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Maria José Nogueira Pinto [1952 - 2011]

Posted: 6 de jul. de 2011 | Publicada por por AMC | Etiquetas:

foto: Pedro Cunha

Maria José Nogueira Pinto morreu nesta quarta-feira, de cancro no pâncreas, aos 59 anos. Era deputada à Assembleia da República eleita como quinta candidata na lista pelo círculo de Lisboa do PSD. Embora já gravemente debilitada pela doença, participou ainda na sessão parlamentar que elegeu a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, a 21 de Junho.
O corpo está em câmara ardente na capela de sua casa, ao cimo do Jardim do Campo Grande, no Lumiar, em Lisboa. Esta quarta-feira, às 22h, realiza-se uma missa de corpo presente. O cortejo fúnebre parte esta quinta-feira à tarde de Lisboa para a aldeia À-dos-Negros, em Óbidos, onde o funeral se realiza no cemitério local, às 18h.



Nascida em Lisboa, a 23 de Março de 1952, Maria José Pinto da Cunha de Avillez Nogueira Pinto, era filha de Luís Maria de Avilez de Almeida de Melo e Castro e de Maria José de Melo Breyner Pinto da Cunha e irmã da jornalista Maria João Avillez e da especialista em moda e imagem Maria Assunção Avillez. Era casada, desde 1972, com o jurista Jaime Nogueira Pinto, que conheceu na Faculdade de Direito, e mãe de três filhos, um rapaz e duas raparigas.

Jurista de formação, Maria José Nogueira Pinto destacou-se na vida política como figura de Estado e dirigente partidária. Entrou para a política pela mão de Cavaco Silva, de quem foi uma entusiasta apoiante até ao fim, tendo integrado a comissão de honra da sua recandidatura a Presidente da República, na campanha eleitoral do final do ano passado, altura em que já sabia estar doente.

Entrada na política pela mão de Cavaco 

Foi em 1991 que Maria José Nogueira Pinto entra na política activa e logo pela porta da governação, como subsecretária de Estado da Cultura. Acaba por demitir-se em 1993, em ruptura com Pedro Santana Lopes, então secretário de Estado e por causa do conhecido “Caso da Pala do Sporting”, em que se sente desautorizada.

Isto porque, depois de ela ter interditado o Estádio de Alvalade para servir de palco a concertos musicais, por insegurança da estrutura, nomeadamente da “pala” de uma bancada, Santana entra em acordo com o Clube. O Sporting compromete-se a fazer obra e os espectáculos são autorizados.
Logo então se percebe que Maria José Nogueira Pinto não teme a ruptura política, preza a sua autonomia e não se submete a directivas partidárias com que não concorda. Regressa à vida civil como Consultora da Fundação Gulbenkian (1993-95) e transitando depois para presidente da Fundação para a Saúde. O regresso a uma área de actuação que conhecera entre 1988 e 1991, ao presidir à administração da Maternidade Alfredo da Costa.

Em destaque no Parlamento

Passados três anos, nas legislativas de Outubro de 1995, é eleita deputada independente por Lisboa nas listas do CDS, então já liderado por Manuel Monteiro. Faz parte de um grupo de personalidades que inovam e refundam o partido.

É neste mandato parlamentar, que cumpre até 1999, que se distingue na vida parlamentar e política, sobretudo nos dois últimos anos, em que lidera a bancada do CDS. O seu estilo culto e contundente, a sua agilidade política e a forma educada mas desassombrada como dirigia o grupo parlamentar e se relacionava com os outros partidos, marcaram então os trabalhos parlamentares. Destacou-se então o protagonismo com que desempenhava o cargo e as relações que desenvolvia com todos, desde o presidente da Assembleia, António de Almeida Santos, ao líder parlamentar do PCP, Octávio Teixeira.

Polémica sobre o aborto

Foi nesse mandato parlamentar que se jogou o seu maior protagonismo político. E aconteceu em torno das discussões sobre a despenalização do aborto e nomeadamente no contexto da campanha do primeiro referendo, realizado em 1998. Foi Maria José Nogueira Pinto a primeira subscritora de um projecto lei que acabou por chumbar, mas que condicionou todo o debate posterior: o projecto de lei que propunha o reconhecimento pelo Estado da Entidade Jurídica do Embrião.
A questão não era tanto a de saber se um feto podia tirar bilhete de identidade, como foi ironizado à época, mas a de lançar o debate sobre quando começa a vida humana. Ou seja, dar argumentos morais e culturais aos defensores do “não” à despenalização. Por isso, Maria José Nogueira Pinto foi vista então como uma das grandes vencedoras da vitória do “não” no referendo.

Disputa com Paulo Portas

Mas se o sucesso parlamentar foi marcante, o mesmo não aconteceu no CDS, a que aderiu em 1996. Quando Manuel Monteiro sai, em 1998, Maria José Nogueira Pinto disputa a liderança com Paulo Portas, num congresso em que começou por garantir que até ganhava “ao Rato Mickey” e que acabou por perder, depois de acesos debates e rupturas, como a que teve com Lobo Xavier, a quem disse do palco do Congresso a famosa e ainda hoje enigmática frase: “Você sabe que eu sei que você sabe que eu sei…”

A eleição de Paulo Portas como líder leva ao seu afastamento do CDS. Com novo Governo de maioria do PSD e do CDS, liderado por Durão Barroso, Maria José Nogueira Pinto volta aos cargos públicos na área social, em 2002, indo dirigir a Misericórdia de Lisboa, de que fora adjunta da Mesa e Provedora interina entre 1986-88. Um mandato que faz, também aqui de forma destacada, criando projectos inovadores no acompanhamento de idosos e no acolhimento de crianças.

Ruptura com o CDS e aproximação ao PSD

O seu rompimento definitivo com o CDS virá mais tarde. Em 2005 aceita deixar a Misericórdia para se candidatar pelo CDS à Câmara de Lisboa. É eleita vereadora ficando responsável pela Habitação Social.

Mas mais uma vez a sua relação com Paulo Portas atravessou-se na sua relação com o CDS. O regresso de Portas à liderança do CDS leva à ruptura. O clima de agressividade que a ruptura atingiu, leva-a mesmo a acusar o deputado do CDS, Hélder Amaral, de a ter agredido fisicamente. Depois diria que provavelmente entendeu mal o gesto que olhou como agressão como um simples agarrar de braço que então a magoou.
A ruptura com o CDS aproxima-a de novo do PSD. Em 2009, é convidada pela então líder, Manuela Ferreira Leite, para se candidatar pelo PSD em Lisboa. Maria José Nogueira Pinto volta ao Parlamento e logo de início volta a marcar com o seu estilo assertivo e contundente, de quem não teme afrontar adversários. Num famoso debate na Comissão de Saúde vira-se para o deputado do PS, Ricardo Gonçalves, acusando-o de “palhaço” e de “deputado inimputável”.

Reeleita pelo PSD no passado dia 5 de Junho, cumpriu, enquanto conseguiu o seu mandato.

