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Morreu Fernando Mascarenhas, 12º marquês de Fronteira e um mecenas da cultura

Posted: 12 de nov. de 2014 | Publicada por por AMC | Etiquetas: ,


Fernando Mascarenhas, presidente da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, morreu esta quarta-feira em Lisboa, aos 69 anos. A sua oposição ao regime do Estado Novo e, depois do 25 de Abril, o modo como colocou o património familiar ao serviço da cultura e das artes, tornavam o
marquês de Fronteira e conde da Torre, para citar apenas dois dos muitos títulos nobiliárquicos que representava, uma figura singular nos meios da alta aristocracia portuguesa.

Em 1989, instituiu a Fundação das Casas deFronteira e Alorna, usando o seu palácio seiscentista em Lisboa, mas também a sua vasta propriedade de Ponte de Sor – que integrou o antigo condado da Torre – para iniciativas culturais, científicas e educativas.
Culto, sofisticado e com reconhecido sentido de humor, considerava-se um homem de esquerda, mas sempre levou a sério a sua condição de herdeiro de uma boa dezena de títulos de nobreza, e fez questão de escrever um Sermão ao meu Sucessor – Notas para uma Ética da Sobrevivência,
destinado – uma vez que não teve filhos de nenhum dos seus doiscasamentos – a António Mascarenhas, filho do seu primo José Maria Mascarenhas.

Antes do 25 de Abril de 1974 chegou a ser alcunhado de "marquês vermelho" pela sua oposição ao fascismo, embora ele próprio diga numa entrevista que nunca foi de um vermelho muito vivo. Mas
promoveu reuniões clandestinas e conspirativas desde o final dos anos 60 no seu palácio de Benfica.

Uma delas, destinada a preparar a estratégia da oposição democrática nas eleições de 1969, foi mesmo interrompida pela polícia. Fernando Mascarenhas, numa entrevista a Cândida Santos Silva publicada no Expresso, conta que estavam presentes Jorge Sampaio, Vítor Neto, Vítor Wengorovius, Maria Barroso e António Reis, entre outros.

A sua actividade política nesses últimos anos antes do 25 de Abril era suficientemente notória para chegar a França, onde o L’Express brincava com o estatuto aristocrático do opositor e assinalava o
nascimento de uma corrente ideológica, o “marquesismo-leninismo”.


Ir à PIDE de Cadillac

A sua oposição ao regime, que o levou mesmo a ser chamado um par de vezes à sede da PIDE (polícia política) – gostava de contar que chegou ao edifício da Rua António Maria Cardoso num Cadillac guiado por motorista –, não o impediu, enquanto grande latifundiário que também era, de
sofrer alguns dissabores após o 25 de Abril. Viveu algum tempo fora do país, primeiro em Marrocos e depois em Londres, e chegou a pensar que o exílio poderia ser permanente.

Quando regressou, e como os rendimentos familiares vinham sobretudo da herdade alentejana, que foranacionalizada após o 25 de Abril, viu-se na contingência de ter de trabalhar. Licenciado em Filosofia, deu aulas durante alguns anos naUniversidade de Évora.


Quer as suas inclinações políticas, quer os seus interesses culturais, dever-se-ão pouco ao pai, um homem que competia em corridas de automóveis e pegava touros de caras, e que se divorciou da mãe de Fernando Mascarenhas quando este tinha dois anos. E quando morreu, o filho tinha apenas onze anos. A figura que verdadeiramente o marcou nesses anos de formação, disse ao PÚBLICO o
historiador e olissipógrafo José Sarmento de Matos, “foi o seu padrasto, o arquitecto Frederico George, que era uma figura fantástica, de grande categoria, e um homem muito ligado aos meios da oposição”.

O historiador, que conheceu Fernando Mascarenhas aos quatro anos e foi seu
condiscípulo no colégio, realça a sua “grande cultura” e “sentido de
responsabilidade”, e diz que o amigo “é uma dessas pessoas que vai mesmo
fazer falta”. Sarmento de Matos recomenda que se divulgue a
carta/sermão que dirigiu ao seu sucessor, um texto “muito bonito” e que
crê resumir bem o modo como o marquês de Fronteira achava que devia
lidar com o seu estatuto e património.

“O verdadeiro aristocrata tem consciência de que tem uma história atrás de si e é essa própria
consciência da história que tem atrás de si que o faz ter uma
consciência igualmente clara de que também tem uma história à sua
frente”, escreve Fernando Mascarenhas no seu Sermão, no qual deixa ainda
este conselho ao seu herdeiro: “Sê primeiro um homem e, depois, só
depois, mas logo depois, um aristocrata”.

Jogos e jóias

Em consequência do divórcio dos pais, Fernando Mascarenhas viveu boa parte
da sua infância com os seus avós maternos, que tinham casa na Rua da
Emenda, em Lisboa, e só ia ao palácio de Fronteira visitar o pai ou
festejar os seus anos. É após a morte do pai que se muda com a mãe para o
palácio de Benfica. “Não é um amor de juventude: as minhas relações
emocionais são mais com a casa da herdade [de Ponte de Sor] do que com
esta casa de Benfica”, contará ao PÚBLICO em 2011.

É já em adulto que começa a interessar-se verdadeiramente pelo palácio, acabando por se
tornar um especialista na história da casa e respectivo património.

Num sintético auto-retrato que traçou apara acompanhar uma entrevista que
lhe foi feita por Paula Moura Pinheiro, Fernando Mascarenhas diz que é
“cristão por educação e agnóstico por ignorância”, que o seu defeito
mais tolerável é “a preguiça” e que o seu passatempo é jogar Civilization,
um célebre jogo de computador criado por Sid Meyer. E enumera algumas
preferências estéticas, como o David, de Miguel Ângelo, na escultura, ou
o romance Guerra e Paz, de Tolstoi, na literatura. Mas também
os livros de Mário de Carvalho e, na poesia portuguesa, Camões, Fernando
Pessoa ou Luís Filipe Castro Mendes.

Apreciador do convívio e da conversa, o país pôde conhecê-lo efemeramente nessa condição de
anfitrião de tertúlias culturais através do programa televisivo Travessa
do Cotovelo, que durante algum tempo moderou na RTP.

Nos últimos anos, vinha-se dedicando à manufactura de jóias, um hobby
que acabou por levar bastante a sério, tendo mesmo chegado a organizar
algumas exposições das suas obras no palácio de Fronteira.

O secretário de Estado da Cultura lamentou já a morte de Fernando
Mascarenhas, realçando a sua contribuição, “antes e depois do 25 de
Abril de 1974, para o fortalecimento da liberdade de expressão e para a
consolidação da cidadania”. Jorge Barreto Xavier sublinha ainda a sua
“acção ímpar em prol das artes, da filosofia e da literatura”.

