por Nicolau Ferreira
foto: Reuters/Shana Reis/Governo do Rio
As realidades sociais influenciam o impacto das catástrofes. No Rio de Janeiro, só o ordenamento pode evitar nova tragédia.
Até a cor da água do Brasil é diferente do lago que se formou na Austrália. As torrentes que arrastaram casas, pessoas, árvores e carros das cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, eram lamacentas. A água das cheias na Austrália, não.
"Em Brisbane vê água que se calhar nem tem aquela cor que tem no Brasil", disse ao PÚBLICO Eugénio Sequeira, engenheiro e conselheiro da Liga para a Protecção da Natureza, referindo-se às cheias que afectaram a terceira cidade mais densa da Austrália e que já mataram ao todo 15 pessoas, após observar as duas fotografias abaixo escolhidas pelo PÚBLICO.
As chuvadas que caíram no Brasil mataram pelo menos 470 pessoas e produziram um cenário muito mais desolador. "Se me tivesse telefonado há dez anos a gente falaria a mesma coisa", disse João Sette Whitaker, doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas, da Universidade de São Paulo.
Segundo o arquitecto, o que se passou na região do Rio de Janeiro é fruto do "modelo de urbanização histórica do Brasil" que privilegia os mais favorecidos e "expulsa para a periferia as pessoas mais pobres que acabam por ocupar áreas de risco". Este risco tem aumentado de há 20 anos para cá, devido à explosão urbana que tem cada vez menos espaço de qualidade.
"Este contraste das fotografias é um pouco o que se passa com as fotos do Canadá que têm muita neve", lembrou o arquitecto. "Não é que não haja tragédias, mas têm políticas de combate contra os picos." Ou seja, as construções estão preparadas para os fenómenos excepcionais que têm potencialidade de causar tragédias. "Aqui, os governantes têm a cara de pau de dizer que choveu mais numa madrugada do que num mês."
O director do Grupo de Estudo de Ordenamento de Território e Ambiente (GEOTA), João Joanaz de Melo, defende que estas fotografias podem não ser representativas da realidade, mas são ilustrativas do que se passou e destaca as diferenças mais sintomáticas das tragédias dos dois países. O Brasil tem uma densidade populacional muito maior com uma população pobre muito grande em situações de maior risco, tornando mais propenso este tipo de acontecimentos. "Todos estes factores se conjugam para que uma situação de calamidade aconteça. A solidez das estruturas e os sistemas de resposta é muito maior na Austrália do que no Brasil", explicou, acrescentando que isto tem mais que ver com a organização da sociedade e o serviço público do que com a riqueza per capita. "Se calhar, se estas pessoas tivessem não sei quantos mortos para enterrar, não seria possível ter esta descontracção", disse, comentando uma outra fotografia de Brisbane, em que três homens estão junto à cheia, a beberem cerveja.
No Brasil é o oposto. "Em muitas situações a urbanização está para lá do que é seguro e isto é a ponta do icebergue", diz Melo. "A água vê-se, as pessoas podem fugir dela, mas e quanto ao esgotamento dos recursos, a contaminação das águas e a diminuição da biodiversidade?"
Para Sequeira este cenário tende-se a repetir e explica o caso do Rio. "A água infiltra-se em zonas preferenciais onde não há casas e os terrenos impermeáveis apanham com água a dobrar." A solução será tirar de lá as casas? "Não", responde Whitaker. "É possível mudar com uma política urbana, de drenagem, recuperação da mata, combate à impermeabilização do solo, limpeza das vias."
Segundo o arquitecto o problema está na classe política. "Ainda há muitos políticos que estão lá pelos bens pessoais e não vão olhar para a fotografia da Austrália como exemplo."
A história das cidades atingidas pela tragédia
A cidade de Teresópolis, no topo da serra dos Orgãos, a 90 quilómetros do Rio de Janeiro, é um dos principais pontos turísticos da população carioca e a capital nacional do montanhismo. Os desportos radicais e o turismo ecológico dominam a actividade económica e mantêm a população de cerca de 150 mil pessoas, que cresce significativamente aos fins-de-semana e durante as férias. Também é lá que fica o centro de estágio da selecção brasileira de futebol.Fundada na primeira metade do século XIX, a cidade homenageia a imperatriz Teresa, mulher de D. Pedro II, dois amantes da região serrana Fluminense, notável pelos seus riachos, cascatas, piscinas naturais, uma densa vegetação própria da Floresta Atlântica.