Funeral realiza-se amanhã em Óbidos 

O funeral de Maria José Nogueira Pinto realiza-se amanhã, ao final da tarde, pelas 18h, na aldeia de À-dos-Negros, em Óbidos. O corpo da deputada esteve nas últimas horas em câmara ardente na capela da casa da família, no Campo Grande, e segue na tarde de amanhã para Óbidos.

publicado em O Público


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[REACÇÕES]

As reacções de consternação atravessam todos os quadrantes políticos. Adversários partidários e colegas de partido prestam homenagem a Maria José Nogueira Pinto.

Cavaco Silva, Presidente da República: “Tinha como valores de vida o amor por Portugal e a crença profunda no papel insubstituível da Família como célula essencial de uma sociedade justa. Em nome de um Portugal mais justo, trabalhou incansavelmente, com a vontade férrea que nela sempre admirámos. A sua acção e o seu dinamismo marcaram profundamente instituições como a Maternidade Alfredo da Costa ou a Misericórdia de Lisboa.”

Paulo Portas, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, líder do CDS-PP: “É uma mulher com invulgar inteligência e competência profissional, com causas, com cultura e com mundo, completando esse perfil com uma sensibilidade social que marcou uma parte significativa da sua intervenção pública. (…) A memória que tenho sobre a forma como encarou a doença é a de uma pessoa com uma fé serena e completa, que procurou cumprir e cumpriu todos os seus deveres e todas as suas obrigações, fosse como candidata ou como deputada, fosse como comentadora ou como articulista, até ao último fôlego, sem deixar que o sofrimento a diminuísse.”

Bernardino Soares, líder parlamentar do PCP: “Uma deputada que ao longo de muitos anos defendeu posições contrárias às do PCP mas que sempre permitiram um debate político e ideológico bem fundamentado. Os debates com Maria José Nogueira Pinto não eram sobre a espuma dos dias, mas sobre ideias políticas e ideológicas profundas e fundamentadas, embora opostas àquelas que sempre defendemos. Neste momento é justo assinalar o desaparecimento de uma deputada que prestigiou o debate parlamentar e defendeu na Assembleia da República as suas posições.”

Rui Cunha, Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: “Foi uma protagonista do incessante trabalho daquele que buscam um mundo melhor. Neste momento, as palavras nunca chegam para conseguirmos expressar devidamente o sentimento de perda. Assim, resta-me expressar em meu nome e em nome da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa os meus respeitosos sentimentos à família.”

Luís Montenegro, líder parlamentar do PSD: "Uma mulher de uma profunda inteligência, de uma dedicação e uma capacidade de trabalho absolutamente invulgares. Naturalmente que o grupo parlamentar do PSD sente muito este momento e sente a falta desta brilhante deputada."

João Almeida, porta-voz do CDS-PP: “Deixa um testemunho de serviço público extraordinário em muitas áreas, não só na política, ao nível social, ao nível cultural, pondo sempre em cada uma dessas causas um espírito de combatividade que fazia com que cada uma delas fosse para a doutora Maria José Nogueira Pinto a batalha mais importante, nunca era a última, era a mais importante”

Maria de Belém, deputada do PS: “Estamos perante o desaparecimento precoce de alguém que nos é próximo, o que é sempre extremamente doloroso. Do ponto de vista das intervenções cívica e política que a doutora Maria José Nogueira Pinto tinha, trata-se de uma perda para o país”. Era “uma mulher independente, com pensamento próprio, com capacidade para fazer as suas próprias escolhas e opções, independentemente do seu quadrante ideológico”. “Foi, aliás, a primeira líder parlamentar mulher [pelo CDS] no quadro da Assembleia da República e sempre se afirmou muito através de uma postura muito própria e de uma maneira de ser muito assumida". Portugal precisa “de gente sem medo e Maria José Nogueira Pinto era uma mulher sem medo”

José Ribeiro e Castro, deputado do CDS-PP: “A morte da Maria José Nogueira Pinto é uma grande perda para Portugal, para o nosso tempo. É também, no meu caso pessoal, a perda de uma amiga”. “Foi uma mulher de intensa intervenção pública, de grande sentido cívico, e que marcou muito os últimos anos da vida portuguesa, em diferentes áreas onde interveio.Foi um exemplo e uma inspiração ver como já afectada pela doença manteve um combate político como candidata e fazendo-se reeleger deputada. Mostrou nestes últimos meses, nesta última etapa difícil da sua vida, a coragem que foi talvez um dos traços mais característicos da sua presença na vida portuguesa, assim como uma enorme verticalidade”. “Era uma mulher muito clara na afirmação das suas convicções, mas decerto colherá unanimidade de todos nós nesta casa a forma extremamente digna como viveu”

João Semedo, deputado do BE: “São conhecidas e reconhecidas as grandes diferenças políticas e ideológicas” que separavam o BE de Maria José Nogueira Pinto, mas que essas diferenças não “impedem de reconhecer as suas qualidades como deputada, uma mulher determinada, convicta, inteligente, trabalhadora, empenhada na valorização do Parlamento”.
 
(...)

Cavaco e ministro da Segurança Social entre as personalidades na missa a Nogueira Pinto 

O Presidente da República, Cavaco Silva, e o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, foram duas das personalidades que esta quarta-feira compareceram, em Lisboa, à missa de corpo presente da deputada Maria José Nogueira Pinto.
O corpo de Maria José Nogueira Pinto, que morreu esta quarta-feira aos 59 anos, vítima de cancro, está em câmara ardente na sua residência, no Campo Grande, em Lisboa.
O chefe de Estado e a mulher, Maria Cavaco Silva, entraram de carro na residência, sem prestar declarações, minutos antes das 22h00 horas, altura do início previsto da missa.
Pouco depois, o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, lembrava, aos jornalistas, a “mulher multifacetada, de profundas convicções, de uma entrega às causas sociais”.
A ex-primeira-dama Maria Barroso recordou, “com emoção”, a “cidadã responsável”, por quem tinha “muita consideração”.
Pelo portão do número 398 do Campo Grande passaram também o presidente do Tribunal de Contas, Guilherme de Oliveira Martins, os líderes parlamentares do PSD, Luís Montenegro, do PS, Maria de Belém, e do PCP, Bernardino Soares, bem como os ex-ministros Luís Amado (Negócios Estrangeiros) e Isabel Alçada (Educação), do governo de Sócrates.
Também compareceram Celeste Cardona, antiga ministra da Justiça do governo PSD/CDS-PP de Durão Barroso, o deputado do PSD Miguel Frasquilho, o banqueiro Jardim Gonçalves, o ex-bastonário da Ordem dos Advogados José Miguel Júdice e os ex-ministros Miguel Beleza e Teresa Patrício Gouveia, dos governos de Cavaco Silva,.
Maria José Nogueira Pinto foi deputada entre 1995 e 1999, eleita pelo CDS-PP, e depois entre 2009 até à data, mas pelo PSD. Na actual legislatura esteve presente nas duas primeiras sessões plenárias, referentes à eleição da presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, não tendo já comparecido à discussão do programa do Governo, na quinta e na sexta-feira da semana passada.
Jurista de formação, foi ainda subsecretária de Estado da Cultura do XII Governo Constitucional, dirigido por Cavaco Silva, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, membro da direcção da Maternidade Alfredo da Costa e vereadora da autarquia da capital pelas listas do CDS-PP.
O funeral realiza-se na quinta-feira no cemitério das Caldas da Rainha.

