciplina de voto ao aprovarem a elevação de Vizela a concelho e a direcção do grupo ponderou "castigar" os deputados. O parlamentar pensou em sair do partido, mas a sua indignação não foi tão longe. Assumiu que seria melhor manifestar as suas (o)posições às decisões partidárias dentro do PS do que fora.
No entanto, em Junho de 2000, contestando a escolha de Souselas, em Coimbra, para implantar a co-incineração, demitiu-se do Secretariado Nacional. "É problema dele", comentou um displicente Jorge Coelho, presidente da Comissão Permanente, quando questionado sobre a decisão do deputado. E Guterres aproveitou o momento para ajustar contas antigas. Quando Alegre lhe disse, durante a reunião daquele órgão directivo, que também tinha votado contra a lei de segurança interna durante o Bloco Central, o primeiro-ministro ripostou, aqui citado pelo Diário de Notícias: "[Não votei essa lei] porque a direcção de que tu fazias parte me excluiu das listas." Somente Francisco Assis defendeu a frontalidade do socialista, notando que aquela demissão penalizava o partido. José Sócrates, na alturaministro do Ambiente, não publicitava as suas divergências com o deputado, mas desafiava-o: depois de uma comissão independente ter apontado Souselas como um dos locais para avançar com a co-incineração, fez mexer o aparelho do PS e, subitamente, foi homenageado num jantar promovido pelas federações socialistas.
Alegre não baixou armas. Ameaçou sair da AR caso Coimbra não fosse retirada do mapa da co-incineração e pugnou pela liberdade de voto dos deputados eleitos por Coimbra (Assis concedeu-lha).
Comummente apelidado de desobediente, continuou a questionar, até à demissão de Guterres, em 2001, onde estava a identidade ideológica do partido. Somente a eleição de Ferro Rodrigues para a liderança do PS lhe trouxe alguma tranquilidade, tendo participado activamente na campanha para as legislativas de 2002.
A amenização das suas relações com o partido tinha, porém, uma pedra no sapato: Jorge Sampaio. Em 2002, no âmbito do caso Moderna (fraude financeira que se traduziu num desvio de verbas da cooperativa que geria a universidade), não poupou críticas ao Presidente da República e a Durão Barroso, primeiro-ministro, por não forçarem a demissão de Paulo Portas, então ministro da Defesa, alegadamente envolvido no processo. E um ano depois, após a Cimeira das Lajes, irritou novamente o chefe de Estado ao escrever que as posições opostas de Barroso e Sampaio sobre a invasão do Iraque configuravam um "conflito institucional".
Há muitos anos, contudo, que Sampaio, ou melhor, a sua primeira candidatura a Belém, em 1996, constituía um problema mal resolvido para Alegre. Que nunca escondeu que discordara da ausência de debate interno sobre a escolha do candidato presidencial para defrontar Cavaco Silva. Em entrevista à Visão, em Fevereiro de 1996, menos de um mês depois da vitória de Sampaio, que hoje integra a Comissão de Honra da sua candidatura, não ocultou o seu ressentimento: "Se eu quisesse ter sido candidato, tê-lo-ia sido. Houve muita gente a tentar empurrar-me e a pressionar-me bastante para ser candidato. Dentro e fora do PS. As pessoas têm a suas características próprias. Jorge Sampaio possui um conjunto de atributos que o tornam mais adequado para o exercício destas funções. Tem mais paciência, porventura mais gosto pela função e mais apetência. Eu gosto da intervenção, mas não tenho apetência pelo exercício de cargos nem a vocação da gestão. Preciso de disponibilidade e de liberdade para escrever."
"Não há memória em política"
A negação de ambições políticas, nomeadamente a ideia de se candidatar a Presidente da República, foi reiterada por Alegre em inúmeras entrevistas publicadas na imprensa, desde meados da década de 90. Mas como ele próprio afirmou ao semanário Expresso, em 2000, "não há memória em política". Três anos depois de Sampaio ter sido eleito para o primeiro mandato em Belém, confirmou uma vez mais que tinha sido "pressionado" para se candidatar à Presidência, faltando-lhe, porém, "vontade" e "paciência". "E depois como é que se escreve, como é que se lê, como é que se vai à pesca? Não tenho qualquer ambição política."