Fora aí que se estabelecera, em 1821, o português de origem inglesa George March, que adquirira uma gleba e a transformara numa fazenda-modelo (de Santo António ou Sant’Ana do Paquequer), dando origem à povoação original, estrategicamente localizada no caminho que ligava a Corte do Rio de Janeiro à província de Minas Gerais.
Essa rota que alimentou o desenvolvimento de Teresópolis, com os comerciantes que viajavam do interior para o porto da Estrela, na baía da Guanabara, a recorrer como ponto de abastecimento e repouso. Com a chegada do caminho-de-ferro, em 1908, o movimento para Teresópolis passou a fazer-se a partir da costa – consagrando a vocação turística do lugar.
A 60 quilómetros de Teresópolis fica Petrópolis, uma das sete cidades imperiais das Américas, cuja história é ainda mais remota. Antigo território dos índios Coroados, os primeiros habitantes conhecidos da serra da Estrela, aquela zona manteve-se da mira dos colonizadores portugueses durante quase 200 anos, ganhando importância depois da abertura do chamado “Caminho Novo” pelos bandeirantes paulistas, até às vilas produtoras de ouro de Minas Gerais (1704).
No início do século XVIII, destacava-se no local a propriedade do Padre Correia, uma fazenda com plantações de café, milho, gado e fruta – muito admirada por D. Pedro I, que a visitava com frequência, acompanhado por largas comitivas. O imperador acabou por comprar a fazenda vizinha do Córrego Seco e várias outras propriedades no mesmo lugar, com a intenção de construir um palácio de Verão.
D. Pedro I voltou para Portugal sem conseguir concretizar o seu plano. Foi o seu filho, D. Pedro II, que dinamizou o projecto, arrendando as terras ao engenheiro alemnão Júlio Frederico Koeler, que em 1845 criou a Companhia de Petrópolis para a construção da “povoação-palácio de Petrópolis”. Centenas de colonos da Alemanha vieram para trabalhar no projecto.
Durante a temporada de Verão, que podia durar até seis meses, D. Pedro II transferia a tutela imperial para Petrópolis. A cidade desenvolveu-se, com a construção de vários palacetes e hotéis. E era em Petrópolis que D. Pedro II se encontrava quando a República foi proclamada e ele foi informado do seu exílio.
De 1894 a 1902, a cidade serviu de capital ao estado do Rio de Janeiro, depois de uma revolta armada contra o governo de Niterói. Depois disso, a cidade foi continuando a afirmar-se pela sua vocação turística, que atraía a alta sociedade brasileira e até internacional e as principais figuras políticas do país – os Presidentes da República mantiveram a tradição de veranear em Petrópolis.
Com a mudança da capital federal para Brasília, iniciou-se um processo de decadência, com Petrópolis a perder muito do seu charme, e descaracterizar-se, pressionada pela explosão demográfica e uma urbanização sem regras que só se acenturaram nas décadas seguintes e a transformaram num subúrbio do Rio de Janeiro.
A cidade de Nova Friburgo, fundada por colonos suíços em 1820, é a que fica mais a Norte, no chamado Centro Fluminense (a 76 quilómetros de Teresópolis e do Rio de Janeiro). Recebeu ondas de imigrantes alemães, italianos, portugueses e sírios. Actualmente, com pouco mais de 180 mil habitantes, é conhecida como a Suíça do Brasil. Foi a agricultura que promoveu o desenvolvimento da cidade e dos municípios vizinhos, mas actualmente, como por toda a zona serrana, é o turismo a principal actividade. No entanto, aquela região foi pioneira em termos industriais e hoje conta também com uma importante indústria têxtil e de vestuário (é a “capital nacional da moda íntima”).
publicado em O Público
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