Já aqui escrevi o que penso da privatização da Águas de Portugal e ainda esta manhã publiquei, aqui no Conexão, um excelente texto do Daniel Oliveira sobre o tema. Hoje, o presidente da Águas de Portugal (AdP), Pedro Serra, dá uma entrevista ao jornal O Público que convém igualmente ler, mais que não seja para ficar a saber o que tem a dizer ou calar sobre o assunto. Pressionado pelas novas medidas acordadas com a troika para o sector empresarial do Estado e pela intenção, expressa no programa de governo do PSD, de privatizar o grupo, limita-se a afastar, para já, a entrada de privados.
Argumenta evocando as barreiras legais e a complexidade do negócio, mas nem uma palavra sobre as implicações para o país da privatização da rede pública de águas, ou sobre as consequências dessa alienação ao conjunto do património de recursos naturais do Estado português. No que se refere aos custos sociais da proposta, então, o silêncio é absoluto. Nada mal, para um homem a quem está confiada a gestão e distribuição de um bem público, necessário e essencial a todos.
Dir-me-ão alguns: o senhor é gestor. Pede-se-lhe que dirija a empresa e não que se ocupe das questões sociais e do interesse público. Mantenho a indignação e somo-lhe a perplexidade. Não pode ser bom gestor todo aquele que não reflecte sobre tudo o que seja inerente ao serviço que presta. Mais: se já é inconcebível que se administre um qualquer negócio na cegueira absoluta das expectativas e exigências do cliente-consumidor, é ainda mais absurdo que tal postura faça sentido quando em causa está a condução de uma empresa pública.
Quanto aos prejuízos da empresa, diz Pedro Serra que o corte de 15 por cento nos custos não foi cumprido porque o grupo «iria entrar em incumprimento» e garante que não há espaço para fazer mais reduções, como está previsto no memorando de entendimento assinado com a troika.
É uma entrevista que em todo o caso vale ler, clicando no link em baixo para expansão do texto. O tom vago dos argumentos e a expressão pouco assertiva do «neste momento, dificilmente» não exclui a possibilidade de um acordo futuro em torno da privatização da empresa e está, por conseguinte, longe de sossegar alguém. Ficamos pelo menos a saber que, para já e tal como a ministra do Ambiente demissionária, também o presidente da Águas de Portugal considera não ser essa a solução.
O PSD tem apontado o grupo AdP como potencial alvo de uma privatização. Há condições?
Neste momento, dificilmente poderemos encarar uma privatização da AdP, por razões de enquadramento legal, uma vez que a maior parte das operações assenta, à luz do direito comunitário, numa relação em que o Estado pode exercer uma acção fiscalizadora de qualquer acto de gestão das administrações. O próprio modelo de negócio das empresas hoje titulares destes serviços multimunicipais terá de ser alterado, para que depois possa haver uma operação de privatização. É claro que pode haver outras soluções.
Que tipo de soluções?
A entrada de privados no capital do grupo, um pouco à semelhança da REN. Mas são decisões que carecem de um esclarecimento prévio de todas estas questões de direito e do modelo de negócio.
Poderia haver uma colocação em bolsa, por exemplo?
Seguramente. O que convém não perder de vista é que a AdP, além de ser um grande grupo empresarial, 100 por cento público, é um protagonista fundamental nos serviços de água e saneamento de águas residuais e resíduos sólidos urbanos em Portugal.
Foi feita alguma avaliação do valor da empresa?
Há três ou quatro anos e apontava para mil milhões de euros. Mas foram vendidos activos entretanto.
Há alguma estimativa actual?
Não fizemos mais nenhuma. E, como é evidente, qualquer reavaliação terá de ter em conta que estamos num quadro completamente distinto do ponto de vista de valorização de activos.
O memorando assinado com a troika prevê novos cortes nas empresas públicas. Como avalia estas medidas?
Teremos de procurar cumprir todas as obrigações, mas isso tem limites porque prestamos um serviço público essencial que não pode ser descontinuado. É possível suspender uma circulação ferroviária, mas não é possível deixar de prestar o serviço de água ou saneamento a uma autarquia. Há aqui especificidades e foi essa a questão que colocámos às Finanças. Não atingimos a meta dos 15 por cento de corte, porque iríamos entrar em incumprimento de algumas das nossas obrigações legais e contratuais.
O Governo deu luz verde?
Nunca tivemos uma resposta porque entretanto as coisas precipitaram-se. Estamos, neste momento, na expectativa de saber o que se pretende.
Qual foi, afinal, o nível de redução a que chegaram?