Em Novembro de 2002, ao PÚBLICO, insistiu que a chefia do Estado não estava no seu "horizonte político", ressalvando, contudo, que "em política não há respostas definitivas": "Nunca sabemos o que vai acontecer." E em 2003, comentando ao Diário de Notícias a possibilidade de Soares apresentar uma recandidatura a Presidente, afirmou: "Tudo depende das circunstâncias. Soares é uma grande reserva da democracia."
A liderança do PS também não estava no seu horizonte político, mas, face à demissão de Ferro Rodrigues, em 2004, na sequência da decisão de Sampaio de chamar Santana Lopes a formar Governo, a candidatura a secretário-geral afigurou-se inevitável. Reeditou, depois do caso da co-incineração, o confronto com Sócrates; teve ao seu lado a chamada ala esquerda do partido (Vieira da Silva, Augusto Santos Silva, Vera Jardim, Alberto Martins), que estava também presente na candidatura de João Soares; mas não conseguiu domar o aparelho, então já tomado por José Sócrates. Que deu a primeira maioria absoluta ao PS nas legislativas de Fevereiro de 2005.
Alguns meses depois, quando o primeiro-ministro vivia ainda em estado de graça, Alegre voltou a abanar as estruturas do partido, desta vez apostado em avançar para Belém.
Os socialistas torceram o nariz e ele ora dava indícios de que estava disposto a concorrer a Belém, ora recuava. As suas constantes intervenções, em jantares por todo o país, atingiram um tal grau de ambiguidade que baralharam alguns dirigentes. Maria de Belém Roseira chegou a dizer que era "iliterato" quem não tinha percebido que Alegre, num encontro em Viseu, tinha recusado explicitamente candidatar-se à Presidência. E António Costa secundou-a, elogiando a suposta decisão. Isto aconteceu poucos dias antes de o socialista ter finalmente admitido, em Águeda, que iria defrontar Cavaco em 2006.
Nessa noite em que decidiu afrontar Sócrates e o PS encerrou um longo período de equívocos, mal-entendidos e tergiversações. E pagou um preço: desapareceu o círculo de apoiantes da sua candidatura à liderança do PS, esfumaram-se os "alegristas", e Soares, candidato apoiado pelo PS, não lhe perdoou a desfaçatez. Dois históricos do partido, amigos na política e fora dela, cúmplices desde o famoso I Congresso do PS, em 1974, no qual uma feliz intervenção de Alegre deu a vitória a Soares, companheiros de muitas lutas, romperam qualquer ligação em Setembro de 2005.
Alegre preferiu não "contar o resto" quando afirmou que Sócrates lhe pedira para "reflectir" e que durante esse período "apareceu outra solução". Mas em Uma Longa Viagem com Manuel Alegre, publicado este ano, relatou o "resto" da sua versão da história: "A um determinado momento sou avisado por alguém de fora do PS que se estava a preparar o lançamento da candidatura de Mário Soares. Fico muito surpreendido, tenho uma conversa com quem de direito e o que me é dito é que tinha sido o próprio Mário Soares - que em várias entrevistas tinha dito que estava disposto a apoiar-me se eu fosse o candidato do PS - a avançar e dizia que tinha de ser ele o candidato. [...] A história oficial, no entanto, é que ele é convidado. Como era fundador do partido e militante número um, são situações que deixam a direcção do PS embaraçada. Tanto que me é pedido que os ajude a resolver a questão. [...] A minha irritação foi mais com a atitude de Mário Soares do que com a direcção do partido."
Depois de contrair um empréstimo bancário, avançou sozinho para a corrida presidencial, embora algumas socialistas, como Ana Sara Brito e Helena Roseta, não o tenham abandonado. Mobilizaram um impressionante movimento de voluntários e transformaram o poder da cidadania na bandeira maior da campanha. "Pelo menos em segundo fico", assegurava Alegre aos amigos preocupados com os resultados eleitorais. A partir de certa altura, a campanha transformou-se numa espécie de disputa pessoal entre Alegre e Soares. O poeta queria apenas ganhar ao fundador do partido, contou ao P2 um apoiante da candidatura de 2006. Na noite eleitoral, depois de divulgados os resultados, Alegre sublinhou isso mesmo: arrecadara 20,7 por cento, distanciando-se bastante dos 14,3 por cento obtidos por Soares. "Um milhão de votos", repetiu, que devem ser "investidos na renovação da política".
