por Carolina Derivi
Em um belo dia dos anos 60, algum general no comando da ditadura brasileira teve uma ideia que parecia brilhante, simples e muito razoável: “Uma terra sem homens para homens sem terra”. A terra em questão era quase a metade do território brasileiro, a Amazônia selvagem. Em tempos de democracia zero, e menos ainda de precaução ecológica, a ordem era desenvolver na receita tradicional: estradas, fazendas, hidrelétricas e muita gente para povoar. Em 50 anos, a população na Amazônia legal saltou de 4 milhões para 24 milhões. Estava plantada a semente do caos fundiário que hoje atormenta, uma a uma, as gestões que se sucedem nos governos democráticos.
Durante décadas, o governo estimulou, sem nenhum ordenamento, a ocupação da Amazônia, registrando documentos de posse baseados na simples declaração dos ocupantes. Bastava adentrar um cartório e dizer: “Daqui até ali é tudo meu”. E pronto. Até ontem – mais especificamente até 2003 – o próprio Ibama aceitava as declarações de posse para elaboração de planos de manejo.
Se considerarmos que a intenção do governo militar era de fato boa, ou seja, desenvolver o País, é uma trágica ironia que, nos dias de hoje, a receita tenha se transformado em seu avesso. Desatar o nó fundiário na Amazônia não é simplesmente uma questão ambiental, tampouco, apenas de justiça social, traduzida no esforço de conter a violência no campo. É uma questão de desenvolvimento.
Um dos maiores economistas de nosso tempo, o peruano Hernando de Soto, ganhou notoriedade com seu estudo sobre como o respeito à propriedade privada pode alavancar o desenvolvimento das nações, sobretudo as nações mais pobres. Formalizar a propriedade, terras e moradias, é gerar ativos injetáveis na economia, na forma de bens e impostos. É como criar o capital.
O professor da Universidade de São Paulo e doutor em economia Decio Zylbersztajn está desenvolvendo um artigo que, de certa forma, aproveita a idéia de Soto no contexto amazônico, com olhar mais aprofundado nas atividades produtivas. Seu foco são os custos transacionais, que ele define de maneira muito simples: “São os custos em que a pessoa incorre para proteger e garantir o seu direito de propriedade. Um exemplo claro é o guarda que eu contrato para proteger a minha casa. Sem a presença do Estado, recai sobre a empresa um custo enorme para tentar proteger a propriedade e o direito de produzir”.
O lado nefasto dessa lógica é que os custos transacionais não recaem da mesma forma sobre todas as atividades produtivas. As que se pretendem sustentáveis – por definição, legalizadas e de longo prazo – sofrem muito mais. Um grileiro que se apropria do patrimônio público elimina, de imediato, o custo da terra, sem falar nos encargos fiscais e ambientais. Mais do que isso, a lógica incentiva a apropriação constante de mais terra por meio de mais desmatamento. “Se a terra é abundante e gratuita, por que eu vou investir em aumentar a produtividade da minha propriedade, quando eu posso simplesmente expandir o território?”, argumenta o pesquisador do Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon), Paulo Barreto.
Essa realidade também se insere em uma teoria que ficou famosa pelo ensaio do ecologista Garrett Hardin, intitulado “A tragédia dos comuns”, publicado na revista Science em 1968. Hardin explora a alegoria de uma comunidade de criadores de ovelha que, atuando em uma propriedade sem dono definido, acaba por esgotar os recursos naturais.
“A menos que a comunidade consiga criar regras próprias, o recurso se deteriora. Foi o que fizeram os portugueses quando quase aniquilaram o pau-brasil e a Mata Atlântica. É o que acontece hoje com a pesca, que em alguns lugares se aproxima do esgotamento”, exemplifica Zylbersztajn. A conclusão do professor é que, mais do que títulos de propriedade, a Amazônia precisa de enforcement para prevenir situações como a que se passa em Raposa-Serra do Sol. Mesmo reconhecida desde o governo Collor, até hoje a terra indígena é alvo de disputa.
Pente-fino
Se o leitor chegou até aqui, um alerta: entender o caos fundiário na Amazônia não é para os fracos de coração – ou de mente. O quadro que se apresenta é como um jogo de varetas, ou um castelo de cartas. Mexer em uma das peças é alterar todas as demais e, possivelmente, fazer ruir todo o sistema. Pode-se tomar como exemplo o recente pacote anunciado pelo Incra para destravar de uma vez por todas a regularização fundiária.
Em três anos, o instituto promete regularizar 296 mil posses na Amazônia Legal, o que equivale a 67,4 milhões de hectares. A ideia aqui é simplificar e acelerar um processo que, pelas regras atuais, segundo o Incra, pode demorar até cinco anos.
Depois que as novas regras forem institucionalizadas por projeto de lei ou medida provisória – o governo ainda não decidiu-, propriedades menores, de até 100 hectares, serão doadas irrestritamente aos seus ocupantes. As que chegarem até 400 hectares serão vendidas para os posseiros a preço simbólico. As demais devem ser vendidas a preço de mercado e somente as terras que ultrapassarem 15 módulos fiscais – no máximo 1.500 hectares – serão repassadas mediante licitação pública.
As principais ONGs ambientalistas do País apressaram-se em denunciar o vício oculto no pacote: corre-se o risco de legitimar o crime de grilagem com a doação de terras e, com tanta facilidade para regularizar, as medidas podem inclusive estimular novas apropriações de terras públicas.
Em manifesto conjunto distribuído à imprensa, nove entidades afirmaram: “Entendemos que, embora a regularização fundiária seja importante, ela não é um objetivo em si. Ela deve ser uma ferramenta a serviço de uma estratégia de ordenamento fundiário para a região, a qual deve levar em consideração sua história, suas vocações, necessidades e limitações”.