Segundo informações da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna à Lusa, que não
adiantam a causa da morte, o velório de Fernando de Mascarenhas
realiza-se esta quarta-feira no palácio de Fronteira e o seu funeral
terá lugar na quinta-feira à tarde. Após a celebração de uma missa de
corpo presente, o funeral seguirá às 16h30 para o Crematório do
Cemitério dos Olivais. link

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Entrevista de Maria João Seixas a Fernando Mascarenhas

Entrevista da edição de 3 de Dezembro de 2000 da Pública no âmbito da rúbrica "Conversa com vista para..." de Maria João Seixas.

Há quase 40 anos que vivo em permanente “conversa com vista para”
Fernando Mascarenhas. Ele faz parte integrante do “tal” balanço da minha
vida. Por pudor, que a mais terna e cúmplice intimidade bem consente,
entendi que a habitual introdução a estas Conversas fosse feita, não por
mim, mas pelas próprias e muito reveladoras palavras do meu Conversado
de hoje. Ele que, por mérito, esforço e dedicação é o meu Aristos!

Fernando, tu que és Representante das
Casas de Fronteira, Alorna e Távora; Donatário da Mordomia-Mór da cidade
de Faro e de Fronteira; Coculim e Verodá; Assumar; Mogadouro, Paredes,
Penela, Cevadeira, Ordea, Camudaes, Paradela, Távora, Valença e
Castanheiro; Mouta; com Escudo pleno de Mascarenhas e tratamento de Dom;
com Representação genealógica dos títulos de Conde de S. João da
Pesqueira, Conde de Alvor e Marquês de Távora e a Representação
Portuguesa do título de Conde de Oeynhausen-Gravenburg; Conde da Torre,
Coculim e Assumar; Marquês de Fronteira, Alorna e Aracaty, diz-me quem
és.

Fartei-me de pensar na resposta a essa pergunta. Tinha
tantas respostas que era capaz de esgotar a entrevista… A primeira coisa
que pensei é que sou um sentimental, que usou a inteligência em si
próprio para conseguir sobreviver a essa condição. Depois, sei lá… Há em
mim um grande sentido de justiça. E não me parece que venha do lado da
educação que recebi. Eu diria que, a partir da adolescência, esse
sentido de justiça passou a ser espontâneo em mim e resultado da minha
própria experiência.
Foste desenvolvendo esse sentido de justiça por uma necessidade social ou mais pessoal?
Inicialmente
terá vindo de uma exigência de justiça em relação a mim. Chocava-me
imenso quando alguém era injusto comigo. Depois, por um longo processo
de auto-análise que fiz e que me ajudou a compreender-me melhor, a mim e
também aos outros, esse sentido projectou-se para fora, para os outros.
Ter a noção de que tinha nascido nobre era de algum modo um privilégio
(que hoje em dia, felizmente, não se traduz em nada de concreto), mas
tinha que dele dar conta ao exterior. Não me ilibava de nada.




Conta-me a tua interpretação de nobreza.

dois sentidos da palavra nobreza: a nobreza como substantivo e a
nobreza como adjectivo. Todas as pessoas, qualquer que seja a sua
condição social, podem ser nobres, sem que os seus avós tenham
pertencido à classe da nobreza. Idealmente, os dois sentidos tendem a
coincidir. Idealmente, numa sociedade ideal, as pessoas nobres de alma e
de carácter deviam ser nobilitadas. Fui educado a saber a história que
carregava no meu nome e tive que aprender a conhecê-la bem, a merecê-la,
sem que, por isso, me sentisse senhor de quaisquer prerrogativas
especiais. Em miúdo, tinha o pior lado dos “nobres”, era arrogante com
as criadas, insuportável. A minha mãe teve um papel muito positivo na
minha formação, porque contrariou desde muito cedo essa minha tendência.
Obrigava-me, em muitas situações, a dobrar a espinha. Depois, na
adolescência, atravessei uma fase muito difícil, pus tudo em causa, tive
grandes quebras em relação à infância. A morte do meu pai, por volta
dos meus 11 anos, foi também importante, no sentido em que me afastou do
meio social em que até aí tinha vivido. Nesse tempo fazia-se luto a
sério — seis meses de luto pesado, seis meses de luto aliviado — e isso
criou uma distância com o meio onde tinha passado a infância. Quando
esse período passou, não voltei a recuperar os laços antigos. Passei a
virar-me mais para mim mesmo, a reflectir muito sobre mim. Mais tarde,
os três anos de psicanálise aprofundaram essa reflexão e ajudaram-me a
ser mais tolerante, a perceber que as pessoas estão cheias de falhas, eu
tenho imensas falhas… Como sou optimista, acho que as pessoas quando
não se portam bem é porque não se podem portar melhor, não têm essa
possibilidade.

Esse teu sentido de tolerância não se pode, por vezes, confundir com alguma indiferença?
Vamos
pegar pelo lado contrário — a minha capacidade de compreensão aliada ao
desejo, irrealizável, de emendar o mundo, pode ter gerado a necessidade
de alguma indiferença. Disse-te ao princípio que sou um sentimental e
que tive que criar resistências para poder sobreviver e deixar os outros
viver ao pé de mim. São formas de protecção que, admito, podem ser
interpretadas como indiferença.

Ainda sentes o impulso sentimental e a necessidade de o controlar?
A
necessidade de o controlar, hoje em dia, está praticamente
automatizada, embora eu consiga reduzir as defesas e, em certos casos,
chegar mesmo a anulá-las. Ninguém me aguenta sem defesas. Fico de uma
pieguice tal que chego a ser inaturável. Mas consigo regular as tais
defesas, sobretudo se se trata de uma relação afectiva importante.

Ainda consegues ser espontâneo?
Consigo.
Comovo-me com imensa facilidade com gestos bonitos, gestos nobres, lá
está!, com cenas de filmes que vejo na televisão (sou um espectador
óptimo!)… Mas nada disto se compara com a forma como reagia quando era
adolescente. Felizmente, porque a continuar como era não tinha sequer
sobrevivido.

O teu pai, cuja morte marcou em ti uma
viragem de vida, é um modelo referente, ou tiveste que o “matar”
interiormente para ensaiares um percurso novo e diferente daquele que te
tinha sido destinado?

O meu pai, mesmo em vida, foi sempre
uma figura ausente. Via-o muito pouco. Vinha almoçar com ele ao Palácio
no dia dos meus anos, víamo-nos no Natal, nos anos dele, pouco mais. Um
ano antes da sua morte, passámos a almoçar de 15 em 15 dias, com o meu
tio António e o meu primo Zé Maria. Como toda a gente me contava
permanentemente histórias fantásticas do meu pai, o Grand Seigneur
, o extraordinário desportista, etc… isso contribuiu para que, no meu
imaginário, fosse um herói. Por outro lado, as más relações entre os
meus pais, que os levaram a separar-se, as discussões emocionais cujos
ecos me chegavam aos ouvidos, por mais que me mandassem brincar para o
jardim ou me afastassem da sala do telefone, fizeram-me jurar que nunca
me comportaria com uma mulher como o meu pai se comportou com a minha
mãe. Nesse aspecto foi, negativamente, um ponto de referência
fundamental.

