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Ainda a propósito da manutenção do eterno sigilo de documentos históricos, no Brasil

Posted: 14 de jun. de 2011 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , ,

A propósito disto, seguem na íntegra e para reflexão dois textos do jornalista Luiz Cláudio Cunha e outro do jornalista Ricardo Setti.

(...)

por Luiz Cláudio Cunha *

Presidente Dilma, que coisa feia, hein?

Resistiu bravamente à pressão do ex-presidente Lula e agora está sucumbindo vergonhosamente à pressão combinada dos ex-presidentes Fernando Collor e José Sarney.
Semana passada, apesar do bafo salvador de Lula, que carimbou Antônio Palocci como “o Pelé da economia”, Dilma defenestrou o poderoso ministro-chefe do Gabinete Civil, aquele que caiu no governo passado por estuprar o sigilo do caseiro e que voltou a cair neste governo pela comovente defesa da virgindade de seu próprio sigilo.
Esta semana começa com Dilma se dispondo a manter o abjeto ‘sigilo eterno’ (sic) sobre documentos oficiais, uma ignomínia que atravessou incólume os 16 anos de governo somados do sociólogo FHC e do metalúrgico Lula, uma dupla que garantia ter um pé na cozinha da esquerda mais consciente.
[Hoje] presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Fernando Collor sentou em cima do projeto original de Dilma, que quebrava a eternidade do sigilo e permitia o máximo de 50 anos de segredo.
“É temerário”, repudiou o senador das Alagoas, alegando “constrangimentos diplomáticos” para fatos como a ditadura militar (1964-1985), o Estado Novo getulista (1937-1945) e até a Guerra do Paraguai (1864-1870), episódio este ocorrido há século e meio e que levou à morte 50 mil brasileiros.
Presidente do Senado Federal, José Sarney, vem agora em socorro de seu temerário sucessor no Palácio do Planalto, alegando que segredos eternos evitariam lesões nas relações diplomáticas do Brasil com seus vizinhos.
“Documentos que fazem parte de nossa história diplomática, que tenham articulações como Rio Branco teve que fazer muitas vezes, não podem ser revelados, senão vamos abrir feridas”, explicou, sem explicar nada, o cuidadoso Sarney, que nasceu 18 anos após o falecimento do Barão do Rio Branco (1845-1912).
Diante da curiosidade geral, cabe a pergunta: que feridas, cara-pálida?
O que poderia sangrar tanto nossa diplomacia? Que bobagens teria cometido o bom barão, o homem que redesenhou nossas fronteiras, para merecer esta santa proteção do bem informado Sarney?
Dias atrás Sarney expurgou da exposição oficial do ‘túnel do tempo’ do Senado o glorioso impeachment de Collor — o único afastamento legal de um presidente em 122 anos de República —, relegado por seu solidário colega de sigilo como um simples ‘incidente’, talvez uma ferida a ser escondida.
É sempre bom lembrar que, dentro de 48 dias, completam-se dois anos em que o jornal O Estado de S.Paulo vive sob a censura patrocinada pela família Sarney, que deseja um sigilo eterno para as estripulias do filho do senador, Fernando, indiciado na (agora secreta) ‘Operação Boi-Barrica’ da Polícia Federal por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e caixa 2.
Sabemos todos o que teme no presente o senador Sarney, mas ninguém imagina o que no passado pode assustar tanto o senador Collor, que aparenta ser um personagem bifronte da política brasileira.
Na tribuna, com voz grave e empostada, porte ereto e ternos sem vinco que parecem recém-saídos da lavanderia, Collor pode ser confundido com um lorde inglês desavindo num parlamento qualquer ao sul do Equador. De repente, porém, Collor pode perder a compostura, o palavreado e a elegância para revelar seu lado mais tosco, mais agreste, mais indecoroso.
Como fez em 2009, quando ganhou a imortalidade dos anais para um discurso, no plenário do Senado, onde confessava que estava ‘obrando, obrando e obrando” na cabeça de um colunista de VEJA. Como fez em 2010, quando ameaçou enfiar a mão na cara de um repórter da revista IstoÉ, num telefonema gravado onde o polido senador distinguia o jornalista como “filho da p…”.