Missa de corpo presente e funeral em Óbidos

O primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, são duas das muitas personalidades que hoje à tarde compareceram na missa de corpo presente da deputada Maria José Nogueira Pinto.
O corpo de Maria José Nogueira Pinto, que morreu ontem aos 59 anos, vítima de cancro no pâncreas, está em câmara ardente na capela da sua residência, no Campo Grande, em Lisboa. O funeral será esta tarde, no cemitério de A-dos-Negros, em Óbidos.
Pelo portão do número 398 do Campo Grande, fechado para os jornalistas, entraram Pedro Passos Coelho, e a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves.
Passos Coelho, enalteceu o “grande carácter” e sentido de “missão pública” de Maria José Nogueira Pinto, sublinhando que a sua morte é sentida por todo o país, independentemente da orientação política de cada um.
“Vim prestar um tributo a uma pessoa que admirava muito, que foi ao longo de toda a sua vida uma mulher de grande carácter, uma pessoa com um grande sentido de serviço público, de missão pública mesmo”, afirmou Pedro Passos Coelho.
Passos Coelho lembrou que Nogueira Pinto fez questão de manter “sempre” as suas obrigações, inclusive as políticas, que, sublinhou o primeiro-ministro, a deputada desempenhou de “forma exemplar mesmo quando as circunstâncias físicas tornavam muito difícil” o desempenho dessas funções.
“Foi uma mulher muito combativa toda a sua vida, que deu o melhor de si própria a servir Portugal e isso o país com certeza não esquecerá”, afirmou Passos Coelho.
“Venho representar a dor do Parlamento português pela morte da drª. Maria José Nogueira Pinto, que teve um percurso cívico e político que nos merece o maior respeito”, afirmou Assunção Esteves, que chegou acompanhada de Maria de Belém, líder parlamentar interina da bancada do PS.
Presentes na cerimónia estão também Manuela Ferreira Leite, Marcelo Rebelo de Sousa, Ribeiro e Castro, Guilherme D´Oliveira Martins, Leonor Beleza, Guilherme Silva, Miguel Macedo, Vitalino Canas, António Costa e Marques Mendes, entre outros.
Marques Mendes referiu “uma pessoa muito inteligente e muito independente. Era uma pessoa que tinha prazer em fazer serviço público. Era uma pessoa de uma grande coragem, como se viu nestes últimos meses”, disse aos jornalistas o antigo líder dos sociais-democratas.
Ferro Rodrigues, antigo secretário-geral do PS e actual deputado do partido, revelou que Maria José Nogueira Pinto era uma pessoa que muito “admirava” e uma “adversária política” que muito respeitava. Já Bagão Félix, economista e antigo ministro das Finanças, enalteceu o “inconformismo” de Nogueira Pinto, que considerou “um exemplo” para o país. “Uma pessoa que tinha uma noção superior de bem comum”, afirmou.
Antes da missa, que começou às 14h00, passaram pela residência de Maria José Nogueira Pinto o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, a ministra da Agricultura, Assunção Cristas, o antigo líder do CDS Manuel Monteiro, o ex-presidente do PSD e antigo primeiro-ministro Pedro Santana Lopes e o candidato à liderança do PS António José Seguro.
Ontem à noite, o Presidente da República Cavaco Silva e Pedro Mota Soares, ministro da Solidariedade e da Segurança Social, compareceram à missa de corpo presente da deputada Maria José Nogueira Pinto realizada às 22h. Pedro Mota Soares, lembrou a “mulher multifacetada, de profundas convicções, de uma entrega às causas sociais”.
Também a ex-primeira-dama Maria Barroso recordou, “com emoção”, a “cidadã responsável”, por quem tinha “muita consideração”.

publicado em O Público


[ENTREVISTA]

As vidas de altíssimo risco dos Nogueira Pinto

São "os Nogueira Pinto". Um projecto ideológico, uma história de amor, uma forma de existir. São "uma sociedade em comandita" que nunca anulou nenhum dos seus elementos. Casaram-se em 1972, têm três filhos. São orgulhosamente de direita. Viveram uma vida cuja probabilidade de lhes acontecer era de 0,1%. Um 0,1% riquíssimo. 

O ponto de partida para a entrevista poderia ser a edição recente do livro de Jaime Nogueira Pinto Nobre Povo - Os Anos da República. Mas esta não era uma entrevista ao revolucionário nacionalista e as primeiras conversas para que ela acontecesse antecedem as comemorações do centenário da República, bem como a edição do livro.
O ponto de partida foi a vida que os Nogueira Pinto, Jaime e Maria José, escolheram ter e o modo como a viveram. Conheceram-se porque ela furou a greve na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Estiveram juntos em África a lutar por um império que desmoronava. Partilharam uma fila para a sopa num campo de refugiados.
Viveram um exílio de quatro anos entre Joanesburgo, Madrid, Brasil. No regresso a Portugal, ela fez política e dirigiu instituições como a Santa Casa da Misericórdia. Ele esteve em jogos de bastidores e deu aulas na universidade.
Jaime nasceu em 1946, Maria José em 1952.
Sentaram-se num canapé na casa apalaçada, um ao lado do outro. Falaram duas horas sobre uma aventura que não foi vivida por Corto Maltese - herói dele - mas por eles.



***

Em que é que são radicalmente diferentes um do outro?
Maria José - Em quase tudo.
Jaime - O género e tudo o que é determinado pelo género, que é significativo. Não diria que é quase tudo. Diz lá em que é que somos diferentes.
Maria José - Organização. Eu sou maçadora e tu és menos maçador.
Jaime - Não sou preocupado com a organização. Porque alguém me organiza. As mulheres são mais práticas do que os homens. Mais realistas, menos românticas. Muito menos românticas. A ideia das mulheres românticas é uma invenção dos autores românticos do século XIX.
Maria José - O Jaime faz troça: a mim, se os livros são tristes, cansam-me.
Jaime - Trouxe-lhe o Stefan Zweig. Um autor do meu tempo.

Um autor romântico.
Jaime - Mas eu sou romântico. O meu livro de cabeceira - não foi o que li mais vezes; o que li mais vezes foi As Minas de Salomão - é o [The Great] Gatsby. O Jay Gatsby diz que é possível reviver o passado. Isso é o cúmulo do romantismo.
Maria José - E és um bárbaro. Conceito interessante.

