Como se renova a esperança num governo de esquerda?
por João Rodrigues
O que Ricardo Santos Pinto escreveu a propósito do ensino público – “como o PS preparou a privatização do ensino” – poder-se-ia escrever também a propósito do serviço nacional de saúde, onde os grupos privados vão ganhando músculo, graças a parcerias público-privadas e a outras engenharias políticas, ou das ruinosas privatizações, mais directas, de infra-estruturas e de serviços públicos igualmente importantes, já planeadas antes do culminar da austeridade destruidora de emprego, dos PEC acordados pelo bloco central, o que agora se designa por “ajuda”. Poder-se-ia também falar do enfraquecimento da segurança social pública. Ou da subversão das universidades. A fragilização da provisão pública, o ataque ao prestígio, estatuto e autonomia dos seus profissionais, a canibalização do Estado pelos grupos privados, já a designei assim, são mesmo algumas das principais marcas dos seis anos de Sócrates. Assim também conseguimos explicar as notáveis capturas de antigos dirigentes pelos grupos económicos.
Digo isto com tristeza, até porque sempre defendi todas as convergências possíveis à esquerda, mas, no plano governativo, desde há muito que quem apenas se entrega a gizar apelos a entendimentos entre as esquerdas e o chamado “centro-esquerda” tem de ignorar olimpicamente não só quase todas as políticas públicas concretas deste governo, mas também o desacordo da direcção do PS com todas as alternativas de esquerda disponíveis, acabando assim por transformar o discurso político da convergência numa abstracção rarefeita que não é para este país. Na prática, legitima-se a direcção do PS que mais tem contribuído para a intensa viragem à direita na vida nacional. A possibilidade da radicalização ideológica de Passos Coelho, que agora assusta tantos, é, em grande medida, o resultado do fim da tradição social-democrata na direcção do PS, uma das principais obras de Sócrates.
Dois objectivos, intimamente ligados, dão então sentido à social-democracia, ao “socialismo democrático”: o Estado social e o pleno emprego. Há muito que se desistiu de garantir as condições institucionais para a sua prossecução. Trata-se agora de eliminar direitos laborais e sociais – dos despedimentos mais fáceis e baratos a um subsídio de desemprego mais reduzido e curto, passando pela ameaça à negociação colectiva ou pela erosão do financiamento directo da segurança social, substituído pelo aumento de impostos regressivos – e de ter o topete, como Helena André, de chamar a esta regressão “aumento da protecção laboral”. Que fazer? Começar por reforçar eleitoralmente as esquerdas que nunca desistiram de apresentar alternativas concretas no campo das políticas públicas. É neste campo que a possibilidade de uma sociedade decente se constrói e destrói e é por aqui que a definição das alianças possíveis para um governo de esquerda deve sempre começar.
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A derrota do centro-esquerda europeu pode ser uma oportunidade
por Daniel Oliveira
O padrão em quase toda a Europa tem sido o mesmo: quem está no poder sofre desgaste. Em quase todos os países cresce quem está na oposição e os partidos de fora do centrão, seja à direita ou à esquerda. Mesmo na Alemanha, que tem beneficiado com a actual crise, a CDU tem sido penalizada e os "Verdes" têm capitalizado o descontentamento.
A Espanha não fugiu à regra e o PSOE levou este fim de semana uma varridela geral, perdendo municípios e províncias que sempre foram seus. Enquanto milhares se juntavam nas Portas do Sol, em Madrid, mostrando que não se reveem no atual quadro partidário, a esquerda à esquerda do PSOE e sobretudo o PP subiram à custa do descontentamento com o governo.
Se tudo isto é verdade, basta olhar com atenção para os resultados eleitorais nos vários países para perceber que o centro-esquerda tem sido mais duramente penalizado do que a direita. O que não deixa de ser extraordinário se tivermos em conta que vivemos uma crise que resulta da aplicação da agenda da direita liberal, que desregulou mercados, obrigando os Estados a endividar-se para salvar a economia. Na realidade, a direita conseguiu fugir às suas responsabilidades e, apesar de todas as evidências, convenceu os cidadãos de que a crise que estamos a viver resulta da falência do Estado Social. Só a esquerda pode ser responsabilizada por esta inversão completa de todos os argumentos.
No momento em que a receita liberal provou a sua inadequação à realidade faltou ao centro-esquerda, no poder em vários países, a capacidade de aproveitar a oportunidade. Quando se salvaram os bancos não se aproveitou o momento de fragilidade das instituições financeiras para impor regras severas e mudar de forma radical o funcionamento da economia, travando a loucura do capitalismo de casino. Deixou-se para mais tarde. E mais tarde foi tarde demais. Os abutres voltaram e não foi para agradecer. Foi para aproveitar a crise que eles próprios criaram para se reerguerem à custa dos contribuintes. Socialistas e social-democratas (não me refiro ao embuste português) perderam a sua oportunidade e deixaram que outros escrevessem o guião desta crise.
A esquerda mais radical não está também isenta de culpas. Em vários países, não percebeu que esta era o momento para estar disponível para entrar no barco do poder e pressionar uma social-democracia desorientada. Na ânsia de crescer com o descontentamento, contentaram-se com as migalhas. O bolo ficou para a direita, que aproveitará o momento para dar a machadada final no Estado Providência.
Neste momento, o centro-esquerda está num beco sem saída. Depois de anos a liderar os destinos da Europa sem ser capaz de prever o que aí vinha e cedendo a terceiras vias da moda, depois da oportunidade perdida de 2008, depois de gerir a crise que se seguiu sem firmeza contra os que por ela foram responsáveis, tem poucos argumentos junto dos eleitores. Ser apenas o gestor brando de uma austeridade criminosa não mobiliza ninguém.
Como os manifestantes da Porta do Sol ou a "geração à rasca" portuguesa, a tradicional base social de apoio da esquerda europeia está órfã. São cada vez mais os que não acreditam em nenhum dos partidos e se preparam para engrossar as fileiras dos abstencionistas ou para se render à direita, que ao menos faz com o convicção o que os socialistas fazem sem empenho. Em tempos como estes, as meias-tintas não dizem nada a ninguém.
A travessia no deserto de socialistas e social-democratas europeus pode ser uma oportunidade. Antes de mais, para eles próprios. Têm, nesta crise, e de uma vez por todas, de escolher o lado em que estão. A retórica da defesa do Estado Social enquanto ajudam à sangria dos cofres do Estado para a banca não pega por mais tempo. Mas também para as forças que estão à sua esquerda, que estão obrigadas a perceber que vivemos novos tempos, em que as clivagens do pós-guerra e da guerra fria fazem já pouco sentido. Têm de ser um elemento eficaz de pressão para conseguir reagrupar forças e para obrigar o renitente centro-esquerda a mudar de rumo.
Se uns e outros falharem mais uma vez não serão apenas as conquistas sociais do século XX que estarão em causa. Será a democracia. Os que outrora lhes deram força para garantir cinquenta anos de prosperidade e direitos sociais rumarão para políticos populistas, nacionalistas e inimigos da liberdade. E aí, meus caros amigos, ainda teremos saudades destes tempos que vivemos.
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