Sabemos todos o que são Sarney e Collor. O que não se sabe, porém, é o que pretende Dilma Rousseff ao capitular diante de argumentos tão pífios de uma dupla de ex-presidentes tão contestados por episódios tão polêmicos no passado e no presente.
Dilma fez muito bem ao seu governo ao seu livrar, em boa hora, de Palocci. Dilma faz muito mal à sua biografia ao se render tão facilmente aos desígnios pouco claros de Collor e Sarney.
A presidente da República deveria respeitar mais sua própria história, bem mais exemplar do que seus dois oblíquos aliados e antecessores. Dilma combateu de armas na mão o regime militar que Collor e Sarney, no verdor da idade e no fervor da utilidade, apoiaram sem peias, nem meias medidas.
Um foi jovem da ARENA, outro foi cacique da velha ARENA. Dilma foi ao limite do sangue para combater essa gente e aquele regime.
Agora mesmo, 39 documentos sustentam uma ação civil pública na 4ª Vara Cível de São Paulo contra três oficiais do Exército e um da PM paulista, integrantes da Operação Bandeirante (OBAN), mãe do DOI-CODI da rua Tutóia, símbolo maior da repressão da regime.
O grupo é acusado pela morte de seis presos políticos e pela tortura em outros 20. Um dos acusados pelo suplício é o tenente-coronel reformado do Exército Maurício Lopes Lima, uma das presas torturadas é uma guerrilheira de 22 anos da VAR-Palmares chamada Dilma Rousseff.
Com o cinismo típico de sua turma, o coronel Lopes Lima deu uma entrevista, em novembro passado, logo após a eleição de Dilma: “Se eu soubesse naquela época (1970) que ela seria presidente, eu teria pedido – ‘Anota aí meu nome, eu sou bonzinho’”, admitiu ao jornal Tribuna de Santos.
O coronel teve o seu nome anotado pela história, como queria, mas com certeza não era bonzinho — apesar da fantasia de pacato veranista que hoje desfila nas águas mansas da praia das Astúrias, no Guarujá do litoral paulista, onde vive.
O frade dominicano Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, sobreviveu a terríveis torturas no DOPS do delegado Fleury. O que restava dele foi levado ao DOI-CODI do coronel Lopes Lima, que o deixou sob o trato de seis homens de sua equipe e do inefável pau-de-arara. No seu depoimento, frei Tito contou: “O capitão Maurício veio me buscar em companhia de dois policiais: ‘Você agora vai conhecer a sucursal do inferno’, ele me disse”.
Meses depois, cada vez mais atormentado pelos fantasmas da tortura, frei Tito foi para o exílio e acabou se enforcando numa árvore de um mosteiro nos arredores de Lyon, França, em 1974, um mês antes de completar 30 anos.
Agora, com a candura dos impunes, o coronel que teve seu nome anotado por Dilma e frei Tito reconhece: “Tortura no Brasil era a coisa mais corriqueira que tinha. Toda delegacia tinha seu pau-de-arara. Dizer que não houve tortura é mentira, mas dizer que todo delegado torturava também é mentira. Dependia da índole”.
Dilma conhecia bem a índole da turma do capitão Lopes Lima, que ela mesma impugnou como testemunha de acusação no seu processo da Justiça Militar: “O capitão é torturador e, portanto, não pode ser testemunha”, alegou Dilma, com lógica exemplar e o nome do bonzinho Lopes Lima devidamente anotado.
Apesar da natureza de seu algoz, Dilma sobreviveu a 22 dias de tortura e superou o trauma da dor. Quatro décadas e uma ditadura depois, em vez de escalar os galhos do balouçante desespero de Tito, Dilma subiu a rampa do Planalto como primeira mulher eleita presidente sobre o chão sólido da democracia.
Os homens que machucaram e atormentaram gente como Tito e Dilma eram simpatizantes, aliados, partidários e defensores do regime sustentado pela ARENA de gente como Sarney e Collor.
Entende-se, claramente, porque Sarney e Collor defendem o sigilo eterno.
O que não se entende, presidente Dilma, é como a senhora possa estar ao lado dessa gente, depois de tudo o que a senhora fez, depois de tudo o que eles fizeram.
Os nomes deles, presidente Dilma, estão todos anotados.
Sarney e Collor, presidente, não eram bonzinhos. Nunca foram.
Por favor, anote aí!

(publicado originalmente no Blog do Noblat e depois no Sul21, Congresso em Foco, Política & Cia e por aí vai)

O que assusta o valentão Collor?