Que quer dizer?
Jaime - Que não tenho muitas regras. Ligo mais à legitimidade do que à legalidade. Quando a legalidade vai contra o que eu acho que é legítimo, se puder transgrido. Se não puder, também. Sendo politicamente conservador em muita coisa, não sou nada ordeiro. Sou bastante subversivo em relação a muita coisa.
Maria José - Quando tu chegaste, toda a minha vida se transformou.

Começo por aqui porque a opinião pública tem a ideia de que são dois corpos numa só cabeça.
Como se formassem uma unidade.

Maria José - Somos uma unidade no que nos propusemos ser e fazer na nossa vida. Mesmo antes dos filhos. Uma coisa é ser uma espécie de sociedade em comandita, outra é ser uma unidade diluente. Uma das coisas positivas da nossa vida foi que ninguém anulou ninguém. Mas somos parte de um todo, e isso é forte, determinante.

Quando o Jaime chegou à sua vida, deixou de ser uma Avillez para passar a ser uma Nogueira Pinto? Que queria isso dizer? É a única das três irmãs que adoptou o nome do marido.
Maria José - Tudo mudou. E de certa forma, tudo começou. Embora tenha tido uma infância e adolescência que foram um privilégio, na realidade tudo começou a partir desse dia. A minha vida foi Nogueira Pinto. O meu pai, coitadinho, de vez em quando, dizia: "Mas onde está o Avillez?" "Pai, tenho a maior honra em ser Avillez, mas quando penso em mim, penso em Maria José Nogueira Pinto." Ser uma Nogueira Pinto é fazer parte activa desta unidade. Desta ilha. Quando me conheceu, ele achava que podíamos viver como o Fitzgerald e a Zelda, a passear no jardim do Campo Grande. Um dia, aqui nesta entrada, expliquei-lhe que não. Ou era uma coisa a sério ou não era.
Jaime - Uma vez telefonou-me a perguntar se eu não achava que já era altura de ir falar ao meu pai...
Maria José - O tal modelo romântico não ia conduzir a nada. A outra hipótese era uma aventura de altíssimo risco. Eu era particularmente nova. Casei com 19.
Jaime - Conhecemo-nos no dia 12 de Março de 1970. Casámos em Janeiro de 72.

Percebeu logo que era uma aventura de altíssimo risco?
Maria José - O Jaime tinha estas características e percebi que não ia abdicar delas. Que era eu que ia embarcar. Eu tinha uma grande sedução por embarcar nisso. Não embarquei por sentido de dever. Casei porque quis. A nossa vida foi assim. Abriram-se horizontes mais extraordinários do que alguma vez pensámos que íamos viver.
A grande diferença foi a possibilidade de estar perante um abismo? Um abismo permanente.

Era isso também que a seduzia?
Maria José - Não havia certezas de nada. Não fazia planos para a minha vida. Nem profissional. O meu pai sempre achou que eu ia acabar na Junta Reguladora do Comércio do Bacalhau, porque andava sempre a saltar de um lado para o outro. Quando a Junta foi extinta, mandei-lhe uma fotocópia a dizer: "Aqui já não acabo." Portanto, não me afligiu nada um modelo de vida incerto. Mesmo depois de as crianças nascerem.

Queria ser o herói romântico que lia nos livros? Ou o herói político?
Jaime - Os meus heróis foram sempre os mesmos. Para começar, o Corto Maltese. Isso não se compadecia com a família, os filhos, tudo isso.
Não tinha ideia nenhuma de ter filhos. Gosto imenso dos meus filhos depois de eles terem nascido.
Maria José - Foi um convite a solo. Não me convidou para fazer a família dele. Convidou-me para uma longa viagem. Mas os filhos foram para ele uma revelação, e agora os netos. Estão [as fotografias] no telemóvel - não disfarces! Eu não tenho um neto no telemóvel.
Jaime - Por causa do livro da República [Nobre Povo Os Anos da República], tenho estado a ler as memórias do Raul Brandão, um documento admirável. Diz: "Encontrei o Mariano de Carvalho. Só fala nos netos. Mau sinal." Mas claro que gosto dos meus netos. Gosto da minha família por ser a minha família e gosto deles individualmente.

Não sonhava com uma família porque não queria ficar vulnerável e porque isso podia impedir a prossecução do seu sonho?
Jaime - Não ia tão longe. A minha geração era obcecada com as coisas da política. A defesa do império, a revolução. Os nossos personagens, os nossos heróis, eram gente assim. Havia um lado de niilismo muito forte, que eu disciplinei ou domestiquei - mais disciplinei do que domestiquei. Passo a vida a impor-me uma disciplina que me contrarie. Tinha a intuição de que uma família não era compatível. Mas hoje não diria isso. Porque acabou por ser compatível. Foi uma sorte. Foi um gift, um dom.
Maria José - A questão da vulnerabilidade é importante. Há aquela frase do Kennedy: "Ter filhos é dar reféns ao destino."

Quando foram para Angola, em 74, o vosso filho mais velho já tinha nascido.
Maria José - Já. Tinha já acontecido o 25 de Abril, existia a perspectiva da descolonização, não teria sido possível a nossa fuga de Angola com uma criança daquela idade. O miúdo estava aqui [em Portugal, nós estávamos em África]. Tive de vir cá buscá-lo, mais tarde, e levei-o para a África do Sul. Clandestinos. Papéis, confusões.
Não teve dúvida nenhuma de que queria ir para Angola para viver o seu sonho?
Jaime - Nem foi isso. Tendo sido eu toda a vida um grande defensor do Ultramar, seria absurdo não ir.
Pareceria uma graça de um político do Antigo Regime: "Armemo-nos e ide!" Que é, aliás, um costume muito português, das elites portuguesas. Quanto mais não fosse para não passar pela vergonha do "armemo-nos e ide", tinha de ser minimamente coerente e ir. Como tinham ido milhares de pessoas que nem pensavam sobre aquilo o que eu pensava. Era o mínimo dos mínimos éticos.

Era ir para lutar pelo que restava?
Jaime - Quando me ofereci, ainda não tinha havido o 25 de Abril. Ofereci-me, nunca mais me mobilizavam, então troquei com um colega de curso, que já estava mobilizado. Ele ficou tão contente, apressou os papéis, tudo. Quinze dias antes do 25 de Abril. Agradeço-lhe imenso. Se não fosse isso, não teria ido para a guerra e a minha vida teria sido completamente diferente. Gosto muito da vida que acabei por ter. Comecei logo a preparar uma revolução, organizar o FRA, fazer 500 mil coisas. O lado romântico: o voluntarismo. A gente acha que vai conseguir, que vai fazer. E vai fazendo sempre.

Quando vai, acha que vai conseguir?
Jaime - Acho. E se não conseguir, pelo menos fiz um esforço. Havia um livro de que gostava imenso sobre a cultura dos samurais, sobre a nobility of failure. Tínhamos também o culto das causas perdidas. Aquela máxima do Cyrano: Et c'est encore plus beau lorsque c'est inutile... Penso que na esquerda também havia estas coisas.
Esta gente, agora, business oriented deve achar que éramos completamente idiotas, tontos. Mas éramos assim.