És capaz de me enumerar, por ordem de antiguidade, os teus títulos, os títulos que herdaste do teu pai?
O
mais antigo é o título de Conde de S. João da Pesqueira, que está
extinto e é de 1611. Foi extinto na altura da tragédia que se abateu
sobre os Távoras, juntamente com o de Marquês de Távora, que é de 1669, e
o de Conde de Alvor. O título de Conde da Torre é de 1638, o de Marquês
de Fronteira é de 1670. Não sei de cor a data do de Conde de Assumar e o
de Marquês de Alorna, se não estou em erro, é de 1744. Há ainda o
título alemão de Conde de Oeynhausen. Não me lembro de quando data, mas o
meu 5º avô não era Senhor de Casa, tinha apenas a representação
portuguesa do título. O funcionamento dos títulos alemães é diferente do
português. Ah, estava a esquecer-me de outro título, da Índia (como o
de Marquês de Alorna), o de Conde de Cocolim ou de Concolim (tenho visto
estas diferentes grafias), que é do século XVII.

Do ponto de vista intelectual e afectivo, qual é o título de que mais gostas?
Não
sei, nunca pensei nisso. É evidente que o de Marquês de Alorna, por
causa da Alcipe, é um título que tem uma graça especial mas, por outro
lado, o 1º Marquês de Fronteira foi o construtor desta casa, o que tem
muito significado para mim. E há também o título de Conde da Torre, que é
um título de “juro e herdade”, não precisa de ser renovado, precisa
apenas de ser autorizado o seu uso, enquanto os outros precisavam de
renovação, porque são títulos dados por uma ou duas vidas. Mas, pensando
melhor, os títulos extintos têm o gosto do fruto proibido, daquilo que
se tem (por representação genealógica) e não se chega a ter, sendo que a
antiguidade dos Távoras impõe, só por si, um particular respeito.

Cocolim, Alorna…a Índia está no teu imaginário como um território a visitar?
Está
e quero muito lá ir. O que me tem atrasado é a distância, as viagens
longas assustam-me, são-me muito penosas, desconfortáveis. Fizemos há
tempos um Encontro sobre Portugal e a Índia, em colaboração com a
Fundação Oriente. Numa das sessões, à noite, o Grupo de Danças e
Cantares de Goa veio cá dançar e cantar. Depois de os ouvir, a Índia, e
Goa em particular, passou a ter um atractivo especial e comecei a sentir
aquele país como “coisa” real, muito mais próxima. Fiquei rendido.

Quando é que te aproximaste da Alcipe, 4ª Marquesa de Alorna e tua 5ª avó?
A
Alcipe foi uma figura que esteve sempre presente no meu imaginário.
Desde a adolescência, talvez mesmo antes. Para dizer a verdade, a ideia
que tinha dela, até muito recentemente, é que era uma chata. Os poemas
que se liam da Alcipe nos manuais escolares eram muito arcádicos, cheios
de complicadíssimas referências mitológicas. Em 1989, quando celebrámos
os 150 anos da sua morte, aqui na Fundação das Casas de Fronteira e
Alorna, fizemos um Encontro e um Recital de Poesia e eu próprio li
alguns poemas que me surpreenderam. De uma fase que podemos considerar
de proto-romântica, muito mais interessante, muito mais próxima da nossa
sensibilidade.

A poetisa Alcipe, a mulher de letras e de
cultura seduziu-te a sério, finalmente. Como mulher da família, a 4ª
Marquesa de Alorna é agora uma personagem que te interessa cada vez
mais?

Cada vez mais. E… a Alcipe não devia regular lá muito
bem da cabeça, devo dizer-te. Mas era uma mulher fascinante. Estava
completamente fora dos cânones, dentro do seu meio e do seu tempo e era,
de certo modo, uma marginal, o que a torna muito atraente. Devia ser
dificílima de aturar. Viveu muito tempo no estrangeiro, em Viena
primeiro, quando o marido foi lá Embaixador, embora no contrato de
casamento com o Conde de Oeynhausen o pai tivesse incluído uma cláusula
que o comprometia a nunca levar a filha para fora do país. Mas ela, que
não queria outra coisa que não fosse ir conhecer de perto o que só
conhecia dos livros, trabalhou bem a Côrte, que estava na altura em
Salvaterra de Magos, e lá conseguiu que o nomeassem Ministro
Plenipotenciário de Portugal em Viena. Viveu cerca de três anos na
Áustria. Depois, apesar de o marido continuar como representante de
Portugal em Viena, ela foi viver para o sul de França, em plena
Revolução Francesa. Tinha ficado muito decepcionada com a frivolidade de
Paris! Do que se conhece, há algumas referências à Revolução nas cartas
desse período. Mas poucas. Regressa a Portugal, entretanto o marido
morre e em 1802 parte para o exílio. Ainda está por apurar se foi
forçada, se partiu voluntariamente. Passa uns meses em Espanha, com a
intenção, diz ela, de ir à Alemanha tratar das coisas do filho. Com o
avanço dos exércitos napoleónicos, as coisas complicaram-se e
impossibilitaram a viagem até à Alemanha. Acabou por ir para Inglaterra,
onde ficou até 1814, regressando depois a Portugal. A Alcipe tinha uma
aversão enorme a Napoleão. Há, na Torre do Tombo, um rascunho de uma
carta dela a Napoleão, a insultá-lo de tudo quanto há. Como era muito
sentenciosa e tinha opiniões sobre tudo, chegou a insistir com o Governo
português que era preciso fomentar a revolta no interior da França para
derrubar Napoleão, apoiando os royalistes. Em Inglaterra
deu-se pessimamente com o Embaixador português, D. Domingos de Sousa
Coutinho, a quem ela chamava, ironicamente, o “DD”. Com o sucessor do
“DD”, o futuro Duque de Palmela, deu-se, pelo contrário, lindamente. Mas
foram longos e penosos os meses de espera, já o novo Embaixador estava
em Londres e o antecessor nunca mais se ia embora!

Como era o nome completo da tua 5ª avó e porquê o pseudónimo Alcipe?
Chamava-se
D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lancastre. Há uma série de
Leonores na família. Do lado Távora são quase todas Leonor. A mãe da
Alcipe era Leonor, a Marquesa de Távora, que foi decapitada, era Leonor…
Alcipe é uma figura mitológica, era filha de Aglauro e de Marte e tinha
sido violada por não sei quem. Foi Filinto Elíseo quem lhe deu esse
nome. E ele, que era só Filinto, recebeu de Alcipe o sobrenome de
Elíseo.

O lado de pioneira na defesa dos direitos das mulheres é ainda pouco conhecido entre nós.
A
Alcipe está para ser mais e melhor conhecida. Mas nesse aspecto que
referiste foi uma fantástica percursora. Era uma revoltada, sobretudo
quanto à falta de educação e de instrução das mulheres. Os homens da
nobreza da época já não eram muito cultos. É curioso que, no século
XVII, os nobres portugueses eram, de uma maneira geral, cultos mas, no
século XVIII, a grande maioria era ignorante. No entanto, a família
Alorna era, segundo me dizem, uma excepção. Mas a Alcipe começa a
escrever cedo porque, não tendo nada que fazer para além das obrigações
religiosas e não podendo ler tudo o que queria, por proibição do pai,
mergulhou na escrita como espaço de liberdade e de expressão própria. Um
ano ou dois antes de morrer, recebeu um Diploma de uma “Société
Universelle de Civilisation” e, quando agradeceu, disse “Talvez graças
aos vossos esforços, a mulher acabe por se tornar na outra metade do
género humano!”

