“Ali, no seu território mais amado, descobri que sua atitude diante daquilo que é chamado de ‘folclore’ é também uma aula de democracia cultural, onde as diferenças interagem para melhorar a vida, o pensamento e a arte de todo mundo. A relação de Siba com os brincantes de cavalo-marinho e maracatu rural, para citar dois estilos que conhece como poucos, não é demagógica nem paternalista, nem condescendente nem deslumbrada. Os dois lados da relação permanecem diferentes – e é porque são diferentes que têm algo de interessante para dizer um para o outro -, mas o contato é de igual para igual.”
O afetuoso texto do antropólogo Hermano Vianna sobre o disco Fuloresta do Samba (2002), gravado por Siba e músicos de Nazaré da Mata, 70 quilômetros ao norte do Recife, é um ponto de partida para tratar o conhecimento tradicional e seu aproveitamento ou apropriação pelo saber científico e tecnológico. Para Vianna, Siba compreende que o segredo da vitalidade da ‘cultura popular’ é a inovação dentro da tradição, a inovação que só é feita por quem respeita a tradição.
O conhecimento tradicional, segundo o dicionário, constitui-se de práticas, conhecimentos empíricos e costumes passados de pais para filhos, e crenças das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza. Ou seja, é o resultado de um processo cumulativo, informal e de longo tempo de formação. A cerimônia de aproximação de Siba – naquele momento amplamente conhecido na indústria fonográfica – e os músicos de um samba sui generis, passado entre gerações do sertão pernambucano, pode ser transposta para situações recentes ou expor outras opções consumadas em que essa mistura gera transformações.
Cacique Almir Suruí e a colaboração com o Google
O gigante de tecnologia da informação na internet, o portal americano Google, recebeu, em 2007, um pedido um tanto inusitado. Almir Suruí, cacique da tribo Suruí, de Rondônia, queria uma parceria que pudesse contribuir para a localização- e preservação – do território de 247 mil hectares onde vive seu povo. Na verdade, os Suruí queriam fazer aparecer (e para valer) o desmatamento na região da aldeia, nada mais legítimo no mundo em que tanta gente tem uma janela digital.
Apesar de a aldeia não ter acesso à internet, a sede da Associação do Povo Suruí, a 35 quilômetros de distância, no município de Cacoal, orgulha-se de ter um terminal. Lá os Suruí-Paiter consultam o Google Earth e veem seu território, conhecem um pouco da história e o perfil do cacique. Almir foi à sede do Google, no Vale do Silício, na Califórnia. “Eu sou um fã de tecnologia, é importante trazer informações sobre a floresta para a população e esta é a melhor ferramenta de diálogo”, diz. Dessa forma, foi costurada a parceria entre o povo Suruí e o Google. Um encontro rico para as duas partes, segundo Almir, sem autoritarismo e com uma troca real. É a primeira vez que o Google é procurado por uma população indígena e isso pode se tornar experiência para outras aventuras, as novas brincadeiras que surgem dos encontros entre diferentes.
“Nós somos um povo que não tem nada de tecnologia (da informação) e o Google conhece profundamente esse sistema. De outra maneira, todos dependem da Floresta Amazônica e precisam se envolver na preservação, é uma via de mão dupla.”
E foi para uma plateia de entendidos tecnológicos que Almir Suruí mostrou o plano de sustentabilidade da aldeia para os próximos 50 anos e como a união com a empresa americana se encaixava como uma luva nessa estratégia.
Seu Dominguinhos e a colaboração com a Orsa Florestal
Em plena Floresta Amazônica, o seu Dominguinhos é outro personagem do universo tradicional incensado e demandado pela ciência. Ele é dos últimos e poucos que conhecem plantas e árvores da floresta e cuida de um acervo criado pela Orsa Florestal, consultado por cientistas e interessados de todo o mundo.
Seu Dominguinhos nasceu em Breves, no Pará, em 1937, e desde cedo seu interesse era andar pela mata, descobrir nomes e tipos de plantas. “Conhecer uma planta é como conhecer uma pessoa, exige tempo e profundidade, porque a botânica muda muito”, afirma ele, em uma conferência por telefone da sede da Orsa Florestal, em Monte Dourado, distrito da cidade de Almeirim, norte do estado, para a capital paulista. A ideia original era falar com este mateiro por uma videoconferência. A despeito do aparato tecnológico de que é dotada a empresa para quem seu Dominguinhos presta serviço, uma circunstância tão simples, como a falta de energia elétrica naquela cidadezinha, impede os planos. Então é preciso se contentar com a voz.
