Espumas . Notas . Pasquim . Focus . Sons . Web TV . FB

"Uivo", um documentário para reencontrar e descobrir António Sérgio

Posted: 31 de out. de 2014 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , ,

por Mário Lopes

 
“Quando se apaixonava, apaixonava-se de uma forma quase infantil. Era muito bonito”. Isilda Sanches, hoje na Rádio Oxigénio, recorda os tempos que, nos anos 1990, partilhou com António Sérgio na extinta XFM.
Ouvimo-la em Uivo, o documentário sobre o radialista que foi muito mais que mero radialista.


António Sérgio, que a morte levou a 1 de Novembro de 2009, foi divulgador e formador de várias gerações, foi editor rebelde com visão, foi “aquela” voz inconfundível, grave e ponderada. No limite, foi maior que muita da música que passou. Apaixonado, sempre. Pela música das margens, fossem
elas as do Mississipi, do Tamisa, do Hudson, do Niger ou do Tejo.

Eduardo Morais, realizador de 28 anos, conhecia o mito mas faltava-lhe biografia. Não o ouvira enquanto crescia, como a geração a quem António Sérgio, na passagem da década de1970 para a de 1980, abriu as portas para uma nova realidade, a do punk e new-wave, em programas como Rolls Rock, Rotação ou Som da Frente. Quando quis saber mais, Eduardo pouco encontrou. Decidiu então investigar a história por trás do mito. O resultado é Uivo, o seu terceiro documentário depois de Meio Metro de Pedra, dedicado ao rock português enquanto contracultura, e Música em Pó, sobre o fascínio pelo universo do vinil.


Uivo tem estreia este sábado, no Palácio Foz, em Lisboa, com duas sessões (16h30 e 21h30) em que será também apresentado Uivo da Matilha, livro, acompanhado pelo DVD do documentário, que recolhe de cartas escritas postumamente a António Sérgio por admiradores, músicos ou outros radialistas, compilado por Ana Cristina Ferrão, sua mulher e cúmplice inseparável. Na sessão nocturna haverá igualmente música, a cargo de Fast Eddie Nelson, The Fellow Man e Charles Sangnoir. Uivo correrá depois o país em mais 19 exibições. Barcelos, Santo Tirso e Coimbra, nos dias 6, 7 e 8 de Novembro, são as próximas datas.
Eduardo Morais quis fazer de Uivo (o título é referência ao programa A Hora do Lobo)
uma homenagem. “[António Sérgio] tinha o gosto e o prazer de divulgar.
Quis prestar homenagem a uma pessoa que foi o divulgador máximo”.
Realizador independente, Eduardo Morais recorreu tal como anteriormente
ao crowdfunding para reunir a quantia necessária à produção do
documentário. Colocou como tecto três mil euros, os necessários para
trabalhar seis meses exclusivamente no filme. A resposta obtida deu-lhe
desde logo conta da dimensão do homem cuja vida e legado iria
documentar. “Estava reticente. Pedir três mil euros não será demais?”.
Não era. Em apenas duas semanas, atingiu esse valor. “Quando [a
iniciativa] começou a ser divulgada, comecei a receber mensagens de todo
o país. Admiradores, profissionais da rádio que me diziam que lhe
deviam a carreira, que só fazem o que fazem por causa dele".

Cruzando material de arquivo (fotos, algum vídeo, registos áudio) com
entrevistas a familiares, amigos, jornalistas, músicos directamente
influenciados pelo seu trabalho (Zé Pedro, João Peste, os Gift),
companheiros de rádio seus contemporâneos, como Luís Filipe Barros ou
Jaime Fernandes, ou seus descendentes, como Álvaro Costa, Nuno Calado ou
Miguel Quintão, Uivo ilustra o percurso do homem nascido em
Benguela, em 1950, e chegado a Lisboa treze anos depois, já com a rádio
como presença marcante na sua vida (tanto o pai como a mãe eram
locutores).