Uma das tuas especialidades, segundo o que
dizes, é o conhecimento desta casa, deste Palácio. Esse facto liga-te
mais particularmente ao 1º Marquês de Fronteira, o teu antepassado que a
mandou construir?

Conheço pouco da sua vida. Ainda não
cheguei lá. Mas é evidente que o Palácio, casa onde vivo há muitos anos,
que esteve sempre nas mãos da família e que conheço muito, muito bem,
torna extremamente fascinante a figura do 1º Marquês. Tenho que o
conhecer melhor.

As paredes, os frescos, os azulejos, os
caminhos dos jardins, os móveis deste Palácio, devolvem-te de alguma
maneira a imagem e o percurso dos teus antepassados? Sentes neles,
diariamente, a história da tua família?

Assim como puseste a
questão, não. Mas, às vezes, durante as sessões na Sala das Batalhas,
se fico virado para a representação equestre do 1º Marquês de Fronteira,
converso com ele. E com outros também, quando passo por quadros que os
representam e me ponho a olhar para eles…

Tens algum lugar de eleição na casa? Um sítio onde reconheças uma vibração especial?
O
terraço é o meu sítio favorito. Acho que é um espaço extraordinário,
com a mistura de elementos naturais e de elementos construídos, a
diversidade da escala dos azulejos — desde os painéis pequeníssimos e
muito brincalhões, malandros, aos painéis grandes e sérios… Todos esses
contrastes fazem do terraço um lugar de excepção.

E a Galeria dos Reis?
A
Galeria dos Reis é, evidentemente, uma espantosa peça de representação,
a imagem mais identificativa da casa. O que eu gosto na Galeria é que a
sua imponência tem uma escala humana que nunca a torna esmagadora. E
fascinam-me aqueles azulejos monocromáticos, todos azuis, que reflectem a
luz do dia em mil e um tons, fabulosos na sua variedade e beleza.

Descendo da Galeria dos Reis ao terreno da República em que vives, como é que vives a democracia?
A
real, a de hoje? Acho que lhe falta chispa. Está por inventar um
sistema melhor, eu sei. Também sei, como dizia Churchill, que é o menos
mau de todos os sistemas políticos. Mas já era tempo de se ter levado a
democracia mais longe, acho-a muito fechada numa lógica de poder
partidário, a funcionar a curto prazo, de campanha eleitoral em campanha
eleitoral. A vida de um país não se compadece com o “curto prazo”. E a
democracia, de facto, não favorece o “longo prazo”. Dito isto, não me
canso de repetir que tenho ido sempre votar. Já votei em branco, mas
nunca deixei de votar.

Passemos à Filosofia. O que é que procuravas no curso?
Para
começar, acho que os filósofos e os intelectuais em geral se tomam
muito a sério. Pessoalmente, tenho dificuldade em tomar as coisas tão a
sério. Costumo dizer que sou um intelectual de trazer por casa. Penso,
evidentemente, sobre a realidade, sobre as coisas que me rodeiam, sobre
mim mesmo, mas… Escolhi Filosofia essencialmente pelo desafio
intelectual, o que eu procurava no curso era um estímulo dessa ordem. E
considero que não me enganei de maneira nenhuma. Por outro lado, acho
que a Filosofia pode ser muito importante para a vida. Para mim, a
Filosofia ensinou-me e ensina-me a viver e é esse lado da disciplina que
me interessa.

Foram os gregos, mais do que outros
filósofos, que te deram essas pistas para a vida, para a interpretação
da realidade e para o teu relacionamento com o mundo?

Os
gregos, sim, foram e são decisivos. Depois Kant e o período do Idealismo
alemão, com excepção de Hegel, que me irrita um bocado. Mas o mais
importante é a atitude, o pensar sobre as coisas, o ter um pensamento
crítico sobre a realidade. Acontece-me muitas vezes querer inventar a
roda, que já está inventadíssima e que não tem nada que ser reinventada.
Mas, de facto, tenho constantemente a necessidade de repensar as coisas
por mim próprio. E o facto de as pensar por mim pode levar-me à
conclusão a que outros chegaram antes de mim, mas que aceito também como
uma conclusão minha. Não troco esta atitude por nada deste mundo, acho
que é um bem inestimável. Nenhum sistema é perfeito e os cépticos, nesse
aspecto, tinham alguma razão, se não nos deixarmos cair no negativismo
absoluto de não se fazer escolha nenhuma. As escolhas que a gente faz
devem ser interpretadas com relatividade, são as escolhas possíveis em
determinado momento. Faz-me espécie a Filosofia ter-se tornado, ou ter
procurado tornar-se numa disciplina quase científica, no sentido das
ciências puras, com verdades taxativas. O que tem graça na Filosofia,
para mim, é justamente o lado oposto a esse, o lado especulativo. Sei
que isso hoje está fora de moda. Pouco me importa. A Filosofia deveria,
por exemplo, especular mais sobre os limites da Ciência. Talvez se
esteja a fazer essa análise, eu é que a desconheço. Chego a pensar que,
hoje em dia, os filósofos mais interessantes, mais próximos do modo como
os pré-socráticos e Platão reflectiam, são exactamente os grandes
cientistas, os físicos, os biólogos…que trabalham nos limiares dessas
disciplinas. Ao modo defensivo como se passou a fazer Filosofia,
sobretudo depois dos enunciados da Fenomenologia, não acho muita graça.

Sobre
a Verdade, que sei que teimas em acreditar que existe, achas que os
poetas, entre todos os criadores, dão-nos dela as versões mais próximas?

Acho
que sim, porque têm a palavra como veículo de comunicação e, por vezes,
afloram esse mistério que nos fascina e inquieta e que é, justamente, a
Verdade. No conjunto das artes e da criação acho, no entanto, que a
música vai mais ao fundo desse mistério, mas só a podemos sentir. Sem a
palavra, não a podemos intelectualizar. Voltando à poesia, os poetas
portugueses, e os não-portugueses que escrevem em língua portuguesa,
criam o que de melhor, no género, se faz no mundo. Disso não tenho
dúvidas.

Gostaste da tua experiência televisiva no Travessa do Cotovelo?
Gostei
do lado de estar com pessoas à minha volta, conversar com elas,
ouvi-las. Acho que sou um bom ouvinte e as câmaras não me intimidam.
Gostei também de poder utilizar aquele meio para passar alguns dos meus
recados. O lado que menos gostei foi o espaço mental que o programa me
ocupava durante a semana. Não tanto com a preparação, mas com a prisão
que significava e com a preocupação constante com os convidados, se
podiam ou não estar presentes, se na semana a seguir iríamos conseguir
trazer quem queríamos.