Na linguagem da ciência, Domingos Sanches Pena é “parataxonomista”, e reconhecido como um dos melhores identificadores florestais na Região Amazônica. Acompanha projetos de pesquisa para a Orsa Florestal, participou da elaboração de livros como Árvores da Amazônia, foi figura fundamental para duas teses de mestrado e doutorado, relacionadas ao assunto, e é o responsável pela xiloteca mantida pela Orsa, com coleções de amostras de madeiras e botânicas e um herbário com 3.800 exemplares.
“O meu professor era um índio, um dos maiores conhecedores da Amazônia, Nilo Tomás da Silva. Ele obteve os conhecimentos de botânica com um cientista estrangeiro que veio para a Amazônia. Esse estrangeiro soube que havia um índio rejeitado pela família, ficou com pena e o levou junto para ensinar sobre as plantas. Levou ele também para estudar em Belém, onde fez até o segundo grau. Mas ele queria mesmo era ir para o mato, estudar e trabalhar as plantas medicinais”, conta seu Dominguinhos.
A fábrica chegou e então precisava de alguém que entendesse de madeira. “Ninguém conseguia absorver todo o conhecimento do Nilo e eu comecei a andar com ele, a decorar a sabedoria dele, e anotava algumas coisas.” Ainda assim, Dominguinhos diz que não se conhece uma vírgula de toda diversidade da floresta. “Eu chego no mato e tem um metro quadrado de plantas, às vezes conheço todas, muitas vezes nenhuma.”
Tecnologia? Seu Dominguinhos gosta, sim, mas pede aos filhos. “Hoje os meninos querem ficar em escritório.” Ele tinha expectativa de que um dos seis filhos tivesse interesse em seguir seu ofício, mas tomaram outros caminhos. Então, seu Dominguinhos pensa em escrever um livro, sabendo que boa parte do que sabe pode ficar sem rumo quando ele morrer. “Estou escrevendo um livro sobre a teoria da evolução, mas ainda está a lápis, preciso passar a limpo, quero um livro grande, pequeno não serve.”
A despeito de um contato profundo com a natureza ao seu redor, seu Dominguinhos diz que seu remédio é o trabalho. Gosta das plantas medicinais mas não usa, ou melhor, não precisa usar. “Quando chega uma idade avançada, tem que continuar trabalhando, já sou aposentado, mas continuo trabalhando. Depois quero me dedicar a um sítio que eu tenho, não vou parar.”
Centroflora e Natura e a parceia com comunidades tradicionais
Que o brasileiro é chegado ao consumo de garrafadas e ervas milagrosas ninguém duvida. Mas o hábito do fitoterápico com o crivo da indústria é assunto recente e vai muito, muito além das ervas e garrafadas expostas em mercados como o Ver-o-Peso, em Belém. Nos últimos quatro anos, a busca por remédios ou cosméticos elaborados com extrato de plantas ganhou fôlego. E a indústria começou a investir para que o que é considerado natural seja oferecido sem o risco de uma poção feita sem indicações ou componentes mais claros e exatos. “É uma maneira de valorizar nossa diversidade natural e também de incentivar a pequena agricultura e o conhecimento tradicional”, diz Peter Andersen, um dos sócios do grupo Centroflora, que produz extratos de plantas para as indústrias cosmética, farmacêutica e veterinária.
Andersen hoje cuida, por exemplo, do cultivo da planta, da extração do óleo essencial e da padronização do extrato que vai icompor uma das descobertas mais bem-sucedidas de fitoterápicos, o Acheflan, um antibiótico de uso tópico natural, feito à base da erva baleeira, encontrada na Mata Atlântica. Também está a cargo do Centroflora a produção em escala dos ativos do Naturetti, um laxante natural, feito de plantas medicinais brasileiras.
No que se refere ao interesse particular dessa ponte pretendida do conhecimento mais primitivo para a massa e a escala, interessa muito o tipo de parceria estabelecido pelo Centroflora. Hoje a empresa conta com uma rede de fornecedores em praticamente todo o Brasil e a escolha estratégica é pela agricultura familiar.
