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Reportagem: índios isolados arriscam '1º contacto' com étnia ashaninka e servidores da Funai no Acre

Posted: 1 de ago. de 2014 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , , ,


No dia 29 de junho de 2014, um povo indígena isolado estabeleceu o primeiro contato com indígenas da etnia ashaninka e servidores da Funai, na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, no Estado do Acre, na região de fronteira do Brasil com o Peru.



Faz um mês nesta terça-feira (29) que um povo indígena isolado estabeleceu o primeiro contato com indígenas da etnia ashaninka e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, no Estado do Acre, na região de fronteira do Brasil com o Peru.
Os grupos de índios isolados da região, que entre si se envolvem em conflitos armados, buscam proteção no lado brasileiro porque estão sendo massacrados por narcotraficantes e madeireiros peruanos.

Terra Magazine, em maio de 2008, mostrou ao mundo (veja) as primeiras imagens de um dos grupos de índios isolados que vivem na região, fotografado durante sobrevoo coordenado pelo sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior, que chefiava a Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) da Funai. Dessa vez, o Blog da Amazônia obteve com exclusividade o vídeo inédito do primeiro contato, fotos e o relatório de campo da equipe da Funai.
Há mais de dois anos a FPE foi invadida por peruanos, os servidores da Funai bateram em retirada e desde então foi abandonada pelo governo brasileiro. O pessoal da FPE acompanhava a aproximação dos índios isolados desde o dia 13 de junho. O sertanista José Carlos Meirelles, que atualmente trabalha na Assessoria Indígena do Governo do Acre, tem participado dos contatos.
O primeiro contato com os índios isolados, sem auxílio de intérprete, foi estabelecido pelo índio Fernando Kampa de forma pacífica. Os ashaninka da Aldeia Simpatia se aproximaram e os isolados gesticulavam pedindo a calça de um servidor da Funai, que se aproximou juntamente com os ashaninka apenas de cueca.



- Ao gesticularem pedindo comida, o indígena Fernando Kampa pediu que fossem apanhados dois cachos de banana e os deu aos índios, realizando assim o contato. No momento de entrega das bananas, também apareceu na margem contrária outro índio isolado que havia sido avistado na BAPE Xinane e também uma mulher com um saiote, possivelmente feito de envira, e com uma criança de aproximadamente cinco anos. A mulher entregou um jabuti ao indígena Fernando Kampa como forma de agradecimento ou troca pelas bananas – diz o relatório de campo da equipe da Funai.
Após o primeiro contato, de acordo o relatório, o indígena Fernando Kampa pediu que os ashaninka pegassem suas roupas para dar aos isolados e os chamou para o acompanhar até a aldeia Simpatia. “Mais uma vez não foi possível controlar os avanços dos ashaninka”. Segundo o relatório, as roupas estavam sujas, possivelmente com escarros, doenças sexualmente transmissíveis, que podem ter contaminado os isolados.
O fato é que o grupo de índios isolados contraiu gripe e se deslocou junto com a equipe da Funai para a base da FPE Xinane. O grupo foi convencido a permanecer na aldeia até que fosse encerrado o atendimento médico pela equipe mobilizada pelo geógrafo Carlos Travassos, da Coordenação-geral de Índios Isolados da Funai em Brasília.



Após a conclusão do tratamento, os indígenas retornaram para suas malocas, onde estão os demais integrantes de seu povo. De acordo com informações dos intérpretes que integram a equipe da Funai, os índios pertencem a um subgrupo do tronco linguístico pano.
A equipe da Funai encontrou uma pequena bolsa na qual os índios isolados carregavam cachimbo, camisas, caixa de fósforo peruano, embalagens de sabão peruano, uma carteira do Corinthians enrolada com pedaços de fios coloridos e com um pote contendo um líquido, provavelmente um anticoagulante que é aplicado na ponta das flechas. Havia também cartucho calibre 32, pólvora preta (marca Jacaré), uma espoleta, pacote vazio de sal (marca Caiçara), caucho (sernambi), três lâmpadas incandescentes, parafusos e porcas, que os isolados usam para carregar cartuchos da espingarda. O material foi todo devolvidos aos isolados.



Os índios isolados, que prometeram regressar com familiares no prazo de luas -mais ou menos no começo de setembro-, neste domingo (27) decidiram antecipar. Um grupo de oito isolados se estabeleceu na Aldeia Simpatia, incluindo uma criança.
O índio Zé Correia, da etnia jamináwa, chamado pela Funai como intérprete, contou que os índios isolados preferiram não se identificar porque temem ser alvos de novas correrias (matança organizada de índios) por parte de outros grupos indígenas isolados.
- Mas a situação mais grave envolve os narcotraficantes e madeireiros peruanos. A maioria desse grupo contatado é de jovens. A maioria dos velhos foi massacrada pelos brancos peruanos, que atiram e tocam fogo nas casas dos isolados. Eles disseram que muitos velhos morreram e chegaram enterrar até três pessoas numa cova só. Disseram que morreu tanta gente que não deram conta de enterrar todos e os corpos foram comidos pelos urubus. Nosso povo jamináwa compreende a língua dos isolados e nós vamos acompanhar. O governo brasileiro precisa fazer algo para defender esses povos. Eles disseram que existem outros cinco povos isolados na região e que são grupos bastante numerosos. Apesar das diferenças e dos conflitos que existem entre esses grupos, todos são perseguidos pelos brancos peruanos. Qualquer dia todos esses povos podem procurar o Brasil em busca de proteção. A Frente de Proteção Etnoambiental da Funai precisa de total apoio.  Vai ser impossível se fazer algo apenas com as mãos e as unhas. Não podemos ser cúmplices de genocídios – apelou Correia.