Na ordem dos 12 por cento. Atingir a meta significaria um esforço a que, em alguns casos, não era possível dar continuidade. Podemos atrasar algumas actividades, como a manutenção programada, mas se não as realizarmos, depois teremos de fazer reparações com custos mais elevados. Todas as economias que podemos fazer têm limites.
E esses 12 por cento a que valor absoluto correspondem?
Na ordem dos 70 a 80 milhões.
Diz que há limites à capacidade de economizar. A AdP não vai conseguir fazer mais cortes?
Será muito difícil, sem pôr em causa a qualidade e a continuidade do serviço e as nossas obrigações legais e contratuais. Além disso, o grupo tem uma situação financeira sólida, vive das suas receitas, e por isso não vejo qual é o racional de reduzir a qualidade de serviço sem qualquer impacto na redução do défice, porque não somos financiados pelo Orçamento do Estado (OE).
O que explica os lucros recorde alcançados em 2010?
Tivemos mais uma vez um resultado expressivo, que reflecte o bom resultado das empresas, a venda da Águas de Moçambique e uma alteração dos critérios contabilísticos para as normas internacionais. Este ano vamos distribuir 27 milhões de euros em dividendos aos accionistas, que muito agradecem.
Já o endividamento bancário cresceu 342 milhões de euros.
Temos uma estrutura de dívida que fomos corrigindo ao longo dos últimos anos, para passar do curto para o médio e longo prazo. Contratámos com o Banco Europeu de Investimento (BEI) e vamos continuar a contratar. Aliás, vamos receber o BEI esta semana para apresentar mais alguns projectos. Não temos necessidade de rolar dívida, de ir ao mercado para nos financiarmos e pagarmos empréstimos que foram contratados no passado.
Têm sido afectados pela actual conjuntura no acesso aos mercados?
Percebemos que os bancos nacionais estavam a entrar numa situação de perfeito desespero, com consequências para as empresas. Tivemos de recorrer aos bancos estrangeiros para financiar o curto prazo por necessidades de tesouraria que temos, por exemplo, por causa das dívidas das autarquias e dos prazos de reembolso dos financiamentos comunitários.
Da parte do BEI houve alguma alteração das condições de financiamento, como aconteceu com outras empresas?
A questão que o BEI coloca tem a ver com os elevados níveis de alavancagem. A relação entre capitais alheios e próprios e os outros rácios financeiros degradaram-se porque fizemos investimentos importantes. Tanto o BEI como os outros bancos colocam a necessidade de um aumento de capital. Essa é uma questão que já discutimos mais do que uma vez com o accionista.
Em que fase está essa operação?
Ainda não temos uma resposta clara do accionista. Estamos a falar de um aumento de capital na ordem de 300 milhões de euros nos próximos três anos. O nosso activo está avaliado em cerca de sete mil milhões de euros e nós chegámos a capitais sociais de 434,5 milhões de euros. Já fomos muito longe.
Que projectos vão ser apresentados ao BEI?
Há projectos em curso, como o saneamento do grande Porto e parcerias com as autarquias em Aveiro e Alentejo. São empresas com programas de investimento de algumas centenas de milhões de euros e para as quais temos candidaturas a fundos comunitários. Mas temos de assegurar a contrapartida nacional, para a qual vamos recorrer ao BEI.
A AdP não foi obrigada a cumprir limites ao endividamento em 2010. Este ano vão conseguir cumprir?
Quando a questão se colocou, concluímos que era impossível cumprir a meta [de sete por cento] em 2010. Estabeleceu-se um diálogo com a tutela e há um despacho de finais de Agosto que nos dispensa do cumprimento desse limite. Em 2010, o nosso endividamento aumentou 13,3 por cento.
E em 2011 já vão cumprir?
Também colocámos a questão ao Governo e ficou aberta a possibilidade de autorizar que, pelo menos em 2011, incumpríssemos mais uma vez. Essa autorização ainda não veio e, neste momento, estamos completamente determinados a cumprir o limite.
Quais vão ser as consequências?
Vai inviabilizar que alguns projectos avancem.
Está prevista alguma redução do número de trabalhadores?
O grupo emprega 5346 pessoas. A única coisa que fizemos e continuaremos a fazer é negociar algumas saídas, mas nunca será um número expressivo. O que fizemos foi reduzir a massa salarial, de acordo com as instruções constantes do OE.
Terminou o segundo mandato na AdP. Está disponível para continuar? Foi convidado?
Não, nem faria sentido qualquer convite, porque agora o Governo está limitado. Essa é uma questão sobre a qual o próximo governo terá de reflectir. O que disse ao accionista foi que não iria desertar. Outros gestores públicos seguiram outros caminhos, por razões suas, se calhar muito válidas. Eu, como não tenho qualquer razão para abandonar o barco, não vou fazê-lo.
publicado em O Público
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