O Centroflora tem uma rede de 80 projetos de cultivo agrícola e manejo de plantas no mapa brasileiro, parceiros essenciais para o cultivo da planta medicinalou matéria-prima para um cosmético. “A opção dos sócios da empresa é pela sustentabilidade do pequeno agricultor, queremos premiar a renda no campo. Mais barato seria contratar um agricultor capitalista que assumiria o risco no desenvolvimento de determinado cultivo”, afirma Andersen, mas a escolha permite que os agricultores permaneçam no campo, dentro de sua ocupação e ainda trabalhem com o suporte do conhecimento científico-tecnológico.
Além do cultivo convencional agrícola nas regiões de plantas nativas, o Centroflora faz o manejo florestal de algumas espécies, treinam e capacitam o agricultor, levando o know-how da planta medicinal para o agricultor.
Outra iniciativa do grupo que merece ser citada é a Ybios, uma empresa criada em parceria com a Natura, para a gestão do desenvolvimento de fitoterápicos no Brasil. “Nosso objetivo é pegar a ideia que está na prateleira da universidade e transformála em realidade”, conta.
Pontes como a da Ybios se fazem essenciais em um país onde a legislação que rege a descoberta científica é assunto polêmico entre as empresas e o detentor do conhecimento tradicional. Uma das maiores empresas brasileiras no investimento em pesquisa e desenvolvimento na área cosmética, a Natura que o diga. O diretor de pesquisa e tecnologia da marca, Daniel Gonzaga, explica que o simples fato de fazer uma pesquisa exploratória de alguma planta pode implicar a repartição dos benefícios futuros entre todos os envolvidos. Uma regra que encarece ou inibe uma parceria mais efetiva com quem está no campo, lembrando que empresas visam lucro, ainda que optem por agir de maneira sustentável.
“Hoje preferimos contribuir para a sustentabilidade das comunidades que fazem negócio com a Natura, mas a relação é muito mais de fornecedor e cliente do que de desenvolvimento tecnológico”, diz Gonzaga. Ou seja, a Natura faz uma opção pela biodiversidade brasileira ao desenvolver produtos com o que é natural daqui, mas recorre à ciência para a descoberta de ingredientes para seus cosméticos e cria unidades de negócio com agricultores que possam cultivar a matéria-prima necessária.
No ano passado, a empresa investiu cerca de R$ 100 milhões em pesquisas com um grupo de 200 colaboradores. Na outra ponta, definidas as demandas, mais de 19 comunidades tradicionais, quase a metade na Região Amazônica, cuidam da produção das plantas e extratos utilizados nos cosméticos.
Um grupo foi formado para a relação com essas comunidades, que, em troca, são instruídas no manejo agrícola e na certificação dos ingredientes. “Esse é um critério para ser fornecedor da empresa, mas também um benefício”, explica Gonzaga.
A empresa não estimula o fornecimento exclusivo para a marca, onde entra, mais uma vez, a ideia de que a troca se nutre da renovação e da novidade. “Os pequenos agricultores devem se diversificar; é o mesmo que nós buscamos.”
Voltando à lucidez de Hermano Vianna para os experimentos musicais da Fuloresta do Samba, a brincadeira de um ano nunca deve ser igual à brincadeira do ano que passou – se for imutável, desaparece, perde a graça para quem brinca. O novo vem de dentro e de fora da comunidade brincante.
Os guardiões das terras indígenas do Acre
Um projeto desenvolvido desde 1996 no Acre combina conhecimentos tradicionais e técnicas modernas para melhorar a gestão ambiental e territorial das terras indígenas. Concebido pela Comissão Pró-Índio do Acre, o programa de Agentes Agroflorestais Indígenas foi incluído na política do governo acreano em 2001. A experiência é um interessante exemplo de como as técnicas agroecológicas e o saber tradicional se podem e devem mesclar em políticas públicas. Os agentes tornaram-se estratégicos na implementação de planos de gestão por meio de acordos comunitários de caça, pesca e uso racional de recursos naturais. Áreas de refúgio para animais gestantes são estipuladas nos acordos, que também proíbem a pesca com tingui, produto natural que mata os peixes.