Carlos Travassos, da Coordenação-geral de Índios Isolados da Funai, com o indígena Zé Correia, que colaborou no contato como tradutor
A equipe da da Frente de Proteção Etnoambiental Envira Envira, entre os dias 17 e 30 de junho, produziu um relatório preliminar de campo denominado “Desenvolvimento das atividades Aldeia Simpatia”.  Veja o que foi relatado sobre o que aconteceu na aldeia nos dias 29 e 30 de junho:

29/06/2014 – domingo

Durante todo o dia ocorreu a tradicional caiçumada dos Ashaninka e no final da tarde, por volta das 16:00, o téc. em enfermagem, Francimar Kaxinawa, retornou às pressas de seu banho no rio e informou a equipe da FUNAI (Marcelo Torres) que os isolados estavam gritando no barranco à margem oposta da praia da aldeia Simpatia.
Outras crianças Ashaninka também ouviram e chamaram rapidamente os adultos que estavam na caiçumada. Neste momento, os indígenas Ashaninka seguiram correndo pela praia até chegarem próximos aos isolados, liderados pelo indígena Fernando Kampa. Todos os Ashaninka aparentavam estar bêbados e bastante alterados.
Um dos indígenas da aldeia Simpatia, Gilberto Kampa, havia subido o rio pouco tempo antes para arrancar macaxeira e após ver os isolados ficou ilhado no roçado. Sua esposa veio até a aldeia chorando e pediu para que fossemos busca-lo. Além de Gilberto, estavam com ele 2 de seus filhos com idade entre 3 e 5 anos.
Os isolados gritavam e gesticulavam, onde foi possível ouvir nitidamente a palavra “camisa” e batendo na barriga como quisessem dizer que estavam com fome. No momento da aparição, estava presente apenas o servidor Marcelo Torres da FUNAI e sendo que Meirelles, Artur e Guilherme estavam mais abaixo no rio Envira pescando.
Não foi possível conter os Ashaninka para aproximação com o grupo isolado, que a princípio se apresentou com 4 índios, os mesmos avistados na BAPE Xinane. Seguiam portando 1 espingarda e os demais com arcos e flechas.
Os Kampas se aproximavam mais e os isolados gesticulavam pedindo a calça do servidor Marcelo Torres, que se aproximou juntamente com os Kampa sem a calça, apenas de cueca. Ao gesticularem pedindo comida, o indígena Fernando Kampa pediu que fossem apanhados dois cachos de banana e os deu aos índios, realizando assim o contato.
No momento de entrega das bananas, também apareceu na margem contrária outro índio isolado que havia sido avistado na BAPE Xinane e também 1 mulher com um saiote possivelmente feito de envira e com 1 criança de aproximadamente 5 anos. A mulher entregou um jabuti que foi entregue ao indígena Fernando Kampa como forma de agradecimento ou troca pelas bananas.
Após este contato, o indígena Fernando Kampa pediu que os Ashaninka pegassem suas roupas para dar aos isolados e os chamou para o acompanhar até a aldeia Simpatia, onde mais uma vez não foi possível controlar os avanços dos Ashaninka. As roupas dadas estavam sujas, possivelmente com escarros, DST’s, etc., que podem ter contaminado os isolados.
Na chegando a praia da aldeia Simpatia, também havia acabado de chegar os servidores Artur e Guilherme, juntamente com Meirelles. A equipe tentou conter os isolados e os Kampa que chegaram a ligar o motor do barco da FUNAI para buscar o indígena Gilberto Kampa no roçado, mas foi praticamente impossível até que Fernando Kampa foi contido após ríspida discussão com a equipe da FUNAI.
Chegaram a aldeia apenas 3 dos índios isolados e os demais permaneciam no barranco à margem contrária. O indígena Fernando Kampa pediu para sua esposa trouxesse caiçuma para os isolados e ao chegar na praia, o servidor Marcelo Torres orientou ao médico da equipe de saúde, Neuber, que chutasse a cuia impedindo que a bebida chegasse até os isolados.
Após este momento, os índios começaram a subir para a aldeia e saquear as casas dos Ashaninka que permaneciam passivos, bêbados, sem qualquer espécie de reação. Foi preciso que a equipe da FUNAI intervisse e impedisse que todas as casas fossem saqueadas. Meirelles precisou ser mais ríspido para que um dos isolados deixasse parte do que iria saquear no chão. Quando eram mostradas armas, os isolados se mostravam extremamente nervosos e agitados, gritando “Shara”.
Depois deste momento de saque, a equipe da FUNAI conseguiu conter um pouco os isolados e os acalmar, sendo possível ver os isolados arremedando animais da mata e também cantando. O servidor Guilherme tentou realizar o contato urgente com Brasília e Rio Branco e não obteve resposta.
A equipe seguiu conversando e tentando manter contato com os isolados para acalmá-los, mas em determinado momento, o grupo isolado ouviu um arremedo de nambu azul vindo da mata próxima ao Ig. Simpatia e se agitaram, gesticulando como se tivessem sido flechados.
Com o cair da noite tornou-se ainda mais difícil conter o grupo e novos saques foram realizados nas casas dos Ashaninka. Pouco tempo depois, chega a aldeia Simpatia pela mata o indígena Gilberto Kampa com seus filhos, assustado e informando que haviam outros índios escondidos na região do roçado.
Na tentativa dos servidores de conter os saques, os mesmos eram ameaçados com flechas. A equipe tentou fazer uma fogueira e sentar com os isolados, mas pouco depois o grupo de isolados desceu e saiu correndo pela praia no sentido do barranco onde estavam os demais índios.
Após o contato e a saída dos índios, as equipes da FUNAI e da Saúde realizaram escala de vigília durante a noite em caso de nova investida dos isolados. Durante o período da noite e madrugada, apesar da vigília, os isolados cortaram todas as cordas das ubás e afundaram uma das voadeiras da FUNAI com motor.