Antes de ir, o império era para si uma abstracção. É interessante que se faça ao terreno.
Jaime - Para ver como era. E como éramos novos, muito abstractos, hegelianos (acreditáva-mos nas ideias puras), o império era para defender.
Tanto fazia que fosse um bocado de areia como um pântano sujo. Era território. Era a mística. Éramos idealistas.
É evidente que hoje gosto muito mais das coisas e das pessoas do que gostava nesse tempo. Mas isso é a sorte da vida.

Fale-me disso.
Jaime - Nunca pensei voltar a Angola, ao império, se já não fosse nosso. Que é que lá ia fazer? Hoje adoro ir a Angola, gosto das pessoas, divirtome.
Gosto de Moçambique; tenho com mais dois sócios uma coisa [empresa de segurança], com cinco mil pessoas a trabalhar.
Maria José - Acompanhar essa transição da queda do império, com eles do outro lado, gerou laços.
Vivemos as mesmas coisas de lados diferentes da barricada.
Jaime - Com o fim da Guerra Fria, também se criou o charme do ex-inimigo. Cultiva-se e é agradável. Não estou a ser cínico. As pessoas que passaram sob bandeiras diferentes pelas mesmas experiências, e quando deixa de haver razões para se combaterem, identificam-se mais do que as que não passaram por coisa nenhuma. Na preparação do livro da República, achei interessante o facto de o Machado Santos e o Paiva Couceiro serem dois personagens parecidos; Machado Santos refere-se ao "Bravo Paiva Couceiro"; ou seja, praticamente admira o único tipo que está a combater com ele. Hoje, como não há grandes conflitos e grandes batalhas, e a política é light, é centrão, isso leva as pessoas a estes refúgios nostálgicos.
Maria José - Não acho nada que sejamos nostálgicos. Nem tu nem eu. Temos sempre mais saudades do futuro.

As pessoas olham-nos como sendo nostálgicos de um passado que ainda viveram e pelo qual ainda lutaram.
Maria José - Nós lutávamos por um conceito de Portugal. Que desapareceu. Nessa altura tivemos atitudes logo diferentes. Eu nem sonhava fazer algum dia intervenção política.
Jaime - Eu escrevi um livro chamado Portugal: Os Anos do Fim, em 1976.
Maria José - Disse-lhe: "Não ponhas esse título." De outra maneira, Portugal vai continuar.
Jaime - E continuou.

O que foi preciso para aprenderem a estar nesse Portugal "reformatado"?
Maria José - A própria realidade. Não é conformarmo-nos. Está por demonstrar que a solução que se deu ao Ultramar tenha sido positiva. Aquilo em que acreditávamos não era tão insensato, tão disparatado, como se quis fazer crer durante muito tempo. O Portugal que temos é o Portugal que temos. É onde nascem os nossos netos, onde as pessoas ficam.
Jaime - Voltámos em 1978. Em 1980, comecei a [revista] Futuro Presente, com o Nuno Rogeiro, o José Miguel Júdice. Fui sempre fazendo coisas.
Maria José - Os nostálgicos não são activos.

Sofreu muito com o que tinha sido o falhanço do ideal da sua juventude?
Jaime - Sim. Mas depois tive sorte, e foi isso que me permitiu "destraumatizar", de voltar aos mesmos sítios de cara levantada, sem meter ideias no bolso, e até com o respeito das pessoas (quer daquelas com quem tínhamos estado, quer das que tinham estado contra nós). Volto a esses países e entro pela porta da frente, dou-me bem com as pessoas, tenho actividades lá. Ideia mítica: a gente perde as batalhas, mas volta sob outras formas, outras bandeiras.
Maria José - Perde batalhas e não perde necessariamente a guerra. Que guerra é essa?
Jaime - Somos muito hegelianos para ter razão contra a História. Se não tivesse acontecido o 25 de Abril, tinha acontecido o 25 de Maio. As coisas já estavam de tal maneira.

Intuíam-no?
Maria José - Tínhamos essa noção.
Jaime - Ter razão em História. A razão é uma coisa que podemos discutir connosco ou com Deus Nosso Senhor, se o tivermos. O resto são os factos, o que fica. O acontecido tem muita força.
Maria José - Apesar de ter sido num sentido contrário ao que acreditávamos, foi um privilégio ter vivido um pedaço de História tão forte como foi aquele.

É um privilégio porque se conheceram em situações-limite?
Maria José - Também. Fomos postos à prova. Há pessoas que nascem e vivem e morrem sem terem sido postas à prova. Essa possibilidade horrorizar-me-ia.
Esse pôr à prova é: temos coragem, não temos coragem, somos íntegros, não somos?
Jaime - Persistimos nas nossas ideias ou não. Abandonámos os nossos amigos ou não. Trocámos os nossos amigos pelos amigos dos outros por conveniência ou não.
Maria José - Primeiro é o teste à fidelidade àquilo em que acreditamos. Mas é também o despojamento. Podemos manter a nossa dignidade num campo de refugiados? Podemos. A capacidade de estar com dignidade em situações adversas. Perceber que precisamos de muito pouca coisa para sobreviver.
Jaime - Cigarros e livros. Agora já não preciso dos cigarros, deixei de fumar há 20 anos.
Maria José - Nessa altura é que os filhos nos fazem vulneráveis. O Eduardo esteve connosco, não nessa fase em que estivemos num campo de refugiados [na África do Sul], mas a seguir. Já não podíamos pensar só em nós, já teríamos de pensar nele. Percebemos que éramos tão fortes quanto necessário fosse.
Jaime - Outra frase da adolescência, que é do Nietzsche e também do Conan, aquele personagem de banda desenhada adaptado ao cinema pelo Schwarzenegger: o que não me mata torname mais forte.

Era nisso que pensava quando estava numa fila para receber a sopa?
Jaime - Pensei no insólito de ali estar. "Que engraçado, olha, agora estou nesta." São também as leituras. Nessas alturas salta a carga romântica, um bocadinho épica. E o sentido de humor, que tenho. "Quem é que havia de te dizer que ias estar aqui na fila?"

Não lhe ocorreu que podia soçobrar?
Jaime - Não!
Maria José - Não tive essa perspectiva. Aqui nesta casa, quando era miúda, até à primeira parte do Governo Marcelo Caetano, dávamos sopa, todos os dias. Quando me vi numa fila a caminho da sopa, percebi que me tinha tocado a mim uma coisa a que tinha assistido anos a fio. Mas tinha estado sempre do lado da panela. Marcou muito a minha infância, sobretudo através da minha avó, a ideia de que nada do que temos é nosso. Não é a caridadezinha. A minha avó vivia o Evangelho com muito rigor. Quando havia jantares grandes de amigos, dizia: "Lá vamos nós dar de comer a quem não tem fome." Eu, ao princípio, não queria comer [no campo]. Não queria a lata, não queria nada, cheirava mal. Depois o Jaime [riso] olhou para mim e disse: "O mais que tens é de comer." Ele trabalhava nas cozinhas e trouxe-me um bocado de pão e manteiga de amendoim. As mulheres e os homens comiam separados.