Outra incumbência é orientar as comunidades a coletar frutos sem derrubar a mata. Por trás desse arsenal de acordos, técnicas agroecológicas e trabalho de educação ambiental, está um programa de formação que já conta com 126 agentes agroflorestais, representando onze povos indígenas do Acre, que participam anualmente de cursos de 45 dias no Centro de Formação dos Povos da Floresta, um sítio na zona rural de Rio Branco.
Como explica Fabrício Bianchini, coordenador do programa na comissão, ele compreende um curso técnico integrado à educação básica indígena, com materiais didáticos de autoria dos próprios indígenas, pelos quais transmitem saberes sobre animais, plantas e remédios. “Nossa escola funciona como centro irradiador de agrobiodiversidade para as terras indígenas”, diz Bianchini. Para combinar teoria e prática, a escola possui modelos demonstrativos de sistemas agroflorestais, piscicultura, criação de quelônios e de abelhas sem ferrão.
“Muita coisa que fazemos como agentes nossos avós já faziam”, conta Josias Pereira Kaxinawá, presidente da Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre, que reivindica do governo concurso para a contratação dos profissionais, cuja formação foi reconhecida como curso técnico pelo Conselho Estadual de Educação do Acre. Segundo Dinah Rodrigues Borges, gerente da divisão de extensão indígena da secretaria estadual de produção familiar, cursos voltados para indígenas estão sendo promovidos pelo Instituto Dom Moacyr, responsável por formação profissional no Estado. “Isso permitirá que a médio prazo os indígenas se habilitem a concorrer a cargos públicos.”
Dos 126 agentes, 69 foram contemplados com bolsa mensal de R$ 300, oferecida por meio de convênio celebrado entre a Seaprof e o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). Eles pertencem a oito etnias – Kaxinawá, Yawanawá, Katukina, Manchineri, Ashaninka, Jaminawa, Arara, Nukini e Poyanawa -, representando quase 8.000 indígenas, ou pouco mais da metade da população indígena do Acre.
Existem, contudo, inúmeros desafios a serem enfrentados pelo programa, começando pela própria relação precária do Estado com o projeto, que depende sobretudo de fontes externas para sobreviver. Para Dinah Borges, a maior dificuldade é monitorar em campo as atividades dos agentes por causa das longas distâncias e da escassez de técnicos com perfil para o projeto. “Procuramos visitar periodicamente as terras indígenas, mas, devido às dificuldades nos trajetos, por vezes ficamos impossibilitados de monitorar avanços e possíveis retrocessos.”
Usar as redes sociais para gerar conhecimento colectivo em prol da conservação das florestas e do clima
Ao mesmo tempo que assessora o ministro Carlos Minc por meio de um termo de cooperação entre o MMA a Fundação Avina, Tasso Azevedo – que deixou a direção do Serviço Florestal no início de abril – tem se dedicado a uma porção de ideias inovadoras voltadas para a conservação.
Uma delas é usar as redes sociais, com base no voluntariado, para resolver problemas como o monitoramento de florestas. Trata-se de uma nova ciência, diz ele: organizar métodos científicos de forma que os não cientistas possam fazer a pesquisa. Você em sua casa, por exemplo.
Explica-se: um projeto piloto gestado entre o Serviço Florestal e o Imazon vai delimitar uma área onde é preciso mapear as estradas usadas por madeireiros. Embora as imagens de satélite mostrem onde estão as estradas, não é possível de forma automática desenhálas no computador, ou seja, fazer o computador identificar o padrão. É um trabalho manual. “Para fazer isso em 10 milhões de hectares, a gente leva no sistema atual de 20 a 30 dias”, diz.
Já um conjunto de pessoas organizadas em uma rede social faria a diferença. Disponibilizam-se as imagens em uma plataforma dividida em quadradinhos de 100 hectares cada um, exemplifica Azevedo. Cada quadradinho é uma unidade de trabalho a ser “adotada” por uma pessoa inscrita na rede, disposta a se qualificar para o projeto “Monitoramento de Estradas na Amazônia”.
Cria-se um manual on-line, explicando como trabalhar. Cada inscrito é então submetido a um teste e, se aprovado, recebe a qualificação. “Em uma rede social com milhares de pessoas qualificadas, fazemos aquele mapeamento em menos de um dia.” Provada a eficácia do sistema, o passo seguinte é criar ferramentas para que qualquer membro da rede – indivíduos, instituições, entidades do próprio governo – possa criar outros projetos, como de monitoramento de água, manejo florestal, degradação, migração de fauna, acompanhamento de chuvas.