30/06/2014 – segunda-feira

Por volta das 7:00, os Ashaninka que tinham descido na praia do simpatia nos informaram que os índios isolados estavam descendo novamente rumo a aldeia, descemos na praia e montamos um esquema para impedir que eles subissem novamente para realizar saques. Uma equipe ficou na frente e outra com espingardas atrás. Orientamos que ninguém ficasse sozinho frente aos isolados, mantendo sempre um numero maior que eles. Eles utilizaram a ubá do Gilberto Kampa (tinha deixado no rocado) para atravessarem o rio.
Atravessaram o rio Envira e deixaram a ubá na praia localizada acima da aldeia. Estavam em 04 pessoas. Eles se deslocaram pelo rio até a praia.
Ao chegarem à praia da aldeia Simpatia já foram logo pedindo coisas, tipo camisas e panelas.  Não foi fornecido. A equipe da FUNAI manteve um dialogo através de gestos calmo e tranquilo. Eles subiram o barranco, mas foram contidos antes de entrarem na aldeia. Qualquer investida era contida mostrando as armas, o que os deixavam bastantes nervosos. Meirelles tinha esse papel de impedir  a entrada deles, quando tentavam entrar na aldeia ele gritava, assoprava e mostrava a arma.
Foi tentado realizar trocas com os isolados, do tipo mostrávamos um terçado e pedíamos uma flecha, mostrávamos artesanatos (eles demonstravam grande interesse) e pedíamos algum ornamento deles, mas nenhuma troca obteve sucesso.
Ao perceberem que não obteriam sucesso nos saques, pediram algo para comer, foi dada banana, macaxeira cozida, coco e carne assada, sendo que só comeram as bananas. Desconfiavam de tudo que dávamos para eles comerem. Eles abriram os cocos, tomaram um pouco da água e deram o restante para a equipe que ficou a frente na contensão.
Num certo momento o servidor Artur fez um cigarro de tabaco e acendeu em frente aos isolados, eles ficaram bem exaltados e pediram o tabaco e o isqueiro. O tabaco foi fornecido, eles pegaram, cheiraram e pediram para que Artur desse o cigarro feito. Artur forneceu o cigarro, eles deram algumas puxadas e guardaram para mais tarde. Artur tentou trocar o isqueiro por uma flecha, mas os isolados não quiseram.
Fernando Kampa apareceu num certo momento tirando algumas fotos bem de perto, ao bobiar por um minuto, estava mostrando o funcionamento do isqueiro, um isolado tirou a câmera do Fernando que estava no bolso e foi embora.
Ao perceberem que não obteriam sucesso nos produtos industrializados resolveram ir embora. O tempo de permanência foi de 1:30 h no barranco da aldeia Simpatia. Ao sair um indígena isolado espirrou, ao entrar no rio o mesmo deu uma tossida.



IVANA BENTES É necessário amansar os brancos

Documento de cultura, documento de barbárie é a primeira coisa que vem a cabeça vendo os relatos dos indigenistas e agentes que participaram dos contatos com os índios isolados do Acre.
A própria forma de percebê-los ganha materialidade nos confrontos com o Estado: avistamentos, vestígios, confrontos armados, mortes dos “isolados”, mortes dos moradores brancos, conflitos com narcotraficantes, etc.
O que acontece depois do contato? Muitos vão morrer pela simples proximidade e contágio com as gripes e doenças corriqueiras dos brancos. Como se preparar para o encontro, que estratégias, qual o melhor momento? É sintomático que os contatos se intensifiquem quando as terras indígenas são comprimidas, pelo desmatamento, pressão de madeireiros, mineradoras, prospecção de petróleo, tráfico de drogas, missionários.
Os índios isolados “fazem contato” numa situação critica, como disse o antropólogo Terri Aquino. Indios ”isolados” de quem? Não somos isolados, bravos, invisíveis, cercados, somos resistentes. Vocês não acham a gente, índio já está ali desde sempre, é como o jabuti na floresta, ninguém acha o jabuti, só encontra quando ele está passando disse o indígena jaminawá Zé Correia na sessão emocionante de apresentação das imagens inéditas do contato com os “índios isolados” mostradas pela Funai durante 66ª Reunião Anual da SBPC, no Acre.
Correia acompanhou os primeiros contatos da Funai na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, na região do Acre de fronteira do Brasil com o Peru. O depoimento continua dizendo: “Os Indios não são ‘isolados’ são livres e circulam porque não sabem dessas fronteiras que os brancos inventaram, não tem indígena do Peru, do Brasil, da Bolivia, nós somos o mesmo povo. Não queremos ser mandados, queremos ser parceiros da FUNAI para ajudar os parentes isolados.”
No vídeo apresentando vemos as imagens de garotos indígenas muito jovens no primeiro encontro, tenso e com um misto de celebração e desespero dos agentes do encontro: “papa não, não pode! No, no, no! Panela, não! Não, tem doença!” quando pegam uma muda de roupa. A aproximação pelo oferecimento de comida.
O interesse dos indígenas pelos terçados, machados e também gestos de impaciência com as reprimendas e ansiedade dos brancos. O Estado brasileiro (ou qualquer estado) está preparado?
A missão foi exitosa, diz Carlos Travassos, mas as condições precárias da Funai, a burocracia, a dificuldade em trabalhar em cooperação entre Brasil, Peru, Bolivia, os desafios da Pan Amazônia se impõem.
Numa infinita remediação de um campo e uma situação que precisa de atenção mais do que urgente e que sofre retrocessos constantes. “Só queremos viver” disse um dos indígenas.
Foi uma sessão emocionante com antropólogos, estudantes, agentes da Funai, e indígenas na SBPC em Rio Branco-Acre.
Ouvimos os relatos do antropólogo Terri Aquino, do indígena Jaminawá José Correia, do antropólogo de Porto Maldonado, no Peru, Alfredo Gárcia Altamirano, de Carlos Travasso, da Coordenação-geral de Indios Isolados da Funai e de outros indígenas da região.