Acompanhamos desde o percurso nas madrugadas na Renascença à criação de programas emblemáticos como o Rolls Rock, o Rotação, o Som da Frente, o Lança Chamas, dedicado ao heavy metal, ou o  Louras, Ruivas e Morenas,
criado com Ana Cristina Ferrão e dedicado ao rock no feminino. Numa
altura em que as rádios nacionais mostravam pouco interesse e ouvidos
pouco atentos à novidade que brotava nas ruas de Londres ou Nova Iorque,
António Sérgio foi um farol. “A revolução [do 25 de Abril] tinha
acontecido há cinco anos”, contextualiza em Uivo Jon Marx, autor do blog A Lista Rebelde,
criado como homenagem a António Sérgio após a sua morte. Recorda que
vivia num país de “costumes fechados”, ouvindo slogans políticos “vazios
de conteúdo”. António Sérgio, diz, trouxe-lhe novos slogans,
nada vazios: “Direito à diferença”; “para uma imensa minoria”. Não havia
música indie ou música alternativa. Havia “som da frente”.

Enquanto isso, António Sérgio entrevistava Devo ou Stranglers e estes deixavam
“marcas profundas nos corredores da Renascença”. Enquanto isso, em
tempos muito pré-internet em que a informação circulava com dificuldade,
António Sérgio servia de guia a todos os que o escutavam país fora, das
grandes cidades às pequenas vilas do interior. “A primeira vez que ouvi
hip hop, o The Message de Grandmaster Flash, foi através do
António Sérgio”, recorda no filme o crítico Ricardo Saló. “Era a única
pessoa a quem levávamos maquetas. Era o único cuja opinião nos
interessava”, conta Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés.

O trabalho de divulgação não se ficava pela rádio. Nela divulgava em
estreia mundial os PiL de John Lydon (um amigo em Londres, Rui Castro,
recebeu, por engano, as demos enderaçadas ao vizinho Lydon, enviou-as a
António Sérgio e quando a editora tentou resgatá-las já era tarde
demais). Fora dela colaborava na produção do álbum dos Corpo
Diplomático, editava os Xutos & Pontapés pela editora Rotação,
criava Punk 77, álbum pirata que apresentava ao país a nova vaga britânica.

Dar
a conhecer, divulgar, partilhar a música que via como mais relevante,
mais excitante, a cada momento. “Durante todos aqueles anos, lançou
desde os Xutos, aos Dealema, aos Gift”, aponta Eduardo Morais. “Ao longo
do tempo foram-lhe oferecidos cargos de chefia e sempre recusou”, conta
o realizador. Continua: “O que gostava mesmo era de divulgar as bandas
quando estavam a crescer. Quando se estabeleciam, o interesse era menor.
E não era de todo uma postura arrogante ou elitista. Era mesmo o prazer
de dar a conhecer. Quando as bandas se tornavam grandes, já não
precisavam do seu apoio”. E António Sérgio partia em busca de novos
sons, de novo talento.

A determinado momento da entrevista, Eduardo Morais tenta colocar-se na posição de muitos dos entrevistados de Uivo,
os que estavam do outro lado da rádio: “Imagino como seria ser um miúdo
nos anos 1980 e ouvir aquela voz super característica, sem fazer ideia
de quem era a pessoa por trás dela. Havia quase um misticismo naquela
voz”. Uivo, diz, é para aqueles que, como ele, sabiam da importância de António Sérgio mas não o conheciam verdadeiramente.

“Costumo dizer, e normalmente sou mal interpretado, que não faço os
documentários para os lobos-do-mar, para o pessoal da velha guarda que
já sabe tudo. Faço-os para o público mais novo, que não sabe. Claro que
tento manter o equilíbrio entre a homenagem, para os mais velhos, e a
novidade, para os mais novos. Mas interessa-me muito mais que estes
conheçam o António Sérgio e que lhe dêem o devido valor. Aliás, a
intenção do António Sérgio nunca foi que as pessoas ficassem agarradas a
um tempo”.

Este documentário surge para que queiramos seguir-lhe o
exemplo. Curiosos, atentos, activos, apaixonados. Olhamos em frente. O
uivo continua a ecoar.


# Facebook

0 comentários:

Postar um comentário