“Se o twitter se transformar em um ponto geográfico, que indique a localização, a gente faz miséria. Observações como ‘onde e quando começou e parou de chover’ geram um conhecimento coletivo valioso para gerar bases de dados para o Redd. Isso só dá para fazer usando redes sociais combinadas à tecnologia da informação. Pessoas que vivem o mundo real podem transformar o que estão vendo em conhecimento”, diz.
Mas, para dar certo, as pessoas precisam aderir de forma voluntária. “O Globo Amazônia (globoamazonia.com) teve 40 milhões de hits em 2 meses. É um número muito alto. São ações, protestos, denúncias, mas que, se não estiverem ordenados em torno um projeto, têm uma utilidade menor.”
Outro plano de Azevedo é criar nas redes sociais uma espécie de mercado de ideias. “Em biodiversidade é muito comum pesquisar determinado assunto – por exemplo uma molécula –, que não se sabe para o que vai servir.” Então, o objetivo é registrar a informação pesquisada em uma rede na qual há pessoas em busca de soluções, que eventualmente podem estar naquela molécula.
Azevedo também está empenhado, juntamente com a Fundação Clinton, em um lobby para que as imagens de satélite em alta resolução tornem-se gratuitas em todo o mundo, disponibilizando uma base imensa de informações para gerar conhecimento. “Assim como o serviço de busca na internet é free, e isso não tem mais volta, queremos o mesmo para essas imagens. A ideia é chegar na COP 15, em Copenhague, com as maiores companhias de satélite anunciando isso.
Tecnologia de gente: conhecimento gerado localmente pode fazer a diferença para milhões de pessoas
Um pedreiro, nordestino, retirante, teve uma ideia, nos anos 50. E ela era tão boa que virou projeto, encampado por uma comunidade, depois por uma ONG, depois pelo governo federal e, hoje, é uma iniciativa que leva água a 1 milhão de pessoas. É também provavelmente um dos melhores exemplos de que grandes soluções não florescem apenas na academia ou em departamentos de pesquisa de empresas – um conhecimento gerado localmente, em pequena escala, tem o potencial de ajudar milhões de pessoas com o mesmo problema. É por isso que um dos maiores desafios actuais continua a ser melhorar o diálogo das universidades com o “Brasil real”
Essa é a história de Manuel Apolônio de Carvalho, que deixou sua terra na Bahia em direção a São Paulo, por causa da seca, e, na lida de construir piscinas para paulistanos, teve a inspiração que mudaria a vida de muita gente. Ele bolou um tipo novo de cisterna, redondo, estruturado em placas pré-moldadas, que capta água da chuva e é muito mais barato que os modelos tradicionais. Voltou para casa quatro meses depois, construiu uma, que em três anos já tinha virado 400. O modelo foi replicado e melhorado e, no começo de abril, havia ultrapassado 251 mil unidades – dentro de uma meta de chegar a 1 milhão de cisternas de placa que levariam água a mais de 5 milhões no Semiárido brasileiro.
A ideia do seu Manuel – motivada pelos anos em que buscava água em um riacho distante por horas de sua casa – gerou o que é conhecido como tecnologia social. A expressão começou a ganhar destaque no início desta década e serve para denominar desde as inovações surgidas nesse tipo de situação até aquelas criadas por instituições de pesquisa em parceria com comunidades, e que visem solucionar algum problema social. Está ligada a um movimento que cresce no Brasil, com o objetivo de dar escala para achados às vezes brilhantes, mas restritos, cuja criatividade está diretamente relacionada à necessidade.
Foi nesse contexto que em 2005 surgiu a Rede de Tecnologia Social (RTS), voltada para ações que conectam e replicam essas experiências. De acordo com Larissa Barros, secretária-executiva da rede, num primeiro momento viu-se que era preciso aproximar o novo conceito de quem já trabalhava com isso. “A intenção é fazer com que a pessoa ou a comunidade entendam que o que ela está fazendo é tecnologia, é solução. Ter esse reconhecimento faz toda a diferença. As pessoas percebem que o saber delas é fundamental e que o conhecimento da realidade onde elas vivem é componente da solução”, explica.