* Ivana Bentes é professora e pesquisadora da Escola de Comunicaçao da UFRJ  




Tão impactante quanto o primeiro, publicado na terça-feira (29) e que obteve mais de 900 mil visualizações em dois dias, este novo vídeo mostra a alegria e a coragem de três jovens índios que até então viviam em isolamento. Após o primeiro contato, eles se ausentaram e depois reapareceram na praia do Rio Envira, causando alvoroço aos ashaninka e à equipe da Funai.
Preocupados com a possibilidade de que os isolados saqueassem mais uma vez as casas da Aldeia Simpatia, funcionários da Funai e os ashaninka chegaram a implorar, em vão, para que o trio indígena fosse embora.
Os índios isolados que estabeleceram contato pertencem a um subgrupo do tronco linguístico Pano. O primeiro contato foi dificultado pelo fato de que não conseguiram se comunicar com os ashaninka e com os servidores da Funai.
A reportagem contou com a colaboração dos indígenas Júlio e Durines, ambos da etnia jamináwa, que traduziram o que os três isolados dizem durante quase 20 minutos de vídeo.
Os isolados não gostaram quando se aproximaram e foram recebidos de modo ríspido por alguém da equipe que portava espingarda e estava empenhado em evitar novos saques. Um deles alertou:
- Se vocês nos maltratarem, nós vamos botar feitiço em vocês.
Os isolados pediram que os brancos da equipe se ausentassem, pois queriam ficar a sós com os indígenas ashaninka da Aldeia Simpatia.



A certa altura, quando alguém da equipe da Funai imita barulho de arma de fogo e tenta tranquilizá-los de que não vão usar espingardas contra eles, um isolado avisa que são acostumados a guerrear contra os brancos. E explica:
- Nós estamos aqui porque outros povos costumam matar a gente na floresta. É por isso que nós estamos aqui. Os outros não se dão bem com a gente. As pessoas falam bem de vocês. É por isso que nós estamos aqui. O meu pai está lá, mas eu estou aqui. Nós somos acostumados a brigar com outros povos. Vocês podem matar um de nós, mas vocês também vão morrer. Como é a vida lá? Como é a vida de vocês? Não estamos com raiva.
Os isolados sugerem a troca de arco e flecha por espingardas, dizem que as flechas dos ashaninka são mais bonitas do que as flechas deles, mas fazem questão de deixar claro que não estão em guerra:
- Eu sou homem e por isso estou aqui, para nos entendermos. Eu vim até aqui pra visitar o lugar de vocês.
O índio isolado mais jovem, aparentemente o mais destemido e brincalhão, entoa um canto. Ele não esconde o sorriso quando a canção diz:
- Nós estamos aqui e não estamos com medo de vocês. Não somos crianças pra ter medo de vocês. Vocês não são nossas mulheres pra gente ter medo de vocês.
O dia finda, a noite chega, e o ambiente se torna ainda mais pacífico quando os isolados começam a imitar com perfeição canto de pássaros da floresta.

Índios isolados podem ser exterminados no Acre por despreparo da Funai


Jovens indígenas de grupo isolado durante o primeiro contato no Acre
Além dos massacres perpetrados há anos por madeireiros e narcotraficantes do lado peruano, os povos indígenas isolados que vivem na fronteira do Acre com o Peru correm risco de extermínio por causa do despreparo e da falta de estrutura da Fundação Nacional do Índio (Funai) do lado brasileiro.
A Frente de Proteção Etnoambiental Envira foi invadida há três anos por narcotraficantes peruanos, os funcionários da Funai fugiram e a base só foi reaberta no mês passado, quando os índios isolados tomaram a iniciativa de estabelecer os primeiros contatos.
O antropólogo Terri Aquino, da Funai, que há 39 anos atua na região, declarou ao Blog da Amazônia que a autarquia não está preparada para estabelecer contato com povos indígenas isolados porque desde 1987 adotou como política o não contato.
- Os índios isolados estão em busca de proteção e de acesso à tecnologia, ou seja, machado, pólvora, terçado, panela. Chegou a hora do estado brasileiro ser generoso. Não pode ficar o tempo todo dizendo não e não aos isolados. Do contrário, nesta fase do contato, os isolados podem se revoltar e acontecer um massacre envolvendo a jovem equipe de indigenistas da Funai que pouco conhece a floresta – alertou.



Em vídeo gravado pela equipe da Funai, na Aldeia Simpatia, da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, o sertanista José Carlos Meirelles, que viveu durante mais de 20 anos na FPE Envira e atualmente trabalha na Assessoria Indígena do governo do Acre, disse que o grupo de índios isolados que buscou contato com a Funai está sendo pressionado por pessoas (madeireiros e narcotraficantes) que atuam no Parque Nacional do Purus, no Peru.
Meirelles relatou que os índios deixaram claro que estão sendo mortos a tiros de espingarda e que tocaram fogo em suas casas.
- São todos jovens e a impressão que passa é que esse povo quer se chegar a alguém que não mate eles. Estão pedindo para a gente a nossa obrigação funcional. Esse pessoal está pedindo à Funai o que o estado brasileiro tem dever de fazer. Eles nem precisariam estar pedindo, pois é obrigação nossa.
O sertanista considera a situação complicada e defende que a FPE Envira receba apoio real para que possa proteger os índios isolados.
- Se não derem estrutura para que as pessoas segurem o que vem por aí, infelizmente nós vamos repetir a história e seremos co-responsáveis pelo extermínio desse povo. Se a gente não fizer nada agora, se o estado brasileiro não se movimentar e realmente entender que essas pessoas merecem viver, que o estado brasileiro diga que vai deixá-los morrer. Não dá mais para contemporizar. Ou faz, dando estrutura, ou o estado brasileiro diz: tudo bem, mais um genocídio no meu currículo.
Terri Aquino revelou que já existe um clima de insatisfação envolvendo o grupo de oito índios isolados que se estabeleceu desde o domingo (27) na FPE.
- Os isolados querem terçados, munição, armas, panelas, roupas. A Funai não tem nada para oferecer e isso já forçou o recuo do pessoal do pessoal da base da FPE para a Aldeia Simpatia. Os conflitos surgem em bases de contato quando os índios chegam e não encontram nada.
No entendimento do antropólogo, a Funai precisa cuidar de um nova terra para os índios isolados e indenizar as benfeitorias das famílias dos índios do entorno saqueadas pelos isolados. Foram mais de 70 casos de saques nos últimos 30 anos, sendo a maioria no período de 2006 a 2013.
- As famílias nunca foram indenizadas. Os ashaninka, por exemplo, receberam os índios isolados e não tiveram nenhuma reação agressiva. Perderam tudo o que tinham. A Funai, sem cogitar indenizar essas famílias, cria um ambiente desfavorável no entorno. Isso pode criar uma reação agressiva.
Terri Aquino acha imprescindível a presença da Força Nacional de Saúde para prestar assistência e imunização contra doenças que os índios isolados não tem resistência.
- É preciso atender da mesma maneira os índios do entorno, que estão totalmente desassistidos. Eu mesmo presenciei recentemente, na Aldeia Simpatia, criança morrendo de diarréia. A Funai não vai segurar os isolados na base sem que não tenha nada para oferecer.  Não tem comida, nada. A Funai pode ser responsável até pela morte de seus funcionários.