Então, qual é a saída para acelerar sem barbarizar? Paulo Barreto acredita que tem a resposta: “A União cobrar preço de mercado por todas as terras públicas ocupadas. E cobrar à vista”. Dessa forma, acredita o pesquisador, o governo passaria a mensagem de que não compensa invadir terras públicas, já que a conta virá mais cedo ou mais tarde. Além disso, arrecadaria recursos para ajudar a custear toda a operação.
A canetada e o conflito
A expectativa histórica de regularização fácil está na raiz da disputa por terras na Amazônia e toda a violência que acarreta. É fenômeno patente da região as corridas regulares pela terra, sempre que se anuncia um investimento, uma estrada, uma fábrica, um campo de mineração. Vale a lei do mais forte. Na mesma lógica da terra abundante e gratuita, prosperam os latifúndios e a pecuária extensiva, apontada como principal vetor do desmatamento.
Barreto diz que esse é um agravante da violência no contexto da reforma agrária. Segundo o pesquisador, grupos organizados como o MST têm ainda mais motivação para tomar latifúndios amazônicos, já que, tipicamente, essas terras não têm titulação, ou têm documentos falsos.
Outro sintoma são os tradicionais recadastramentos rurais promovidos pelo governo. De tempos em tempos, a medida busca forçar posseiros a legalizar suas terras, sob pena de cancelamento do Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR). No estudo Quem é Dono da Amazônia, pesquisadores do Imazon concluíram que a iniciativa encontra posseiros cada vez mais organizados e empoderados politicamente, que resistem às exigências.
Os resultados dos recadastramentos costumam ser pífios. O último, em 2008, visava regularizar não só a situação fundiária, mas também a situação ambiental nos 36 municípios que mais desmatam na Amazônia. Terminou com apenas 20% de adesão.
O buraco é mais em baixo
O ex-governador do Acre, Jorge Viana, apresenta uma visão um pouco mais radical sobre todo esse nó. Para ele, a regularização fundiária é necessária, mas está longe de ser essencial: “Enquanto o foco for a terra, nós vamos continuar tendo o mesmo problema. O foco deveria ser o que está abaixo e acima, ou seja, os recursos naturais”. Isso significa priorizar o Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE), de modo a definir as áreas prioritárias para conservação e para as demais atividades produtivas.
Aí entram também as famosas terras degradadas na Amazônia. São 160 mil quilômetros quadrados de terras abandonadas E semiabandonadas que, direcionadas para o agronegócio, poderiam poupar o sacrifício de qualquer árvore a mais. “Se o pressuposto for a propriedade, o dono fica autorizado a desmatar até 20%. Abre-se a possibilidade de desmatamento legal em áreas onde antes não haveria”, diz Viana.
Por mais sensato que pareça, a ideia logo esbarra em mais um obstáculo. Para dispor de áreas florestais de maneira estratégica, o governo precisaria retirar posseiros, já que o mapa do ZEE certamente não coincide com o mapa das invasões. Mas fazer isso é quase uma missão impossível. As diversas interpretações jurídicas ao direito de posse dão margem a contestações que retardam os resultados (veja quadro abaixo).
“Todos os países que organizaram sua situação fundiária começaram pela legislação”, diz Barreto, “é preciso padronizar a lei, mas a confusão que se atingiu no Brasil é inédita no mundo.”
As dificuldades que se apresentaram aqui são apenas um pedaço do panorama fundiário na Amazônia. É tempo, portanto, de mencionar o maior e principal desafio: o consenso. Posseiros, ONGs, ruralistas, burocratas, governos… todos os atores envolvidos nessa equação parecem fortes o bastante para impedir, unilateralmente, o sucesso de qualquer medida. O passo decisivo em direção ao sucesso se dará em função do entendimento entre as partes.
O nó da terra – Mais da metade da Amazônia tem situação fundiária incerta
Apenas 4% da Amazônia Legal é composta de terras privadas com título regular e definitivo. As áreas públicas protegidas – unidades de conservação – correspondem a 43% do território. Estima-se que 32% sejam terras privadas ainda sem validação e 21% terras públicas ainda não destinadas. Conclusão: não se sabe ao certo a quem pertence mais da metade da Amazônia (53%), uma área equivalente a cerca de 1.575 municípios de São Paulo.
O nó jurídico – Padronizar a lei é ponto de partida para organizar o território
A legislação brasileira permite diversas interpretações sobre direito de posseiros e a perspectiva de o Estado reintegrar terras invadidas ao patrimônio público. Eis o quadro do que pode ocorrer:
- Posseiros têm o direito de permanecer na terra até que o Estado pague por suas “benfeitorias”, o que, na prática, significa desmatamento
- Posse de terra pública é detenção ilegal. Essa interpretação permite que a terra seja devolvida ao patrimônio público sem indenização ao posseiro, mas há juízes que condicionam o resultado final à análise da boa-fé ou má-fé por parte do ocupante.
- Ainda com base na tese de detenção ilegal, há juízes que entendem o desmatamento não como benfeitoria, mas como dano ao patrimônio público. Nesse caso é o posseiro quem deve ressarcir a União pelo dano e pelos lucros obtidos com a exploração de terra.
Agravantes: O Estado é responsável pela legitimidade dos registros públicos. Por isso um proprietário com documentos falsos pode alegar boa-fé e permanecer na terra.
Não há consenso sobre se a reintegração de posse pode ser efetivada por meio de processo administrativo (competência do Incra) ou processo judicial. A controvérsia pode levar anos na Justiça.
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