por José Ribamar Bessa Freire *
Quando o finado Waldick Soriano entrava no centro de lazer ‘Lá Hoje’, em Manaus, cantando o bolero A Carta, as meninas iam ao delírio, especialmente com a frase final: “Espero que um dia / tudo se combine / e a quem ama não seja negado / o direito de ser amado”. Ele dava uma paradinha em “ser” e esgoleava: “aaaaamado”. Esse modelo epistolar do cantor baiano inspirou a forma e o conteúdo da carta abaixo enviada ao deputado Bolsonaro (PP- vixe, vixe!). Ai vai.
Manaus, 15 de maio de 2011
Excelentíssimo Sr. Deputado Jair Messias Bolsonaro
Saudações. Escrevo essa carta, mas não repare os senões, para dizer o que senti na última quinta-feira, quando vi sua imagem na TV, atrás da senadora Marta Suplicy (PT-SP). Ela concedia entrevista sobre o projeto de lei que tipifica como crime a homofobia. V. Ex.ª , muito enxerido, interrompeu-a com um panfleto antigay, promovendo o maior arranca-rabo com a senadora Marinor Brito (PSOL-PA). Sua truculência, deputado, me faz lembrar o Nego Valdir, da Rua das Flores, no Bairro de Aparecida.
Nem seu Anquises nem dona Almerinda entendiam porque Valdir, o filho caçula, odiava tanto os homossexuais. É verdade que, na década de 1950-60, quase todo mundo era preconceituoso, os moleques riam, debochavam, faziam piadinha, mas ninguém era tão fervorosamente e tão visceralmente virulento como o Valdir. Quando ele via um cara mais delicado, um fiu-fiu, sentava logo a porrada, proclamando sua própria macheza aos quatro ventos. Parece que bater em gays o tornava mais macho.
Era um ódio doentio. Um dia, num banho coletivo de igarapé, sem mais nem menos, Valdir quase mata afogado no bosteiro de São Vicente o Heraldinho Bebê, suspeito de ‘correr na floresta’, segundo as más línguas. O que é que Valdir perdia ou deixava de ganhar com a existência de mariquinhas? Nada. Em que o fato de alguém desmunhecar prejudicava a vida dele? Em nada. Então, por que tanta violência? Mistério. O certo é que o Nego Valdir, durante algum tempo, foi uma espécie de Bolsonaro amazonense, aterrorizando qualquer um que fosse suspeito de ‘carregar bandeja’.
Deputado Bolsonaro, V. Ex.ª, em entrevista no ano passado, deu a receita para acabar com as bichas, preconizando surras: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho leva um coro, ele muda o comportamento dele. Tem muita gente que diz: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. V. Ex.ª acha que o homossexualismo é uma doença que se cura com porrada. Não sei se V. Ex.ª apanhou muito, se está falando por experiência própria. Mas esse era também o pensamento do Valdir, sua alma gêmea. Macho pacas!
A raiva descabida do Nego Valdir contra os homossexuais, como a sua, deputado, também foi transferida, muitas vezes, para as mulheres. V. Ex.ª já agrediu várias delas em público. O seu discurso, contraditoriamente, exalta sempre a própria masculinidade. Na briga com a senadora paraense Marinor, V. Ex.ª declarou aos berros:
- Já que está dificil ter macho por aí, eu estou me apresentando como macho. Ela (Marinor) deu azar duas vezes: uma, que sou casado, e outra, que ela não me interessa. É muito ruim. Não me interessa.
Pois é, com idêntica fúria proclamando macheza, o Nego Valdir também dizia que mulheres não o interessavam. Com unhas afiadas como navalha, Valdir arranhou um dia as costas de uma das paraibanas, filha do seu Walter Cordeiro, e ainda ameaçou dar porrada na minha irmã Tequinha, quando ela protestou. Taí a Tequinha que não me deixa mentir.
V. Ex.ª insinuou razões estéticas para justificar a falta de interesse na senadora Marinor. Será? E a atual ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT-RS), inteligente e sensível, de beleza unanimemente estonteante? Em vez de lhe dar merecidos carinhos, V. Ex.ª discutiu com ela, em novembro de 2003, diante das câmaras de televisão, chamou-a de “vagabunda”, empurrou-a e ameaçou esbofeteá-la. Macho pacas! Como o Valdir, sua alma gêmea.