Terri Aquino e Carlos Travassos cobram apoio do governo à Funai
O geógrafo Carlos Travassos, chefe da Coordenação-geral de Índios Isolados da Funai, informou que opera com apenas R$ 2,3 milhões no orçamento, sendo que 30% estão contingenciados. Recentemente, no Acre, o indigenista Guilherme Siviero, tirou do próprio bolso R$ 800 para comprar um canoa necessária para o trabalho da equipe envolvida na proteção dos isolados.
- A previsão é de que no próximo ano haja redução orçamentária. É assim que atuamos na proteção de 27 grupos de índios isolados confirmados, monitorando 31 milhões de hectares de terras indígenas na Amazônia Legal, onde são mantidas 12 frentes de proteção etnoambietnal – afirma Travasssos, que trabalha na Funai há sete anos, tendo atuado nas frentes de proteção etnoambiental do Javari e Médio Purus.
Também, em vídeo gravado pela Funai na na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, o coordenação-geral de Índios Isolados da Funai disse que é crescente a dificuldade orçamentária e de recursos humanos. Planeja, faz uma série de diagnósticos, busca criar planos de contingência para situação de contato, mas surgem vários cortes orçamentários, além do recrudescimento sobre as obrigações do estado brasileiro em reconhecer terras indígenas onde há a presença de índios isolados.
- Nosso orçamento, por mais que tenhamos mostrado e comprovado a necessidade de se aumentar, o que temos visto é a diminuição. Os compromissos estabelecidos na área de saúde não vem sendo cumpridos. As populações indígenas no entorno dos povos isolados talvez tenham a pior atenção na área de saúde.
Segundo Travassos, a base do Xinane, que foi fechada por causa da presença de narcotraficantes vindos do Peru, contou com reações esporádicas da Polícia Federal, sempre com muito sacrifício.
- O que temos ouvido é que é uma presença inócua de narcotraficantes e que isso não é prioridade para as autoridades policiais. Acho isso um absurdo. Acho que quando se tem uma população de povos isolados e povos contatados, à mercê de bandidos, que trabalham ilegalmente com o uso da força, da espoliação de território e de genocídios, isso deveria ser levado a sério dentro de uma política nacional e internacional encabeçada pelo Brasil.
No epoimento a que a reportagem teve acesso, Travasssos assinala o fato de que os índios isolados que procuraram estabelecer contato são muito jovens.
- Hoje, a situação que temos é ver esses jovens, que sobreviveram a alguns massacres. Talvez seja a última vez que estejamos vendo esses meninos, que amanhã podem estar mortos, seja por doenças ou tiros de espingarda. Faço um apelo ao alto escalão do governo, principalmente ao Ministério do Planejamento, que tem ignorado nossos projetos e nossas solicitações de medidas orçamentárias. Faço um apelo às forças federais de segurança pública para que possam nos dar apoio na região. Temos que ter capacitação para enfrentar grandes criminosos que vem do outro lado com grande poder de fogo. Dispomos de todas as informações do que é necessário para se realizar um trabalho melhor. Isso já foi repassado ao governo e eu gostaria que isso fosse tratado seriamente. Muitas vezes essa questão dos índios isolados, a informação que levamos, não são levadas a sério. Os servidores da Funai se sacrificam para proteger esses povos, mas o governo precisa dar apoio para que se possa realmente fazer um trabalho humanitário, correto e republicano, para que populações inteiras não sejam exterminadas.



Governo aprova R$ 5 milhões para proteção aos índios isolados



Por causa da repercussão nacional e internacional decorrente da publicação de imagens de um povo indígena isolado estabelecendo contato no Acre, o governo brasileiro aprovou um projeto que prevê a aplicação de R$ 5 milhões nos próximos cinco anos para apoio e proteção aos índios isolados no Estado. Concebido e coordenado pela organização não-governamental Comissão Pró-Índio do Acre, indigenistas e antropólogos, o projeto foi apresentado nesta quinta-feira (31) pelo senador Jorge Viana (PT-AC) ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e à presidente da Funai, Maria Augusta Assirati.
A justificativa do projeto é a de que, no contexto das transformações pelas quais passa atualmente a região transfronteiriça Brasil-Peru, torna-se necessária e urgente uma atuação mais efetiva do Estado brasileiro no sentido de minimizar os impactos fundiários, econômicos e socioambientais decorrentes das obras de infraestrutura e da exploração dos recursos florestais, petrolíferos e minerais.
O projeto consiste na reestruturação da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Envira, com a revitalização de suas bases de proteção etnoambiental Xinane e Douro e a criação de duas novas bases no Alto Muru e Mamoadate, com objetivo de assegurar a proteção dos povos denominados “isolados” no Estado do Acre. Consiste também na realização de ações educativas e de sensibilização das comunidades do entorno, visando garantir a proteção e os direitos desses povos que, por vontade própria, decidiram permanecer numa situação de isolamento voluntário.
A base Xinane da FPE Envira foi invadida há três anos por narcotraficantes peruanos, os funcionários da Funai fugiram e só foi reaberta no mês passado, quando um grupo de índios isolados tomaram a iniciativa de estabelecer os primeiros contatos com indígenas da etnia ashaninka, na Aldeia Simpatia, e funcionários da Funai.
O projeto considera vital a participação das comunidades Kaxinawá, Ashaninka, Madijá, Manchineri e Jaminawa, que compartilham suas terras indígenas com povos não contatados, por meio da cooperação com suas associações de representação, visando o fortalecimento institucional a contribuição nas políticas de proteção aos povos indígenas isolados.
Entre os objetivos do projeto, estão previstas parcerias e troca de informações e experiências com organizações indígenas e governamentais envolvidas na proteção aos “pueblos en aislamiento voluntário” no lado peruano da fronteira.