Porquê a recusa?
Maria José - Eu percebia que estava ali como refugiada, que não tinha direito a nada, que tinha de me sujeitar às regras. Mas como cheirava mal, não queria comer. Depois peguei na lata e fui. Percebi que estava do lado da lata e não do lado da panela. Como quando tratámos dos papéis de emigrantes - aquela sensação: dá carta de trabalho, não dá carta de trabalho -, algum movimento e pensávamos que era connosco, o ser preciso ir vender os anéis [à Cartier]... Esta experiência, a probabilidade de não acontecer na minha vida, era de 99, 9%. Agradecer esse 0,1% que ma trouxe é o mínimo que posso fazer.
Jaime - Passar pelo underdog é uma experiência muito interessante. Até politicamente. Quando reencontrámos o José Miguel Júdice em Madrid, em Janeiro de 75 - ele tinha estado aqui preso -, falávamos das prisões, das repressões. Passava-se a falar da fuga, da clandestinidade, da prisão de uma forma completamente diferente. Essa experiência do [que é o] outro lado - do lado de baixo da História, dos perdedores - é riquíssima.
Maria José - Não tem de deixar amargura nenhuma.
Jaime - Do ponto de vista religioso, tenho uma vivência cristã. Do ponto de vista filosófico, sou mais estóico do que cristão. Acho que a passagem disso dá uma humanidade diferente. Mesmo com os nossos inimigos. Quando a gente passa por isso, tem de dizer: vou-me pôr na pele do outro - e se eu fosse operário, e se eu fosse escravo, e se eu fosse cego e mendigo?

Essa experiência ajuda a relativizar?
Jaime - Arrasa com as certezas abstractas e filosóficas. Fomenta outras certezas. Pronto, sou capaz, já passei por isto. Mas tudo na escala dos brandos costumes portugueses. Não podemos comparar isto com experiências de outras sociedades.

Escreveu que muitos espanhóis acabavam fuzilados no paredón. Essa ameaça não era a vossa.
Jaime - Foi a nossa pequena experiência.

Apesar disso que dizem, durante muitos anos, sobretudo para o Jaime - o que se percebe na leitura dos Jogos Africanos - continuou a existir uma clivagem absoluta entre os dois lados. Ou nós ou eles.
Jaime - (Peço desculpa, vou fazer outra referência literária. O que a gente lê entre os 10 e os 15, 16 anos é definitivo.) Líamos uns romances sobre a guerra da Argélia nos quais havia uma certa camaradagem entre os contrários. Uma guerra sem ódio. Eu combato aquele porque ele crê as coisas exactamente ao contrário do que eu creio. Mors tua vita mea - a tua morte é a minha vida. Mas no fundo somos parecidos. Vou-te eliminar, vou-te neutralizar, mas não tenho ódio. O combate político nunca me levou ao desprezo [pelo outro].
Maria José - Há também a sedução pelas pessoas que podemos admirar, apesar de serem completamente diferentes de nós e nossos adversários. Então em Portugal, isso é muito visível. Tenho um determinado pensamento, não tenho uma família política para esse pensamento. Não estou certa de que as pessoas que me estão mais próximas na arrumação deste puzzle sejam aquelas que pensam como eu.

Pensei que tinha ódio aos comunistas.
Jaime - Ódio, eu? Não digo que tenha muitos amigos comunistas, mas dou-me bem com vários comunistas. Hoje, penso o seguinte: os comunistas, desaparecida a União Soviética, são essencialmente um partido tribunício.
Maria José - Nem podíamos [ter esse ódio], historicamente. É evidente que o Partido Comunista teve um papel determinante no 25 de Abril. Mas não podemos ter uma visão simplista e dizer que foram os comunistas que o fizeram sozinhos. Na sociedade portuguesa há laços e proximidades heterodoxas que vêm disso: das leituras, dos percursos, das afinidades (mesmo as que resultam da defesa de causas contrárias), das vivências académicas e das lutas académicas.
Jaime - Nessa altura é que a gente não se falava. Eu tinha uma resposta chapa para isto: se amanhã houvesse uma guerra civil, naturalmente voltávamos à mesma história, tinha de matar uns para não nos matarem a nós. Mas como não há, e até lá, vamos convivendo muito bem. Uma das razões por que nunca me meti em vidas partidárias é porque aí há uma ritualização das coisas: temos de ter ódio ao Governo, ódio aos comunistas, ódio aos conservadores.
Maria José - É uma visão clubística da política.

A Maria José trabalhou em instituições como a Maternidade Alfredo da Costa, a Santa Casa da Misericórdia. Esteve muitas vezes em contacto com aqueles que estavam do lado da lata e não da panela. Além das experiências partidárias. Isso fê-la menos radical do que o Jaime?
Maria José - Nunca fomos radicais. Fomos convictos. Não mudei nenhuma das minhas convicções. Nem aquelas que foram derrotadas, por referendos, leis, factos históricos. Tenho de ser justa: ninguém (das pessoas que me estimularam a entrar na política activa) me pediu para mudar nenhuma dessas convicções. Nunca senti que por fazer parte de um grupo tinha de gritar como o grupo. Podemos ficar sozinhos. Mas esse fi car sozinho não me afecta nada. Esse país real, de que se fala como se fosse uma abstracção, conheço-o. Quem me abriu mais a porta para a política foi a Leonor Beleza. Trabalhei com ela na Segurança Social. Faço política pelo concreto. Gostamos das pessoas - é outra coisa que nos caracteriza.
Jaime - Gostamos e não gostamos. Há uns de quem não gosto. [riso]

Nunca se sentiu um radical?
Jaime - Ah sim, com certeza. Toda a minha adolescência. Tínhamos o culto da radicalidade como uma virtude. Fui o fundador no Porto do Jovem Portugal. Fiz a revista A Política, entre 1969 e 73. Quando regressámos, fiz o Futuro Presente, nos anos 80.

Insisto: nos anos 80, o percurso da Maria José parece menos radical.
Maria José - Eu voltei primeiro, em 1978. Fui trabalhar com o dr. António Barreto, que tinha o gabinete de Estudos Rurais, na Universidade Católica. Para mim, a reforma agrária, que estudei, eram os camponeses, os latifundiários, as ocupações. E vinha do exílio. O terreno permitiu-me perceber que não havia fome da terra, havia fome de emprego estável. Uma vez ocupadas as terras, ninguém soube o que fazer com elas. As UCP acabaram por fracassar. Mas aquilo era um santuário em termos revolucionários. Ou seja, ajudou-me a desmontar muitos estereótipos. No fundo, a aproximação às coisas reais, que tenho muito na minha vida, mais do que o Jaime, que é mais intelectual puro, foi muito abrangente e permitiu-me perceber que a vida é como é. Tudo mais simples do que parece. Ou talvez mais complicado. O radicalismo: o meu pai era um homem de direita, orgulhosamente do Estado Novo, muito ligado ao Salazar. Mas aqui em casa fomos sempre educadas com grande liberdade. Nesta casa passava toda a gente. Bem, não passava o Álvaro Cunhal. Mas passava gente diversificada.