Segundo ela, este é o grande diferencial das tecnologias que surgem nessas condições em comparação com outras que vêm, por exemplo, da academia. “Não adianta nada o pesquisador chegar lá, tomar conhecimento do problema, ir para a universidade, pensar uma solução e levar de volta para comunidade para implantá-la. Isso não dá muito certo. É só transferência de tecnologia. Para funcionar, tem de agregar o conhecimento de quem está vivendo aquilo.”
Larissa acredita que um dos desafios do movimento é justamente melhorar esse diálogo das universidades com o “Brasil real”, até porque muitas vezes a inovação não vem completa na cabeça das pessoas, como ocorreu com seu Manuel, mas surge apenas como um insight e precisa de uma mãozinha da ciência para se tornar realidade. Assim como de parcerias com empresas para incrementar ou melhorar a inovação. A universidade está atenta, tanto que o Fórum de Pró-Reitores de Extensão faz parte da RTS, e seu congresso nacional realizado no final de abril teve como tema as tecnologias sociais. “Mas ainda não conquistamos o pessoal da pesquisa”, lamenta Larissa.
Pesquisadores que investigam o movimento das TS acreditam que um dos motivos para essa parceria ainda não ser maior talvez seja a falsa noção de que tais tecnologias não são intensivas em conhecimento, o que não demandaria uma pesquisa de ponta e pareceria menos desafiador para a academia ou para grandes empresas. “Em sua origem como ‘tecnologia apropriada’, na década de 70, esse movimento tinha um papel de contestação ao modo como as empresas produziam tecnologia, era uma negação ao processo convencional de inovação”, afirma José Carlos Barbieri, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas.
“Mas elas trazem um desafio de quebrar escalas da produção, de manter a autonomia das pessoas em um padrão que seja ao mesmo tempo inclusivo e competitivo. A comunidade acadêmica precisa olhar com mais atenção”, diz.
Segundo Barbieri, esse sistema de inovação preocupado com o social e não somente em benefício próprio, como é a abordagem das empresas, não implica falta de lucro. Ao contrário. Um exemplo citado por ele traz indicadores que seriam admirados por qualquer administrador: aumento de 400% nos ganhos e melhoria da eficiência, elevando o aproveitamento dos recursos de 65%, no modo tradicional, para 85%, com o novo modelo.
Esses resultados foram alcançados com a implantação de uma minifábrica de processamento e comercialização da amêndoa da castanha de caju. O equipamento permitiu que os produtores passassem a beneficiar a castanha, em vez de simplesmente vendê-la in natura. Com isso elevaram seus ganhos de cerca de R$ 1,60/kg para US$ 4/kg para exportação. E ainda se mostraram mais eficientes que o processo da indústria mecanizada, aumentando em cerca de 20% a produtividade na obtenção de castanhas inteiras, pós-beneficiamento.
“A tecnologia social funciona de um modo completamente diferente da abordagem das grandes empresas para a base da pirâmide. Na busca por maiores mercados, elas produzem bens e serviços mais apropriados para esse público, mas as comunidades não têm nenhum controle sobre eles. Nas tecnologias sociais, a base está produzindo conhecimento para ela mesma, com autonomia”, explica Barbieri.
Atração de políticas públicas Outros desafios ainda maiores são conseguir aumentar os recursos para a replicação das tecnologias bem-sucedidas e fazer com que elas se tornem objeto de políticas públicas. O aporte financeiro, de certo modo, vem ocorrendo. Quando a RTS surgiu, havia uma meta entre os mantenedores de investir cerca de R$ 16 milhões ao longo de quatro anos. Nesse período, no entanto, não só o investimento de cada um deles foi maior como também cresceu a quantidade de mantenedores, de modo que hoje contam-se cerca de R$ 230 milhões destinados a esse fim. “Mas ainda é muito pouco, considerando-se o tamanho do País”, afirma Larissa.
A parte das políticas públicas já é um pouco mais difícil. Mesmo o programa Um Milhão de Cisternas, proposto pela Articulação no Semi-Árido (ASA) e posteriormente encampado pelo governo federal no âmbito do Fome Zero, acabou perdendo um pouco de força nos últimos tempos. Ao ser lançado, em 2003, o plano era atingir a meta em cinco anos. Em 2007, o assunto foi retomado durante as negociações, para tentar interromper a greve de fome do bispo dom Luiz Flávio Cappio, em protesto contra a transposição do Rio São Francisco. Mas até o momento cumpriu-se somente 25% do prometido.