Veja trechos do relato do projeto

“A exploração do caucho inicia-se no final do século XIX, em território peruano, nas cabeceiras dos rios que correm para o território acreano. Ao mesmo tempo, a empresa seringalista se estabelece nesses mesmos rios, no sentido inverso. A única diferença entre as duas explorações é que uma é itinerante e predatória, no caso do caucho, pela derrubada das árvores para a extração do látex.
Vários povos indígenas que viviam na região dos altos rios Purus e Juruá foram cercados, alguns deles exterminados pelas “correrias” (matança organizada) e outros incorporados aos seringais que se estabeleceram em seus territórios tradicionais.
Nas cabeceiras de alguns rios acreanos, tanto no Brasil como no Peru, não existe seringa nem caucho. Foram exatamente nessas áreas mais distantes e de difícil acesso que alguns povos indígenas conseguiram evitar o contato regular com as empresas seringalista e caucheira. E assim conseguiram, a duras penas, se refugiar e crescer durante todo o período da exploração da borracha.
Com o fim dos seringais nativos e da exploração da borracha, que praticamente se consolidou nos anos 1990, os índios isolados voltaram a ocupar seus antigos territórios. E neles encontraram seringueiros e povos indígenas contatados, que haviam sido remanejados de suas terras tradicionais pelas empresas seringalista e caucheira.
Desde o início da ocupação de seus territórios, esses povos, que resistiram ao contato regular com o mundo dos seringais, descobriram que o novo povo que ali chegara possuía machados, facões e panelas de materiais mais eficientes do que os de pedra, madeira e barro que fabricavam. Essas novas tecnologias foram se incorporando as suas culturas e a única forma de consegui-las seria saqueando o entorno, hoje constituído, na sua maioria, pelos Kaxinawá, Madijá e Ashaninka, secularmente contatadas, e por comunidades ribeirinhas estabelecidas nos antigos seringais, nos altos rios Iaco, Acre, Chandless, Purus, Envira, Muru, Iboiaçu, Humaitá, Tarauacá, Jordão e  Breu.   Até 1988, a política do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas isolados era de contatá-los. A partir dessa data, a política passa a ser a da proteção, sem a necessidade do contato. Nesse ano, foi criada a Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Envira.
A FPE Envira tinha um efetivo de pessoal constituído por um sertanista e vários mateiros terceirizados, que permaneciam nas bases de proteção. A substituição dos mateiros regionais pelos “auxiliares em indigenismo”, novos servidores da Funai concursados em 2010, mas com pouca experiência de campo, resultou no esvaziamento da Frente Envira, em sua função principal de proteger os povos isolados, seus vizinhos e seus territórios.”

Corredor contínuo de terras indígenas e unidades de conservação ocupadas e utilizadas pelos "isolados"