O seu pai era salazarista?
Jaime - Era. O meu avô foi franquista ( João Franco), depois sidonista e salazarista. Do lado da minha mãe, penso que o meu avô foi carbonario.
Eu tive uma fase liberal, pela democracia e pela liberdade, vinda das leituras. A maior parte dos romances que se editavam em Portugal eram de gente de esquerda italiana, francesa, Elio Vittorini, Sartre. Havia um escritor americano de segunda ordem, muito esquerdista, de quem li a obra toda: Erskine Caldwell. O princípio da guerra de África, em 61, é que me deu a volta, por causa do Ultramar. O que me leva a crer que a propaganda do Estado Novo não era assim tão má.

Que criança era, que jovem era, para ter convicções políticas tão fortes com essa idade?
Jaime - Era uma coisa de geração. Eu lia invulgarmente. Era muito sozinho. Com 12 anos, li a Bíblia toda, a edição ilustrada pelo Gustave Doré.
Dantes, o saber e a cultura eram coisas que nobilitavam, tornavam as pessoas respeitáveis. Algumas das pessoas que mais me formaram foram os meus professores de liceu. Dr. Baltasar Cardoso Valente. Aprendi com ele a pensar o mundo, a conhecer o mundo.
Maria José - A minha grande amiga, com quem brincava todas as tardes, era a Dolores, filha do sapateiro do Benfica. A Dolores disse-me: "Sabes, agora vai tudo mudar. Vem aí o [Humberto] Delgado. Vamos mudar de casa. Eu vou viver para a tua casa e tu para a minha." Tínhamos seis anos! Já eu imaginava a mudança... Ao jantar, contei a conversa. Houve um silêncio, e depois isso foi falado. A guerra do Ultramar foi discutida nesta casa, até porque havia posições diferentes.

Conte-me como era em criança.
Jaime - Tinha meios-irmãos muito mais velhos do que eu, era como se fosse filho único. Tinha só aulas de manhã. Lembro-me de passar as tardes a ler. Também tinha amigos e brincava; mas aos dez anos já não se brinca muito. Lembro-me de meter o candeeiro debaixo dos lençóis e ler até às quinhentas. Cria um mundo. Aos 15 anos, com a política e o Jovem Portugal, saio do casulo. Tornome num pequeno líder. Crescemos rapidamente, tínhamos mais de 100 filiados.

Queria ser político?
Jaime - Não. Queria ir para a Academia Militar. Queria ser soldado. Não fui por causa dos óculos. Fui para Direito - como dizia o Eça, bacharel em leis como toda a gente. Era um curso que dava para tudo. Houve uma altura em que quis ser professor universitário. Mas depois, por causa da política, deixei de ligar e licenciei-me com uma nota média.

Veio do Porto para Lisboa. Tinha a noção de que aqui é que se passava tudo?
Jaime - Digo sempre isso aos meus alunos: onde se passam as coisas é na grande cidade. Onde é que apanhei Lisboa? Nos filmes portugueses, nas comédias. Vinha cá às vezes e gostava muito. Tinha a coisa de querer sair de casa, de ser autónomo. Vim com 17 anos. Em Lisboa, continuei na actividade política.

Era de direita numa altura em que "toda a gente", sobretudo no meio universitário, era de esquerda.
Jaime - Não me incomodava nada. Em Direito ainda havia um núcleo de direita. Havendo um pequeno núcleo, é possível arregimentar alguns dos indiferentes. A Faculdade de Direito foi a faculdade onde nunca se conseguiu uma greve geral. A esquerda tinha outras formas de agremiação, revistas, associações de estudantes - uma outra força.
Maria José - Quando eu furei a greve em 1969 - foi assim que nos conhecemos, veio no jornal que eu tinha furado a greve; uma coisa censurável e extraordinária - tive os meus amigos com um profundo desgosto por eu ter feito aquilo.
Jaime - Eu organizei o furar a greve. Em Coimbra, o núcleo de direita tinha uma certa força. Era parte do meu grupo. Mas nós éramos bastante isolados, não éramos propriamente do regime. Tínhamos, não direi repugnância, mas uma certa alergia a ser confundidos com qualquer coisa que tivesse que ver com o regime, quer no tempo de Salazar, quer no tempo de Marcelo Caetano.

Porquê essa alergia?
Jaime - Porque éramos nacionalistas revolucionários. O regime era para nós uma coisa arcaica, careta, decadente. O culto de Salazar em Direito é depois de ele desaparecer.

Quem diria que anos mais tarde iria a um programa de televisão defendê-lo.
Jaime - Continuo a achar que Salazar teve três qualidades que amigos e inimigos não lhe negam. Procurou sempre o que ele entendia como o bem de Portugal. Segundo, era uma pessoa honestíssima em relação a tudo o que era dinheiros públicos; tinha a preocupação de controlar os outros; e como lhe tinham medo, havia pouquíssima corrupção. No fim do Estado Novo, as coisas mudaram. Terceiro, decidia coisas, bem ou mal. Não empatava, não engonhava. Uma certa popularidade que ele adquiriu [resulta daqui]: contrasta muito com a média dos políticos.

Quer dizer que a defesa que foi fazer à televisão não a poderia ter feito quando era jovem?
Jaime - Não. Achávamos que o regime, com excepções, era feito de gente muito burocrática, ordeira. Não queríamos ter nada a ver com eles. Nós vivíamos nos personagens dos livros, nos autores franceses dos anos 30, no Ernst Jünger. O programa de televisão: pensei, provavelmente com presunção: "Ou vou lá eu ou corre mal. Quem for é capaz de não fazer aquilo bem e depois fico furioso por não ter ido." Há uma frase do Reagan que gosto muito de citar e que acho que pode resolver grande parte dos nossos problemas: If not us, who? If not now, when? Ninguém se chega à frente? Quem me telefonou, telefonou como se estivesse a fazer um convite embaraçoso.
Maria José - Como se fosse para ir para a forca!
Jaime - Perguntei: "É como advogado ou como historiador? Se é como advogado, aceito já."
Maria José - Nunca vi um clima tão tenso num programa de televisão. No fundo, é muito importante saber quem é que conta a História. É importante que o Jaime tenha escrito estes livros. Porque a História foi contada durante muito tempo só por um lado. Nós, direita, temos culpa disso. Estivemos calados.

No período da Guerra Fria, a Maria José esteve na política activa. No caso do Jaime, só a partir dos Jogos Africanos soubemos da sua participação em jogos de bastidores. Sendo um palaciano, dá-se muito bem na selva.
Maria José - É um urdidor.
Jaime - Essa actividade, como a maior parte das coisas importantes que nos acontecem na vida, aconteceu por acaso. Em 1978, ainda estamos a viver exilados em Madrid, o embaixador Franco Nogueira foi convidado por um grupo com uma certa base conservadora, do Liechtenstein, a ir lá regularmente. Esses grupos informais que se fazem e que as pessoas acham que servem para fazer conspiração. Não é bem conspiração. São grupos que têm uma certa afinidade ideológica.

