Niède Guidon encontrou ossadas humanas preciosas, criou um parque arqueológico numa terra inóspita do Brasil e deu trabalho às suas gentes, enquanto Amabélia Rodrigues quebrou na Guiné-Bissau o mito de que as crianças com febre têm paludismo.
Ambas são cientistas e as suas histórias são narradas no livro "Vidas a Descobrir - Mulheres Cientistas do Mundo Lusófono" – lançado no mês de Julho, em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian – que reúne reportagens sobre dez investigadoras de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Timor-Leste ficou de fora, por impossibilidade de cumprimento dos prazos de publicação do texto, conforme justificou a coordenadora da obra, Joana Barros, ela própria investigadora doutorada em Biologia Celular e Molecular do Cancro pela Universidade de Londres, no Reino Unido, e membro da Associação Viver a Ciência, que promove a divulgação científica em Portugal.
As reportagens foram realizadas por uma escritora angolana e por seis jornalistas portugueses, brasileiros e angolanos, incluindo quatro da Agência Lusa - Ana Sousa Dias (editora da Cultura), Carla Mendes e Marco Antinossi (correspondentes no Brasil) e Marisa Serafim (delegada na Guiné-Bissau).
A escolha das entrevistadas foi um processo "difícil" que obrigou a um trabalho intenso de pesquisa, conta Joana Barros, que, na selecção, teve em consideração a "excelência científica", a diversidade de casos e gerações de investigadoras do mundo lusófono, que "tem pouca visibilidade".
Em "Vidas a Descobrir", a Ciência "cruza-se com os percursos de vida" das investigadoras e com "os percursos dos países" onde nasceram, descreve.
O livro mostra como, através dos seus contributos científicos, elas "ajudaram os seus países" e acaba com "a imagem do cientista homem, branco", acrescenta Joana Barros, enaltecendo o empenho destas mulheres num universo ainda machista e a sua capacidade para superarem dificuldades.
A arqueóloga brasileira Niède Guidon escavou, na década de 70, cerca de 1200 metros cúbicos de terra na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, no Estado do Piauí, no Nordeste brasileiro.
Na região, encontrou as provas da mais antiga presença humana nas Américas e fundou o Parque Nacional da Serra da Capivara, que concentra mais de 1300 sítios arqueológicos além da Toca do Boqueirão, sendo o maior do género no mundo.
Além das pinturas rupestres a descoberto, as escavações revelaram artefactos como uma ponta de flecha pré-histórica feita de cristal quartzo e uma rara mandíbula humana com 13 mil anos, que estão expostos no Museu do Homem Americano, em São Raimundo Nonato, o mais completo e moderno da América do Sul, assinala o livro.
Em redor do parque, que agrega ainda as serras Talhada, Vermelha e Branca e é Património da Humanidade, funciona uma fábrica de cerâmica, onde a pintura das peças é feita à mão com óxido de ferro, a mesma tinta usada pelo homem pré-histórico.
Por outro lado, algumas zonas onde a erosão destruiu a vegetação foram reflorestadas, tendo sido criada uma exploração de mel, que tornou a região do Piauí o maior exportador deste alimento do Nordeste do Brasil.
Nomeada em 2005 para o Prémio Nobel da Paz, Niède Guidon, que tem mais de 75 anos, sobreviveu a 200 picadas de abelhas quando explorava o sítio Sumidouro do Sansão e enfrentou ameaças de morte por ser uma voz incómoda que defende o parque contra interesses instalados.
Já com o Projecto Saúde Bandim, a epidemiologista guineense Amabélia Rodrigues descobriu, nas consultas de pediatria em Bissau, que muitas crianças que apareciam com febre não estavam infectadas com o agente do paludismo, como se pensava, e podiam morrer da doença que realmente tinham, por falta do tratamento adequado.
Esta descoberta é muito importante para um país como a Guiné-Bissau, um dos cinco mais pobres do planeta, já que o dinheiro gasto nos antipalúdicos, medicamentos muito caros, poderia ser aproveitado, por exemplo, em meios de diagnóstico eficazes.
Às histórias de Niède e Amabélia junta-se a da portuguesa Cláudia Sousa, de 34 anos, que se meteu num autocarro até Paris, França, para falar, nos intervalos de palestras, com um especialista japonês que lhe abriu as portas para a investigação, no Japão e na Guiné-Conacri sobre as capacidades cognitivas dos chimpazés.
Há também o relato da astrofísica brasileira Thaísa Storchi Bergmann, de 53 anos, que, para não perder um turno de observação, dava de mamar ao filho mais novo no Observatório de Cerro Tololo, no Chile.
"Culpo-me, às vezes, por não ter dado atenção suficiente aos meus filhos, como outras mães", confessou, via correio electrónico, a investigadora, que, para observar galáxias a partir do telescópio brasileiro do Pico dos Dias, teve de passar "horas seguidas" ao frio e conduzir "uma camioneta muito rudimentar por uma estrada muito ruim".
Contudo, "creio que ajudei a mostrar ao mundo que, no Brasil, se faz Ciência de boa qualidade", sustentou Thaísa Storchi Bergmann, que registou, pela primeira vez numa galáxia próxima da Terra, o disco de acreção - nuvem de gás quente achatada - que confirma a existência de um buraco negro de grande massa.
"Acreditar que é possível fazer, ter capacidade intelectual, persistência e o suporte da família são, para mim, a chave do sucesso de um percurso profissional tão absorvente quanto é o de ser investigador", assinala, por sua vez, a engenheira química Anabela Leitão, a primeira angolana doutorada após a Independência que evitou, em 1975, o fecho da Faculdade de Engenharia de Luanda e hoje se debate com a falta de apoios para a compra de equipamentos e reagentes.
Precisamente a falta de dinheiro levou a são-tomense Maria de Jesus Trovoada, de 47 anos e doutorada em Antropologia Biológica, a trabalhar em cantinas universitárias e a dar explicações enquanto prosseguia as suas investigações com dois filhos a seu cargo.
Agora, estuda os factores genéticos que podem confirmar ou não a resistência ao paludismo na população da Ilha do Príncipe.
publicado em O Expresso
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