Para Rogério Miziara, analista da Fundação Banco do Brasil (FBB), que realiza a cada dois anos o Prêmio de Tecnologia Social, transformar essas tecnologias em políticas públicas é realmente o maior desafio. Surgindo elas estão, e cada vez mais, como se observa pelo aumento de inscrições no prêmio. Entre a primeira edição, em 2001, e a última, em 2007, cresceram 50%. Mas, se nem todas se tornam políticas, pelo menos trabalhos como o da RTS – que está criando um banco de dados de tecnologias para deixá-las acessíveis – e o da FBB acabam ajudando na replicação. Segundo Miziara, mesmo aquelas que não são premiadas conseguem se disseminar e angariar recursos após serem certificadas como uma tecnologia social.
“A necessidade e o problema geram essas tecnologias sociais. E elas propiciam às comunidades uma autossustentabilidade, agregando aspectos ambientais, econômicos e culturais que, juntos, contribuem para um país mais sustentável,” complementa.
Fora dos muros – Programa de formação em sustentabilidade vai aonde a demanda está
Na vanguarda da geração de conhecimento no localonde ele é mais necessário, a recém-nascida Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas), parceria do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) com a Natura, resolveu sair dos muros da instituição para desenvolver uma escola itinerante no foco dos problemas.
A escola, localizada em Nazaré Paulista, interior de São Paulo, há dois anos oferece um mestrado profissional em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável, o primeiro do gênero no país. Pela proposta, os alunos passam um ano no campus assistindo às aulas e depois mais um ano fazendo seu projeto. Mas isso exige do estudante disponibilidade de passar pelo menos um ano longe de casa e do trabalho.
Para tentar aumentar esse público, surgiu então a ideia de ir aonde a demanda está – no caso, Serra Grande, entre Ilhéus e Itacaré, no Sul da Bahia, região com remanescente da Mata Atlântica. Ali foi montado neste ano o projeto piloto com o apoio do Instituto Arapyaú, organização criada pelo empresário Guilherme Leal, um dos fundadores da Natura.
“Queremos formar uma massa crítica na região, onde os desafios de conservação são cada vez maiores. O produto final do mestrado não será uma tese, mas algo útil que possa ser usado no local”, afirma Suzana Pádua, presidente do IPÊ e umas das professoras do curso. A primeira turma tem doze alunos das mais diversas áreas, da saúde ao ramo hoteleiro, com conhecimento dos problemas da região.
“Estamos em um local com grande biodiversidade, com potencial de se tornar polo turístico e onde está estudada a criação de um porto e por onde passa a Rodovia BA-00. A meta é ter modelos e práticas que possibilitem o desenvolvimento sustentável do Sul da Bahia. Para isso é preciso criar competências ali”, complementa Anamaria Schindler, superintendente do Arapyaú
Índio quer multimídia
Nem só de museus e dos anais da antropologia vive a memória da cultura indígena. Para quem deseja se aprofundar no assunto, há na web pelo menos duas ótimas opções que misturam arte e registro, e, o melhor, fruto da criação dos protagonistas.
O Programa de índio, primeira experiência radiofônica dos indígenas no Brasil, que foi ao ar na Rádio USP nos anos 80, está com arquivos digitalizados no site programadeindio.org. O acervo tem 200 programas que marcam passagens históricas do movimento indígena no Brasil, além de iluminar a trajetória de outros povos nativos no mundo, como os Ainu, do Japão. A iniciativa é da Ikor – Projetos Culturais e Artísticos em parceria com o Núcleo de Cultura Indígena, da USP.
O projeto Vídeo nas Aldeias foi fundado em 1987 pelo cineasta Vincent Carelli, que realizou o primeiro registro em vídeo dos Nambikwara. De lá pra cá, o projeto se tornou ONG e centro de formação em audiovisual para povos indígenas.
No site videonasaldeias.org.br é possível assistir aos trailers de uma coleção de 70 filmes, envolvendo dezoito etnias. Metade do acervo foi dirigida pelos próprios índios. Por meio do site também se pode encomendar os vídeos na íntegra em DVD, em sua maioria, curtametragens.
* colectânea de trabalhos sobre "Conhecimento", publicado na edição nº30 da Página 22 em Maio de 2009
0 comentários:
Postar um comentário