Gosta de palcos, não da rua
No final da campanha, no Porto, a mobilização e o entusiasmo dos primeiros dias perdeu fôlego - no Teatro Rivoli, o staff da candidatura teve de tapar com bandeiras mais de metade da plateia e do balcão, evitando que os repórteres de imagem das televisões captassem as clareiras na assistência. E Alegre manifestava cansaço e impaciência. Nessa noite perdeu a possibilidade de ir à segunda volta, recorda outro apoiante.
Gostava de discursar em palcos, mas faltava-lhe ânimo para as acções de rua, as visitas a escolas e a fábricas. Desagradavam-lhe as rondas pelas feiras e era notória alguma falta de espontaneidade no contacto com as populações. Num dos últimos dias, deixou professoras e crianças de uma escola de Ermesinde mais de uma hora à espera e, quando ali chegou, limitou-se a sair do carro, acenar e voltar a entrar no automóvel. O lanche preparado pelas docentes ficou nas mesas e o esmorecimento nos rostos de quem o esperava.
Alegre tem duas características negativas, notam alguns dos apoiantes da candidatura de 2006 ouvidos pelo P2: é desistente em termos de trabalho; e dificilmente mostra afectividade. Outros apoiantes, contudo, relevam apenas o "homem de honra, de ideais e grande poeta", como nota Teresa Rita Lopes, escritora, professora universitária e mandatária nacional em 2006. Há algumas semanas foi ela quem leu poemas dele num jantar em Paris, que reuniu apoiantes do candidato. "Sem critérios de retrosaria", diz, "acho que ele é o melhor poeta vivo. É um extraordinário trabalhador da palavra, tem todo esse fermento de ideal que faz com que as pessoas se identifiquem."
Uma outra escritora, Inês Pedrosa, porta-voz da candidatura de 2006, já não faz parte da lista de apoiantes deste ano. Em entrevista à LER (Junho de 2010) afirmou que não se arrependeu de ter trabalhado na campanha, mas aquilo que aprendeu foi "decepcionante". "Digamos que os políticos profissionais... Ou seja, fazer da política profissão exige uma série de qualidades com uma elasticidade de comportamentos e de atitudes que não é compatível comigo." Também Ana Sara Brito, directora operacional há cinco anos, socialista e antiga vereadora da Câmara de Lisboa, não está desta vez com Alegre. Ao P2 justificou que "a organização de campanhas partidárias tem uma estrutura que não se coaduna" com a sua "linha", notando que também não cumpriu as orientações do partido quando decidiu militar activamente na candidatura independente de Alegre. Só lamenta que o Bloco de Esquerda (BE), "agora tão envolvido nesta campanha", não tenha apoiado o poeta há cinco anos: "Com o BE poderíamos ter ido a uma segunda volta."
A aproximação do BE a Alegre ocorreu em 2008 e traduziu-se, publicamente, num comício (e mais tarde num colóquio) que juntou, no Teatro Trindade, em Lisboa, bloquistas, renovadores comunistas e alguns socialistas. O escritor criticou então as políticas do Executivo de Sócrates e defendeu a aliança das esquerdas. Foram quebrados "os tabus e os preconceitos de que as esquerdas não podem reunir-se ou que só podem fazer o que lhes ditam os bem-pensantes do politicamente correcto", disse.
Uma nova candidatura à Presidência e um segundo combate com Cavaco Silva estava já na mente do socialista. E dos bloquistas. Desta vez, tentando evitar o que se passara em 2005 e não dando tempo ao PS para apresentar um outro candidato, Alegre anunciou que estava disponível logo em Janeiro de 2010, em Portimão. Francisco Louçã, do BE, apressou-se a apoiar formalmente a candidatura, mas os socialistas optaram por manifestar a sua surpresa por Alegre verbalizar a sua intenção tão cedo. Sócrates fê-lo esperar por um apoio formal do PS até Maio. E Mário Soares, no mesmo mês, consumou a ruptura: por uma "questão de consciência" não votará em Alegre, o candidato apoiado pelo PS e pelo BE.
0 comentários:
Postar um comentário