"No Estado do Acre, ao longo da fronteira internacional Brasil-Peru e de suas cercanias, dez terras indígenas e duas unidades de conservação (um parque estadual e uma estação ecológica federal), com extensão agregada de pouco mais de 2,1 milhões de hectares, distribuídas em sete municípios, constituem territórios de moradia permanente e/ou de usufruto de grupos indígenas "isolados", como se pode observar na tabela abaixo.
Nos últimos 25 anos, a FPE Envira localizou quatro povos isolados distintos no lado acreano da fronteira Brasil-Peru, três deles agricultores, com suas malocas e roçados situados nas nascentes do rio Humaitá, afluente da margem direita do alto rio Muru, e nas cabeceiras dos igarapés Riozinho e Xinane, afluentes de ambas as margens do alto rio Envira.  Provavelmente, esses três povos isolados agricultores falam idiomas da família linguística Pano.
Os chamados “isolados do rio Humaitá” são também conhecidos como “brabos acreanos”, porque sempre viveram ali nas florestas das terras firmes colinosas nos divisores de águas compreendidas entre as nascentes desse rio e as cabeceiras dos igarapés da Inês, Paranãzinho, Anjo, Simpatia, Dois Irmãos, afluentes da margem esquerda do alto rio Envira. Nesta área foram localizados mais de 10 conjuntos de malocas e roçados, o que indica uma população formada por mais de 300 índios. Provavelmente, a maior população dentre esses índios isolados agricultores. Suas trilhas de deslocamentos pela floresta se estendem desde as nascentes do Humaitá até a sua foz, percorrendo todas as cinco aldeias da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, passando ainda pelos altos rios Envira e Muru e por todo o curso do rio Iboiaçu.
Já os “isolados do Riozinho” tiveram suas malocas e roçados localizados à primeira vez nos sobrevoos promovidos pela Frente Envira, em 2003 e 2004, no contexto dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Riozinho do Alto Envira. Parecem ser parte do mesmo grupo isolado que ocupa as cabeceiras do rio Curanja, afluente da margem esquerda do alto rio Purus, logo do outro lado da fronteira. Pelo número de malocas e roçados, sua população foi estimada em mais de 150 índios. Até agora são os únicos que não se deixaram avistar nos inúmeros sobrevoos já realizados sobre suas malocas e florestas.
Por sua vez, os “isolados do Xinane” migraram, a partir de 2006, do lado peruano da fronteira para as cabeceiras do igarapé de mesmo nome, na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Suas malocas, roçados e os próprios “isolados” foram recentemente fotografados nos sobrevoos promovidos por uma equipe do CIMI e da Reuters. Sua população, estimada pela Frente Envira, é de aproximadamente de 100 a 150 índios isolados.
Um quarto povo isolado, os Mashco-Piro, formado por vários bandos nômades, percorrem as florestas das nascentes de quatro grades bacias hidrográficas da Amazônia peruana (Madre de Dios, Purus, Juruá e Ucayali). Entram em território acreano pelo Acre, Iaco, Chandless e Envira, que são rios binacionais.
Em seus deslocamentos pelas florestas das cabeceiras dos mencionados rios acreanos, quase sempre na época seca de verão amazônico, não cultivam roçados nem constroem malocas, Em diversos locais das cabeceiras desses rios foram localizados apenas acampamentos provisórios, com dezenas de tapiris, indicando para cada um de seus grupos extensos uma população constituída por 100 a 150 índios, Em seus acampamentos temporários foram encontrados muitos ossos de caças, cascos de jabutis e cocos quebrados, mas não foram vistos nenhuma escama e espinha de peixes, bem como cascos e ovos de tracajás e tartarugas, indicando condições de vida típicas dos grupos de caçadores e coletoras nômades da floresta.
Na época das chuvas de inverno, ocupam as cabeceiras do rio Madre de Dios e de seus afluentes Tahuamanu, las Piedras e los Amigos, tantos nas Reservas Territoriais Mashco-Piro e Murunahua, quanto no Parque Nacional Alto Purús, em território peruano. Fala a mesma língua dos Manchineru/Yine da Terra Indígena Mamoadate, um idioma do tronco linguístico Aruaque. Com base nos sobrevoos e incursões terrestres promovidos na região acreana fronteiriça, a Frente Envira, criada oficialmente em 1988, estima uma população agregada dos “isolados” no Estado entre 600 e 1.000 índios, talvez a maior concentração de índios isolados na Amazônia brasileira.
No Estado do Acre, as terras tradicionalmente ocupadas por esses quatro povos isolados são compartilhadas com grupos indígenas secularmente contatados, dentre eles, os Kaxinawá, Ashaninka, Madijá, Manchineri e Jaminawa.
No lado peruano, também existe um mosaico contínuo extenso formado por áreas de comunidades nativas, parques nacionais e reservas territoriais para índios isolados. No início da primeira década do presente século, um novo modelo de ocupação se inicia em ambos os lados da fronteira.
Nos últimos 15 anos, a região transfronteiriça formada pelas calhas dos altos rios Madre de Dios, Purus, Juruá e Ucayali, anteriormente habitada quase que exclusivamente por povos indígenas isolados e contatados e por populações tradicionais, passou por profundas transformações econômicas e socioambientais decorrentes da intensificação das frentes madeireiras e petrolíferas e de grandes obras de infraestrutura, que provocaram impactos significativos nas populações locais, sobretudo nas últimas áreas de refúgio desses povos isolados.
No Estado do Acre, essas transformações repercutiram intensamente entre 2004 e 2006, com as invasões promovidas por madeireiros ilegais peruanos, patrocinados por empresas madeireiras de Pucallpa, na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia e no Parque Nacional da Serra do Divisor.   A partir de 2006, houve um reordenamento territorial entre povos isolados ao longo da fronteira Brasil-Peru, levando alguns deles a se deslocarem do lado peruano da fronteira para terras indígenas acreanas, a exemplo do grupo isolado das cabeceiras do Xinane que migrou para a Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Provavelmente fugindo das invasões promovidas por madeireiros ilegais em suas últimas áreas de refúgio situadas na Reserva Territorial Murunahua e no Parque Nacional do Alto Purus, em território Peruano.
A partir de 2010, a presença de narcotraficantes nas cabeceiras do rio Envira, provavelmente buscando novas rotas do tráfico de cocaína e outras drogas ilícitas, praticamente fechou a base Xinane da Frente Envira e que, desde então, encontra-se desativada.”