Ficaste com o “bichinho”?
Fiquei. Fazia de bom grado outro programa. Noutros moldes. Mais livre.

És sensível às críticas?
Acho
a crítica essencial. Fico sempre a pensar nas críticas. Como, por outro
lado, reajo à primeira com grande emoção, infelizmente são poucas as
pessoas que mas fazem cara a cara.

Pensas na morte?
Penso.
Por muito que desejasse não morrer, sei que não sou imortal. Já me
assustou mais a ideia da morte. O que gostava, mas muito, era de saber
com antecedência quando é que se ia dar. Para poder fazer algumas
coisas. Escrever a minha autobiografia, por exemplo.

Tens alguma fantasia?
Viajar
pelo espaço, entrar num mundo novo. Eu, imagina, que não sou nada
aventureiro, que sou do mais caseiro que há, essa viagem gostaria de
ainda a poder vir a fazer.

Preferes seduzir ou ser seduzido?
Do
que eu gosto é do jogo. Do jogo do namoro. E isso implica duas pessoas.
Sem essa dialéctica não me parece que seja um exercício interessante.

Voltemos,
para terminar, aos teus títulos. Pediste ao Conselho de Nobreza, há
poucos anos, o reconhecimento dos títulos. Porquê agora?

Quando
decidi que o meu sobrinho António iria ser o meu sucessor, pensei nesse
problema e achei que o devia fazer. O meu bisavô era filho bastardo, o
meu pai nunca pediu o reconhecimento e eu achei que tinha chegado o
momento. O processo é complicado e moroso. Está feito.

O Conselho de Nobreza parece um anacronismo na República. Não?
A
República não reconhece oficialmente o Conselho, mas há uma espécie de
aceitação oficiosa. E a sociedade reconhece essa realidade, a realidade
dos títulos. Assim sendo, é bom que haja um órgão que os regule e lhes
dê alguma legitimidade. Para te dar um exemplo, o representante do
título de Conde de Amarante ganhou um processo contra uma marca de
aguardente que usou, sem autorização, o nome de “Conde de Amarante”. O
Tribunal deu-lhe razão e a marca da referida aguardente teve que ser
alterada para “Ponte de Amarante”.

Dá-me a tua palavra de eleição.
Autonomia.

via Público
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Fernando de Mascarenhas, Marquês de Fronteira

«O verdadeiro aristocrata tem consciência de que tem uma
história atrás de si e é essa própria consciência da história que tem
atrás de si que o faz ter uma consciência igualmente clara de que também
tem uma história à sua frente. Respeitar a tradição é saber que se é um
elo na cadeia e que tanto conta o que está para trás, como o que está
para a frente».
Este é o pensamento de Fernando de Mascarenhas, 12º Marquês
de Fronteira, expresso no «Sermão ao meu Sucessor – Notas para uma Ética
da Sobrevivência». O sermão escrito e lido na Sala das Batalhas do
Palácio de Fronteira em 1994, era dirigido ao futuro 13º Marquês de
Fronteira, o seu sobrinho António, (que em breve atingirá a maioridade).
O que é ser um aristocrata? Quem é este aristocrata? Qual é o legado de um nobre que é, antes de mais, um elo numa cadeia?
Fernando de Mascarenhas explicita nas próximas páginas o que o faz ser o que é, o que o faz pensar como pensa. 
No sermão lê-se igualmente: «Sê primeiro um homem e, depois, só depois, mas logo depois, um aristocrata».

«Casaram, tiveram muitos filhos e foram felizes para sempre» é
o epílogo das histórias da realeza. Teve a noção de ser um filho
desejado pelos seus pais?

Não posso dizer que tenha tido essa noção. Os meus pais separaram-se,
eu teria dois anos e meio ou três. Vivi com a minha mãe em casa dos
meus avós na Rua da Emenda. O meu pai vivia aqui. Via-o três ou quatro
vezes por ano. Era uma pessoa com quem fazia muita cerimónia. Que a
minha mãe gostava muito de mim, era evidente. Gostava e gosta – ainda
está viva. [A noção de ser desejado] foi um problema que nunca se me
pôs. O que se me pôs foi o seguinte: o meu avô dizia de brincadeira que
eu tinha sido comprado num jardim zoológico ou nos ciganos!

É uma coisa horrível de se dizer a uma criança! Normalmente
são os filhos mais velhos que dizem isso aos mais novos por causa dos
ciúmes.

É horrível! Eu afinava com aquilo!

O seu avô materno gostava do seu pai?
Tinha onze anos quando o meu pai morreu. Não faço ideia das relações
que teriam tido. Fazia gosto na linhagem do neto. Devo dizer que grande
parte da minha educação aristocrática vem do meu lado materno. Quando a
minha mãe voltou a casar, o meu avô teve um desgosto enorme. Depois
deu-se lindamente com o meu padrasto, o arquitecto Frederico George, que
era um homem encantador a quem fiquei a dever muito e de quem gostava
muitíssimo. Foi muito mais meu pai do que o meu pai. Conheci muito pouco
o meu pai. Só no último ano começámos a almoçar juntos de quinze em
quinze dias.

Iam almoçar onde?
À Gôndola, sempre. Entretanto o meu pai teve o desastre e morreu.

O que quer dizer para si fazer cerimónia?
O que quer dizer para toda a gente: era uma pessoa com quem não estava à vontade. Não era natural estar com ele.

Com a sua mãe, tinha uma relação de profunda intimidade.
Houve uma altura em que conseguia estar à mesa com a minha mãe e
falar com a minha mãe sem mais ninguém perceber o que estávamos a dizer!
Há sempre códigos de família, linguagens, expressões; era
frequentíssimo meter o francês na conversa. Obviamente quando havia
pessoal falava-se em francês – coisas da época e do meio. A cerimónia;
tem de ser muito bem doseada, mas é necessária e útil mesmo com pessoas
de quem se está muito próximo.

Uma espécie de decoro?
Exactamente. Não temos de nos impingir aos outros, com os nossos
problemas, preocupações. Tinha essa tendência. Vivi a adolescência nos
anos 60, período de grande efervescência, e lembro-me que em relação ao
casamento e às relações advogávamos uma total sinceridade. Que continuo a
advogar. Mas reconheço que em termos de eficácia, essa total
sinceridade, que é muito bonita e desejável no plano teórico, no plano
prático não é tão eficaz quanto isso. As pessoas da geração da minha mãe
diziam que uma senhora não devia despir-se em frente do marido e
vice-versa. Não é que tenha mudado de opinião, mas reconheço que não é
tão disparatado como julgávamos na altura. Uma proximidade excessiva
pode ter os seus inconvenientes.

Esbate o mistério?
Esse lado do mistério tem uma certa importância, porque mantém o
interesse. O que as senhoras têm de fascinante é exactamente o serem
incompreensíveis.