V. Ex.ª não sabe lidar com o sexo feminino, da mesma forma que não sabe conviver com homossexuais. Por isso, tantas bravatas, gritos e ameaças. Pai de quatro filhos homens, se tivesse tido pelo menos uma única filha ou um filho declaradamente gay, poderia, talvez, ser educado por eles, que certamente estariam cantarolando em casa a música do Pepeu Gomes: “Olhei tudo que aprendi / e um belo dia eu vi / Uh! Uh! Uh! / que ser um homem feminino / não fere o meu lado masculino / Se Deus é menina e menino / Sou masculino e feminino”.
Quando não tem um gay ou uma mulher por perto, o objeto de sua agressão pode ser qualquer um, desde que seja frágil. Serve negro, como Preta Gil, ou índia como Joênia Wapaixana. Num pronunciamento em audiência na Câmara dos Deputados sobre a demarcação da terra indígena Raposa/Serra do Sol, V. Ex.ª declarou que os índios eram todos “fedorentos e não educados, não falantes de nossa língua” e, por isso, não tinham direito à terra. “O índio devia comer capim para voltar às suas origens”.
Na ocasião, V. Ex.ª interrompeu o debate, adiando a decisão sobre uma questão vital para o Brasil. A advogada Joênia Wapichana respondeu à agressão descabida, dizendo: “Temos cheiro de terra, porque da terra é que vivemos”. O sateré-mawé Jecinaldo Barbosa perdeu a paciência e fez o que quase todo o Brasil gostaria de fazer: jogou um copo de água na cara de V. Ex.ª.
V. Ex.ª não gosta de gays, de mulheres, de indios, nem do debate. Faz um discurso que seria apenas burro, ‘folclórico’ e ‘troglodita’ se não incitasse à violência e ao crime. O antropólogo da UFBA, Luiz Mott, registrou 205 assassinatos de gays no Brasil de janeiro a novembro de 2010. De onde vem tanto ódio e tanta intolerância com a diversidade e a diferença? O seu, eu não sei. Mas o seu Anquises e dona Almerida descobriram que o do Valdir, sua alma gêmea, era pura inveja. Olhe só o que aconteceu, deputado.
Aos 15 anos, Valdir, o terror dos gays de Aparecida, resolveu escancarar, assumindo corajosamente a sua homossexualidade e aí sim, foi macho pacas. Saiu do armário. Adotou o nome de Katya Cylene, assim com dois ipisilones. Pintou as unhas com cores berrantes, vestiu roupas com toques femininos, calçou sapato alto e se tornou uma pessoa adorável, tolerante e alegre. Deixou de agredir mulheres e gays.
Todas as tardes, Valdyr Katya Sylene, com tres ipisilones, comparecia à banca de tacacá da dona Alvina, levando de casa sua própria cuia personalizada, uma peça artística de Santarém, feita pelas índias de Monte Alegre, toda bordada, onde aparecia a imagem de uma iara poderosa saindo das águas de um lago amazônico, com a cara da Charufe Nasser, a sultana dos seringais.
Um dia, senhor deputado, em 2006, caminhando pelas ruas de Quito, Equador, para onde fui participar de um evento, vi uma pichação com letras garrafais num muro próximo à Praça de Armas, que me enterneceu: “Hetero de costumbre, gay de corazón”. É isso aí, deputado, Vossa Excelência não corre qualquer “perigo”, pode ser gay apenas de coração, se humanizando, e convivendo com quem é diferente. Mas se quiser seguir o exemplo de sua alma gêmea, nós, que somos gay de coração, damos o maior apoio a V. Ex.ª, não deixaremos ninguém espancá-lo.
Deputado, seja mais Messias e menos Bolsonaro. Vá tomar tacacá, deputado. Se precisar, Manaus te oferece uma cuia bordada com florzinhas e toda sua solidariedade
Amos. Atos. Obros.
* professor, coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), investigador no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
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