Justificativas

"No contexto das transformações pelas quais passa atualmente a região transfronteiriça Brasil-Peru, torna-se necessária e urgente uma atuação mais efetiva do Estado brasileiro no sentido de minimizar os impactos fundiários, econômicos e socioambientais decorrentes das obras de infraestrutura e da exploração dos recursos florestais, petrolíferos e minerais.
A construção da rodovia Interoceânica, a abertura da estrada Jordão-Novo Porto, interligando os altos rios Tarauacá e Muru, nas proximidades da fronteira acreana, e o projeto de construção da estrada Iñapari-Puerto Esperanza, interligando as calhas dos altos rios Acre, Iaco e Purus, bem como a intensificação das frentes madeireiras e petrolíferas, do narcotráfico e outras atividades ilegais, no lado peruano da fronteira, certamente têm trazido às terras indígenas acreanos impactos socioambientais negativos, promovidos por caçadores e pescadores predatórios, madeireiros ilegais e, mais recentemente, pelo narcotráfico.
Por outro lado, a intensificação das frentes madeireiras e petrolíferas no lado peruano da fronteiratêm provocado amigração forçada de grupos de índios isolados para terras indígenas acreanas, a exemplo do que aconteceu a partir de 2006, quando um grupo de índios isolados, provavelmente oriundos da Reserva Territorial Murunahua e/ou do Parque Nacional Alto Purús, mudou-se para as cabeceiras do igarapé Xinane, na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira.
Essas dinâmicas econômicas transfronteiriça também têm provocado contatos forçados com grupos “isolados” e mudanças no calendário de seus deslocamentos por ambos os lados da fronteira. Têm promovidos ainda intensificação do desmatamento; diminuição das ofertas de caça e pesca e de outras formas tradicionais de sobrevivência; mudanças culturais abruptas entre os povos indígenas que vivem próximos das estradas; aumento da violência e da possibilidade de confrontos armados, envolvendo povos indígenas, sobretudo os isolados.
Conflitos também ocorrem devido ao crescente aumento dos casos de saques promovidos por grupos de índios isolados nas aldeias das terras Kaxinawá, Ashaninka, Madijá, Manchineri e Jaminawa, bem como nas casas de moradores não indígena do entorno destas terras, a maioria delas já regularizada pelo governo brasileiro. Por conta disso, as famílias indígenas e regionais veem reivindicando a indenização dos bens saqueados para se evitar a criminalização e o aumento dos confrontos armados com grupos de índios isolados.
Para a reestruturação de duas bases de proteção já existentes, Xinane, e Douro e a construção de duas outras, Alto Muru e Mamoadate, é imprescindível a contratação de recursos humanos especializados para a realização de trabalhos de localização, monitoramento e vigilância em locais estratégicos e de difícil acesso, possibilitando assim uma proteção efetiva aos povos isolados.
Além disso, é necessário fortalecer a cooperação entre Brasil-Peru para propiciar maior fluxo de informações e ações coordenadas para a proteção dos povos indígenas isolados, a partir de experiências e termos de cooperações já existentes.
A reestruturação das bases de proteção e a construção de novas bases da Frente Envira, possibilitarão ao Estado uma oportunidade de garantir, com ações de localização, monitoramento, vigilância e fiscalização, a proteção dos povos isolados e seu entorno e, com a implementação de ações educativas, como as oficinas de sensibilização e informação que promovem e facilitam o diálogo entre os diversos interesses e populações da floresta.
Em 2009, iniciou-se um ciclo de “oficinas de informação e sensibilização sobre povos isolados” na Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá e nas comunidades de moradores não indígenas dos rios Iboiaçu e alto Muru, estendidas no ano seguinte às terras Kaxinawá de Jordão e Alto Tarauacá. E, logo em seguida, realizadas nas terras Ashaninka e Madijá do alto rio Envira. Essas oficinas foram promovidas pela Comissão Pró-Índio do Acre em parceria com a Frente de Proteção Etnoambiental Envira, o governo do Estado e o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.
Como produtos gerados nestas oficinas, destacam-se: produção de um Mapa da Presença de Índios Isolados nos Altos Rios Iboiaçu, Humaitá, Muru, Tarauacá, Jordão e Envira; atualização de Planos de Gestão de Terra Indígenas compartilhadas com “isolados”; mapeamento de malocas, roçados e trilhas de deslocamentos de três povos isolados agricultores distintos; produção de um relatório preliminar sistematizando informações sobre a situação dos “isolados” em ambos os lados da fronteira; disponibilização de partes das terras Kaxinawá do Jordão e do Humaitá, situadas mais às cabeceiras de seus rios, para uso dos povos isolados; propostas de indenização dos bens saqueados pelos “isolados”; recomendações para o reconhecimento oficial de uma nova terra indígena para usufruto de índios isolados e aparticipação dos Kaxinawá, Ashaninka, Madijá, Manchineri e Jaminawa nas ações de vigilância e fiscalização desenvolvidas pela Frente Envira em suas bases de proteção etnoambiental.
Para isso, é fundamental que haja, na criação, estruturação e manutenção das bases, o protagonismo indígena, por meio da consolidação das parcerias com as associações das comunidades que compartilham seus territórios com os isolados, por meio da elaboração de Termos de Parceria com cada uma delas, (Associação do Povo Indígena do Rio Humaitá -ASPIRH,  Associação de Cultura do Humaitá-ACIH, Associação dos Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão-ASKARJ, Organização do Povo Manchineri do Rio Iaco-MAPKAHA e Associação do Povo Ashaninka do Rio Envira-ASPARE), bem como de mateiros regionais, para que as bases não fiquem à mercê das contingências financeiras e burocráticas.
As parcerias com as diversas instâncias do poder público acreano e com as organizações da sociedade civil permitirão, além do envolvimento de profissionais qualificados e o desenvolvimento de metodologias adequadas, o comprometimento de boa parte da sociedade e dos que já atuam nas terras indígenas compartilhadas com os isolados. Sem um entorno parceiro não há como o Estado brasileiro proteger efetivamente esses povos isolados. A participação, capacitação dos indígenas e mateiros regionais que se encarregarão do funcionamento cotidiano das bases da Frente Envira, assim como as oficinas nas terras indígenas compartilhadas com os “isolados” e nas comunidades de moradores não indígenas do entorno, certamente resultarão numa mudança significativa de uma nova mentalidade em relação a esses povos que ainda mantêm uma intensa relação com a floresta.
A comunicação, a troca de experiências e a informação são outros fatores importantes para o sucesso, a continuidade e o desenvolvimento pleno das potencialidades desse projeto. Nesse sentido, é importante criar um sistema de radiofonia eficiente, que permitirá às comunidades indígenas uma rápida comunicação entre si e com os órgãos competentes sobre a presença de índios isolados nas proximidades de suas aldeias.
Também se faz necessário a continuidade do intercâmbio de informações com organizações indígenas e instituições do governo peruano, que realizam trabalho de proteção aos “isolados” no outro lado da fronteira, como os encontros binacionais, o Grupo de Trabalho Transfronteiriço (GTT), o grupo de monitoramento de índios isolados, as relações construídas com organizações indígenas, a trocas de experiências entre povos dos dois lados da fronteira, o intercambio de bases de dados georreferenciados e termo de cooperação entre Ministério da Cultura (Peru) e Funai e, entre esta última e o governo do Estado.
A produção de materiais de divulgação das ações desenvolvidas (fascículos, boletins, folders, vídeos, mapas, artigos, etc.) terá como beneficiários não só os diretamente envolvidos, mas também servirá de suporte às escolas indígenas e dos municípios próximos à fronteira. O conhecimento das culturas, das línguas, da geografia e da história, da região, direta ou indiretamente, incidirá na qualidade do ensino, caso se garanta uma distribuição ampla desses materiais produzidos.
Divulgar, através dos meios de comunicação e das redes sociais, os impactos positivos das ações do projeto, sobretudo das oficinas, servirá para conscientizar o público em geral da importância de se respeitar os direitos e assumir, como tarefa de todos os acreanos a proteção dos povos da floresta."

via Altino Machado

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