Tem mesmo essa ideia? Observadas do exterior não é possível encontrar a sua conexão íntima?
Tenho, tenho. É um mundo onde há pontos aos quais nunca temos acesso.
Uma relação muito previsível, não tem graça nenhuma. Uma relação muito
imprevisível, é difícil de viver. Duas vezes me casei, duas vezes me
divorciei. Se calhar é falta de jeito da minha parte. Não foi falta de
vontade de que as coisas dessem certo. As mulheres parecem
compreender-se muito bem umas às outras, e eu também acho os homens de
uma simplicidade infantil.

Quando a Maria João Seixas lhe pediu que se definisse, na
entrevista que lhe fez para o Público, disse que é um sentimental.
Sentimental é tradicionalmente um adjectivo do feminino. Com quem é que
aprendeu a ser um sentimental?

Ah, não sei se isso se aprende.

Nem que seja observando.
Nasce-se sentimental e depois aprende-se a deixar de ser. Eu aprendi,
aprendi à minha custa e conscientemente. Na minha adolescência dei-me
conta de que se não tomasse a minha vida em mãos, facilmente nunca
chegaria a ser gente.

O que é que isso quer dizer?
Que aos 18 anos imaginei como possível virar boémio e passar as
noites nas casas de fados, bêbedo, a nunca fazer nada na vida. Eu era
tão vulnerável a qualquer ligação emocional, ficava tão dependente, que
deixava de existir para mim. Percebi que não tinha solidez para viver
com esta minha maneira de estar. E comecei intencionalmente a cortar
todos os meus afectos, a criar distâncias em relação a tudo, até chegar
ao ponto em que apanhei um susto porque já não conseguia sentir nada!

Nessa fase em que se inibiu de amar intensamente as pessoas e as coisas, sentiu-se menos feliz?
O que acontecia na minha adolescência, é que eu era um bocadinho
maníaco-depressivo: alternava entre achar que era extraordinário e achar
que era uma merda. O que me criava angústia. De maneira que o que me
afligiu, quando comecei esse processo, foi não sentir nada. Criou-me
angústia estar excessivamente anestesiado e não conseguir voltar atrás.
Mas depois consegui e de maneira bastante feliz. O controlo é quase
automático. Arranjei um esquema mental e emocional em que as coisas
funcionam automaticamente. Posso embarcar numa relação, entregar-me,
porque sei que tenho a resistência necessária para voltar a estar de pé.

A não se perder de vista a si mesmo?
A não me perder de vista no outro.

Deixar cair as defesas quer dizer ficar refém dessa pessoa, desse sentimento?
É estar completamente à mercê. É um deixar de estar em mim. Por isso
tenho muitas dúvidas sobre a importância do amor no casamento.

O que é o casamento?
O casamento é duas pessoas saberem viver juntas. E é dificílima, a
coabitação. São muito sensatas as pessoas que vivem cada uma na sua
casa. As relações têm de ser quotidianamente construídas. Não é uma
coisa que se põe ali uma semente, um bocadinho de água e pronto. Bem sei
que tenho tendência para escolher mulheres difíceis...

São as que dão luta, e são as misteriosas.
Pois é. São as que têm graça! [risos] Se a pessoa está com uma pessoa
que é muito fácil, a pessoa torna-se mais egoísta. Se o outro lhe
facilita a vida, tem tendência a acomodar-se. Quando somos miúdos, os
nosso pais fazem tudo por nós. Enquanto fizerem, não fazemos o esforço
de fazer as coisas. Quando dizem: «Agora não faço nada, fazes tu se
quiseres», então vamos para a luta e aprendemos. Numa relação a dois é a
mesma coisa. Uma relação muito fácil também é destrutiva neste aspecto.

E esvai-se a admiração e a possibilidade de potenciar no outro o seu melhor e o seu pior.
As relações que tive foram extraordinariamente estimulantes: sempre
me puseram em questão. É fundamental darmo-nos com pessoas que nos põem
em questão. Senão, ficamos numa torre de marfim, que não tem sentido,
que não é real.

Ainda nessa entrevista à Maria João Seixas, dizia que como
tinha os ecos da relação tempestuosa dos seus pais, prometia a si mesmo
nunca tratar as mulheres como o seu pai tratava a sua mãe. Essa promessa
infantil permite adivinhá-lo cuidadoso? Que tipo de homem é nas
relações amorosas?

Procuro ser uma pessoas atenta, e não só nessas relações. Se eu vir
que acende o cigarro, (por sinal, se quiser fumar, esteja à vontade),
pego no cinzeiro e chego-o mais para ao pé de si. Não me custa nada. Mas
vejo muita gente a quem isto não acontece naturalmente.

Essa atenção, a que podemos chamar delicadeza, é o tipo de coisa que se aprende?
Ter uma base de boa educação, é importante; mas há muita gente que
tem este treino e não tem esta atenção, e o contrário também é verdade.

Importa-se de definir boa educação?
A boa educação é estar atento aos outros. Procurar não magoar os
outros, (a não ser quando se entende que é absolutamente necessário).
Depois há algumas regras que se aprendem e que ajudam a conviver em
sociedade. A boa educação é o que permite às pessoas viverem em
sociedade. Quem vive sozinho não precisa de ser bem educado.

Mesmo quando está sozinho, dá por si a fazer coisas que já não são puramente instintivas, que já estão polidas?
É capaz de me dar um exemplo?

Se vou na rua, ainda que não conheça as pessoas de lado nenhum, se bocejo, ponho a mão à frente da boca.
Se estiver sozinha, põe? Eu acho que não ponho. Não posso jurar, mas penso que não.

Foram a sua mãe e os seus avós maternos que o educaram. O que é que recorda da sua infância?
Não tenho memória da infância como período áureo da vida, mas também
não tenho a ideia da infância, ai que horror! Fiz a instrução primária
no Liceu Francês. O meu pai queria que eu fosse para o Colégio Militar.
Eu era um menino da mamã, vivia com os avós, e o meu pai teve a
percepção de que podia não ser muito saudável um ambiente excessivamente
resguardado, que era importante que me confrontasse com a vida real. A
minha mãe propôs um conselho de família, e chegou-se a um compromisso:
fui para o Liceu.

Foi criado para ser o quê?
O facto de ser o representante de uma casa, e de, com a morte do meu
pai, herdar um título, foi uma coisa importante na minha educação. Fui
educado para ser o quê? Olhe, para ser gente. Para ser digno dos nomes
que tinha, do passado da família. Não num aspecto muito formal; ou, pelo
menos, depois soube libertar-me. Era mais uma coisa vista de dentro,
como um padrão de comparação; a gente sabe que deve ter um comportamento
sério, honesto, honroso, digno. Basicamente é isso.

Há sempre uma expectativa em relação ao futuro dos filhos.
Não será por acaso que os filhos têm muitas vezes as profissões dos
pais.

Em miúdo quis ser engenheiro de pontes.

Mas porquê, fazia construções com legos?
Não, na altura não havia legos. Pelo menos em Portugal não havia legos.