Creio que não usa a palavra "conspiração" para se referir ao "grupo" Cercle, mas quando chega a África, em 74, diz que a primeira coisa que faz é conspirar. O Cercle é criado para vencer a Guerra Fria e é frequentado por pessoas como o Kissinger.
Jaime - Esses grupos são plataformas onde se encontram pessoas com ideias próximas. Políticos, homens de negócios, académicos, homens da área militar e da intelligence, jornalistas. Pessoas com uma certa influência nos respectivos países. E pessoas clubbable; ou seja, que gostam desta convivência. Depois, se as pessoas têm interesses bilaterais e querem juntar-se nalguma coisa, isso é com elas. Tive a sorte de ter sido convidado por um amigo para ir a Washington, para o Cercle. Foi no ano e no dia da morte de Sá Carneiro. Tinha o Reagan acabado de ser eleito.

Como é que se torna influente?
Jaime - Um dos campos de batalha da Guerra Fria é África. Passei a ser no grupo o expert que dissertava sobre Angola. Ganhei uma certa influência, não porque tivesse um cargo a desempenhar, mas porque conhecia muito bem o que se estava a passar. No Cercle, estavam pessoas importantes da Administração Reagan, conselheiros, estrategas. Passei a ter esse estatuto. Quando chega a altura de haver uma intervenção mais prática, sou uma das pessoas que se ocupam disso. Gostei.
Achei divertido. Fiz umas coisas por minha conta e risco - toda a questão moçambicana. Gosto de política internacional, geopolítica. A grande política, gosto de a pensar, estudei-a muito.

Gosta de se sentir uma peça daquela grande máquina?
Jaime - Um amigo respondia com certa graça quando lhe perguntei como tinha entrado naquilo.
"É sempre a mesma coisa. Um amigo que traz outro amigo, que é recomendado por outro amigo." Ele também dizia que as coisas mais engraçadas que fazemos são aquelas que não sabemos se saíram da nossa cabeça, se foi alguém que nos sugeriu e que a gente nem percebeu quem. E é um mundo com uma certa capacidade de acção.
A maior parte das vezes não é directa, mas é exercida junto das pessoas que depois decidem, que foram eleitas ou que têm poder. Sou uma pessoa bastante discreta. Gosto mais disto do que de andar aos gritos no meio da rua.

Foi uma actividade de que só se soube recentemente.
Maria José - Faz favor de explicar o que é que significa no dia-a-dia a necessidade desse silêncio. Pugnei pela publicação dos Jogos Africanos. Os miúdos, muitas vezes, nem percebiam o que é que o pai fazia. Umas coisas, sim - aulas na faculdade. Mas depois havia um tempo - viagens, ausências - que eles não percebiam bem. Eu seria das poucas pessoas, e por vezes a única, a saber.
Jaime - Um amigo, quando publiquei os Jogos Africanos, disse: "Assim soubemos o que é que andaste a fazer."

Podia responder-lhe com uma frase essencial neste meio, segundo conta no livro: "Não faças perguntas."
Jaime - Este livro respondeu a muitas coisas.

Há um episódio engraçado, quando encontra pela primeira vez Savimbi, em Paris. Por acaso, e sem o saberem, hospedaram-se no mesmo hotel.
Jaime - A Zezinha achou que eu tinha organizado tudo. Não tinha organizado nada.

Há coisas que nem a sua mulher pôde saber.
Maria José - Sim. E aceitei isso perfeitamente. Nunca fiz perguntas.
Jaime - A não confidencialidade compromete a maior parte das pessoas. Só tem de ser informada de uma coisa uma pessoa que faz parte do puzzle. Fora isso, não tem nada que saber.

No livro diz que a sensação de pertença a este grupo de decisores lhe faz bem ao ego.
Jaime - É claro. Sentia que era um privilégio participar nisso. Nós tínhamos sido exilados. Isto foi há 30 anos.

Era uma outra maneira de fazer História?
Jaime - Era. Totalmente diferente. [Fui] um português que pôde continuar a fazer coisas por Portugal. Tive a preocupação de informar as autoridades do meu país, fosse qual fosse o Governo, sobre coisas que tocassem directamente os interesses de Portugal. Salvo duas ou três excepções que não vou comentar, sempre respeitaram. Era uma lealdade ao Estado - não ao Governo.

Um exemplo da vossa influência.
Jaime - No caso de Angola, tivemos influência e peso para trazer as negociações [do processo de paz] para cá. Eu fiz isso. Era uma forma de Portugal retomar um papel.
Maria José - Foi um trabalho duro, aliciante, tinha aspectos rocambolescos. Eu acompanhava-o nalgumas viagens.

Era a vida dele à qual episodicamente assistia. Não era estar no projecto a dois, como tinha acontecido no pós-revolução.
Maria José - Fui a companheira dele neste projecto, muitas vezes muda, silenciosa, à boleia. Sempre com a obrigatoriedade de não dizer a ninguém, nem mesmo dentro da nossa casa. Isso criava uma solidão a dois. É uma coisa que une. Eu fui fazendo outras coisas. Tem a ver com participar. Temos obrigação de participar. Gostamos da coisa pública.
Jaime - As razões da acção humana são múltiplas. Porque gostamos, porque é lúdico, pelo dever, até pelo interesse.

Editou um livro, a que já fez referência, que tem um título triste: Portugal: Os Anos do Fim. Não parecem tristes.
Jaime - Nunca fomos. Nunca fui um melancólico. O título é apocalíptico. São coisas que nos põem em contacto com os limites da natureza humana.

Nunca tiveram nenhum tipo de amargura?
Maria José - Nunca.
Jaime - Eu tive outros sentimentos, não amargura. Raiva, raiva, fúria. No dia em que o general Spínola, 27 de Julho de 1974, anunciou oficialmente o fim do império português, tive um grande desgosto. Curei-me das coisas do império voltando a ele.
Maria José - E vergonha. O Ultramar era uma forma de ser português. Depois, nós tínhamos que sobreviver. Era um dia atrás do outro.
Jaime - Era procurar empregos que não chegavam.
Maria José - Era estar longe da pátria. Longe, até porque não havia dinheiro para comprar bilhetes de avião. Era contar os tostões. Mas aquilo era inexorável. Era o vento da História que ia soprar inexoravelmente.
Jaime - Hoje, lucidamente, racionalmente, reconheço que um país com a dimensão de Portugal, e a partir do momento em que já não havia mais nenhuma potência com colónias, estava isolado. Era um regime exótico na Europa ocidental. Bastava qualquer coisa para um colapso.
Maria José - Doeu-nos sobretudo a forma como acabou.

publicado originalmente em O Público a 10 de Novembro de 2010.

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