Deixe-me abrir um parêntesis e perguntar como eram os brinquedos da sua infância.
Ah, tive coisas extraordinárias. O meu padrinho [José Melo e Castro]
dava-me presentes estupendos, completamente inesperados. Nos meus anos a
minha mãe ofereceu-me,uma vez, uma farmácia fingida, posta num cantinho
do quarto: um balcão com uma estante por trás, cheia de frasquinhos com
doces e rebuçados, de cores variadas. Uns tempos antes, a minha mãe
tinha remodelado o quarto e posto uma mobília verde-turquesa; (deve ter
sido por isso que o primeiro carro que tive foi um Volkswagen
verde-turquesa!, horrível, horrível, não tem explicação!). Havia nesse
quarto uma mesa com duas rodas, e então, o meu primo e eu, virávamos a
mesa ao contrário e fazíamos como se estivéssemos num automóvel.

Brincava sobretudo com esse primo, ou com outros meninos?
Havia um grupo, tinha uma série de primos. De manhã estava muito
sozinho...; mas havia uma criada que tomava conta de mim, a Carminho.
Mais tarde, a Carminho engravidou, e foi um desgosto horrível quando se
foi embora. Além disso, a partir dos três anos tinha a Mademoiselle.
Aprendi a ler em francês.

A sua mãe brincava consigo?
Viajávamos muito e levava-me à praia, com um grupinho de cinco ou
seis meninos. Começámos por ir para a praia da Torre, depois Santo Amaro
de Oeiras, depois Carcavelos. Ir a Carcavelos?, era um percurso louco,
uma distância enorme! E passávamos muito as férias em grupo na herdade,
andávamos a cavalo, fazíamos cabanas na mata.

Foi então uma infância muito solta. Não havia sobre si uma pressão adicional?
Uma pressão muito difusa, não se pode facilmente concretizar; mas
havia uma pressão, nitidamente. Aos 14 anos comecei a criar uma certa
distância em relação à família do meu pai por causa disso, para poder
afirmar-me como eu próprio. Sentia que estavam à espera que fizesse
qualquer coisa, que não sabia muito bem o que era. Anos mais tarde, aos
40 ou coisa assim, iniciei o processo inverso. Já tinha afirmado a minha
autonomia, já não havia o perigo de quererem influenciar-me, e houve
uma reaproximação.

Quando disse que foi educado para ser gente, quer dizer que
foi educado para para ter sentimentos nobres. Uma pessoa bem educada e
merecedora da história que o antecede.

Estou em contacto com um antropólogo americano que me diz que aos
americanos faz muita confusão quando se olham ao espelho e vêem coisas
do pai ou do avô; que isso lhes provoca uma crise de identidade. Achei
muito curioso porque na minha experiência isto simplesmente não existe.
Para mim é perfeitamente natural ter coisas do meu pai ou do meu avô.
Apesar de terem passado 250 anos, penso que o facto de os Marqueses de
Távora terem sido decapitados, ainda teve influência na minha vida.

Pode concretizar essa ideia?
Não é uma influência directa, é evidente. Por exemplo, [a decapitação
dos Távora], que aconteceu quando a Marquesa de Alorna tinha oito anos,
possivelmente contribuiu muito para o lado independente que ela tinha. A
Marquesa de Alorna é a poetisa Alcipe, avó de Trazimundo e neta dos
Távora. O Trazimundo tem consciência de que a sua opção política, (o
lado liberal e não o absolutista), tinha a ver com esse facto. O eu ser
uma pessoa de Esquerda, de alguma maneira, ainda tem a ver com isso. A
minha ideia do que é a relação com o poder, (de que não deve haver
excesso de proximidade), tem a ver com o facto de os meus sétimos avós
terem sido decapitados.

No «Sermão ao meu Sucessor» fala da distância em relação ao
poder. Num sistema monárquico ou republicano, o que move os homens é
justamente o desejo de poder.

Sem dúvida que uma convivência muito próxima com o poder tem perigo. O poder não é uma coisa que me interesse muito.

Não é inebriante?
Deve ser. Nunca tive poder suficiente para o achar.

Há sempre os pequenos exercícios...
Claro. Mandar fazer uma coisa e ela ser feita, é útil, é agradável.
Mas se o pusermos ao nível de um país, que é quando essas coisas começam
a ter significado, eu sei lá o que é melhor para o país! Eu gostava que
o país estivesse melhor, que a educação e a saúde tivessem outro nível,
que as pessoas fossem atendidas de outra maneira, etc. Agora, como é
que isso se consegue? Não tenho a pretensão de saber. Voto, voto sempre,
nunca deixei de ir às urnas, às vezes para votar em branco, cada vez
com menos convicção, mas não deixo de votar. Governar um país deve ser
uma coisa dificílima. E deve dar um trabalho horrível. E um país como o
nosso, que não é muito fácil... Não imagino o que seja governar uma
coisa como a Rússia!!

Quando é que se descobriu de Esquerda?
Quando olhei a realidade à minha volta e pensei que vivíamos num
regime opressivo. O primeiro interesse político que tive, aí pelos 16
anos, foi pela social-democracia nórdica. Estava no sétimo ano do liceu
quando foi a primeira grande crise estudantil; depois entrei para a
universidade e liguei-me à associação de estudantes.

Não era inusitado ver um nobre partidário da social-democracia?
Se calhar não era muito frequente. E fazer reuniões de oposição cá em
casa... Causou um escândalo enorme! Levou a que as pessoas do meu meio
me olhassem durante anos com muita desconfiança.

Fazia isso como uma espécie de afronta?
Também. Mas não era essencialmente por isso. Era porque tinha
obrigação. Se tinha determinados privilégios, determinadas facilidades,
tinha de dar de certa maneira o corpo ao manifesto. Nunca dei muito, não
fiz nada de especial, mas fiz as pequenas coisas que estavam ao meu
alcance.

O que é a sua mãe achava?
A minha mãe não achava nada bem. Tinha muito a noção do não dar
escândalo. Eu percebo; não é uma coisa que me dê prazer, dar escândalo. A
pessoa deve ter uma certa discrição. Mas há certas alturas em que temos
de afirmar as nossas convicções, e se der escândalo, paciência.

Essa militância derivava do sentimento de justiça, fundamental no modo como considera um título nobiliárquico.
Absolutamente. Se se nasce com certos privilégios, nasce-se também
com certas obrigações. Toda a gente sente muito vivamente quando a
injustiça é em relação a nós próprios. Alguns têm a capacidade de
reflectir sobre isso quando se passa para outros.

Como é que sentiu na pele a injustiça?
São coisas muito miúdas... Lembro-me de um mau exemplo, porque era
justíssimo. Devia ter sete ou oito anos e bati a uma criada – era uma
criança um bocado arrogante. A minha mãe obrigou-me a pedir desculpa, e
fez muitíssimo bem, estou-lhe muito grato. Mas custou-me os olhos da
cara. Outra coisa: havia uns gémeos, filhos do cavalista da herdade; a
minha mãe obrigou-me a dar-lhes uma bola de futebol. Tinha estimação
naquela bola e achei aquilo uma injustiça muito grande; podia ter dado
outra, podia ter comprado uma na loja, mas teve de ser aquela.

O dinheiro e o poder normalmente demarcam as classes sociais. Qual a importância do dinheiro na sua vida?
O dinheiro, quando se tem, tem a grande importância de não se ter de
pensar nele. Foi essa a grande vantagem de ter nascido com à vontade
económico: é não tertido de me preocupar muito com essas coisas. É claro
que facilita: a gente tem dinheiro, pode convidar, dar bons presentes.
São coisas que tornam a vida agradável, para nós e para os outros. Ter
dinheiro e uma posição social de uma maneira geral facilitam as
relações. Mas em certos casos dificultam.

No amor, há as clássicas oportunistas, a história mítica do golpe do baú.
Estive sempre consciente, desde pequeno, dessa possibilidade. Não sei
se era o facto de estar consciente, e por isso atento, mas nunca tive
esse problema. Não tenho a consciência de ter tido pessoas que se
aproximaram por motivos interesseiros.

Que coisas conquistou a pulso? Imagino que tenham sido mais saborosas?
Claro que sim. Por exemplo, isso que para mim é importante de
procurar não me zangar com as pessoas, de estar sempre disposto a
aceitar as pessoas. Mantenho quase todas as minhas relações.

Ainda que tenha sido uma vida de facilidades, parece inquieto.
Acha? Mas isso é porque me está a provocar, e eu, como sou bom
espectador, reajo bem a provocações. Já fui angustiado, na adolescência.

A psicanálise, que fez entre os 22 e os 25 anos, foi um processo determinante?
Utilíssimo. A psicanálise ajudou-me a perceber que os outros são um
espelho. A grande lição que a vida tem para nos dar é essa: se a gente
olhar para os outros, vê-se. E se souber ler, depois ajeita-se.

Porque é que escolheu o seu sobrinho António como seu sucessor?
É aquele que a transição nobre determina.

Tem um afecto particular por ele? O sucessor, normalmente, é o
filho. E quando não é o filho, é alguém que se considera como um filho.

Quando nasceu, já sabia que seria o meu sucessor. Não é tê-lo
escolhido. É prestar-lhe uma atenção particular por isso. Não tenho uma
relação muito próxima, exactamente porque não é meu filho. Gosto muito
do António, acho que ele gosta de mim, mas os pais são os pais. Tenho
muito pudor em entrar pelas pessoas adentro, sobretudo se a relação não
for de igualdade.

Aconteceu não ter filhos ou escolheu não ter filhos?
Aconteceu. Sabia muito novo que provavelmente seria assim. Desde
pequeno que tenho um problemo endócrino. Aos 14 anos um médico nos
Estados Unidos disse-me que era provável que não tivesse filhos. Foi uma
coisa para a qual tive tempo para me preparar.

Mas dolorosa?
Sim. Houve uma altura em que tive muito o sonho de ter um filho. Se a
evolução da ciência tivesse estado 30 anos adiantada, era bem capaz de
me clonar. Ai sim, sim, fazer um clone. Bem, é preciso ver que sou um
leitor de ficção científica...

Um filho não é um clone.
É como se fosse. É melhor ainda: com um clone, como somos nós
próprios, fazemos menos cerimónia. Sou um bocadinho narcisista, tenho de
confessar que sim... Ah, achava divertidíssimo conhecer e relacionar-me
com uma pessoa que fosse igual. Mas mesmo que seja geneticamente igual,
nunca é exactamente igual. A educação tem imensa importância. Se esta
notícia que saiu agora [relativa ao nascimento de Eva, o primeiro bebé
clonado], tivesse sido há 30 anos...

Não acha eticamente reprovável?
Se me disser que vai produzir uma raça de homens todos iguais, que
vai produzir centenas, milhares de pessoas iguais com determinadas
características, acho horrível, reprovabilíssimo. Ao nível individual,
não me choca muito. Não me parece óbvio que essas pessoas não tenham
identidade.

Nesse caso, a clonagem seria uma maneira de contornar a dificuldade endócrina que o impossibilitou de ter filhos?
Exacto. Mas seria um desafio extraordinário a pessoa confrontar-se consigo própria...

Há um Fernando Mascarenhas e um Marquês de Fronteira?
É difícil responder em rigor. Se me perguntar se seria o mesmo se não
tivesse nascido marquês, não seria com certeza. Penso que teria tido
uma vida diferente, teria feito muito mais para me salientar. Porque não
tive necessidade. Teria sido muito mais determinado, cedido menos a uma
indolência natural. Não sei o que teria feito como estudos, mas no que
tivesse sido, teria sido muito melhor do que aquilo que fui.

Não teria ido para Filosofia, curso que apanha uns quantos diletantes...
Teria feito provavelmente outra coisa. Primeiro quis ser, como disse,
engenheiro de pontes. E depois... Mas isso é que seria socialmente
impensável: gostaria imenso de ter sido bailarino. Também não tinha
físico para isso.

Lidou sempre bem com a sua imagem física?
Dentro do possível, penso que lidei bem. Em criança passei muito
tempo em médicos e em hospitais, muitos exames, muitas coisas, até aos
14 anos. Tenho um sentido de adaptação muito grande. Consigo adaptar-me
muito bem aos locais onde estou e consegui adaptar-me bem à pessoa que
sou e ao físico que tenho. Gostaria de ser esbelto, alto, não sei quê...
Se tivesse continuado a ser marquês e se, além disso, não tivesse tido
os problemas endócrinos que tive, seria insuportável!, vaidosíssimo, um
cagão!, uma pessoa absolutamente detestável!

É como se Deus escrevesse direito por linhas tortas?
Exactamente. A humildade é uma coisa que tem de se trabalhar,
estudar, procurar. Poucas pessoas haverá que sejam naturalmente
humildes. É uma virtude difícil de conseguir. Tenho feito alguns
progressos, mas... [risos], estou longe de chegar à perfeição.

Qual acha que é a sua herança?
Nestas coisas das famílias e das nobrezas há dois princípios: o da
casa e o da linhagem. O princípio da linhagem é um princípio mais
antigo, vem desde os tempos medievais, e não exige grandes coisas: desde
que se tenha filhos, a linhagem continua. Em relação ao princípio da
casa, que é do século XVI, XVII, para além de manter a casa e alguns
bens, é preciso também trazer de tantas em tantas gerações algum lustre à
casa. Penso que trouxe algum lustre à casa, e isso faz parte do meu
legado. Faço gosto nisso.

Tem uma forte sensação de pertença em relação a esta casa? Sente estranheza quando está muito tempo fora?
Não. Estou sempre muito bem onde estou. Depois do 25 de Abril saí
daqui, pensando que não poderia voltar. Fui para Marrocos, depois para
Inglaterra. Em Marrocos aluguei uma casinha, estive lá dois meses. Em
Londres estive em casa de uma tia, aluguei um quartinho.

Custou-lhe viver com menos mordomias durante esse período?
Não. Foi um período relativamente curto. Em Londres comecei à procura
de emprego, fui a uma entrevista na embaixada do Brasil. Tinha algum
dinheiro, mas ia ter de começar a ganhar a vida. Gosto de voltar a casa,
mas também estou sempre sem angústias fora de casa.

Sabe tomar conta de si?
Sei.

* publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

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