O senador Fernando Collor é desbocado, imortal e fanfarrão. Em agosto de 2009 teve a coragem de assumir um papel nada higiênico sobre o veludo azul do Senado, confessando em discurso excretado nos anais que estava “obrando, obrando e obrando” na cabeça do colunista Roberto Pompeu de Toledo, de VEJA.
Um mês depois teve a audácia de transpor os umbrais da imortalidade arrebatando uma cadeira na Academia Alagoana de Letras − sem ter escrito até hoje um único livro − graças à camaradagem de 22 dos 30 intelectuais da terra. Os restantes oito imortais das Alagoas votaram corajosamente em branco. Em junho de 2010 invadiu destemido – pelo telefone − a sucursal da revista IstoÉ em Brasília para ameaçar o repórter Hugo Marques: “Se eu lhe (sic) encontrar, vai ser para enfiar a mão na sua cara, seu filho da p***!”, ameaçou o senador, com sua proverbial fineza.
Agora, Collor acaba de enfiar a mão na cara da presidente Dilma Rousseff, que ele diz apoiar.
O Planalto sonhava com a aprovação pelo Senado em 3 de maio passado, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, do projeto que libera o acesso a documentos sigilosos após 25 anos. Durante 16 anos, FHC e Lula se omitiram vergonhosamente do dever ético de fulminar o sigilo eterno que protege documentos que podem iluminar as trevas do passado. Com a hombridade que seus antecessores não tiveram, Dilma quer abrir os arquivos públicos que contam parte relevante da história brasileira.
Como presidente da Comissão de Relações Exteriores [do Senado], Collor avocou o projeto e travou a discussão. Alegou “constrangimentos diplomáticos”, citando quatro episódios históricos como fundamento para este absurdo. O primeiro, claro, é a “Ditadura Militar” (1964-1985), a respeito da qual o senador se perfila agora com nostálgicos do golpe e com a impunidade a torturadores, o que anistia nenhuma deveria agasalhar.
O segundo é o “Estado Novo” (1937-1945), período de arbítrio de Getúlio Vargas. O terceiro é a “”Questão do Acre”(1899-1903), conflito que começou com a invasão do território boliviano por seringalistas brasileiros e terminou com a anexação pacífica de um novo Estado ao Brasil, em troca de uma indenização à Bolívia e a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, onde morreram 6 mil trabalhadores.
O quarto episódio que assombra Collor é — acreditem — a Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado da América Latina, que produziu 370 mil mortos, dos quais 50 mil brasileiros. Tudo isso, que aconteceu há quase 150 anos, ainda é um “constrangimento diplomático”, segundo o sensível Collor.
Que constrangimento, cara-pálida? O Itamaraty, que apoia o projeto que abre os arquivos, não pode ser contrário a uma iniciativa do próprio governo Dilma. Certamente, o ex-presidente Collor não deve estar conspirando em causa própria. É sempre útil lembrar que seu tesoureiro de campanha, PC Farias, foi acusado pelo irmão, Pedro Collor, de ser o ‘testa-de-ferro’ do então presidente em uma extensa rede de corrupção e tráfico de influência no setor público.
Se a lei de Dilma passar, eventuais documentos ultrassecretos do “Esquema PC” estariam liberados a partir de 2017. Mas é a singular condição de único presidente demitido por justa causa do poder, no processo de impeachment de 1992, que lhe dá o merecido título de imortal. Para isso, Collor nem precisa escrever um livro.
Basta o que obrou em seu fugaz governo.

(publicado originalmente na revista mensal Meia Um, a 31 de Maio de 2011)

* jornalista
(...)

Sarney defende fim de sigilo de documentos recentes, mas faz ressalva sobre informações diplomáticas 

 O presidente do Senado, José Sarney, defendeu a abertura dos sigilos de documentos sobre dados da história recente do país, mas posicionou-se a favor da manutenção do sigilo eterno sobre determinados documentos oficiais históricos. De acordo com o senador, a revelação de certas informações poderia "abrir feridas" nas relações diplomáticas do Brasil com países vizinhos.
- Defendo a abertura de documentos recentes, agora, os documentos que fazem parte da nossa história diplomática, que tenham articulações como Rio Branco teve que fazer muitas vezes, não podemos revelar esses documentos, se não vamos abrir feridas - afirmou.
Segundo Sarney, o Brasil tem fronteiras tranquilas, sem atritos com os vizinhos, graças à capacidade de negociação de nossos antepassados.
- Tenho muita preocupação de que hoje tenhamos oportunidade de abrir questões históricas que devem ser encerradas - disse.
No que se refere ao "passado recente", Sarney salientou que todas as informações sobre sua atuação como presidente da República estão disponíveis para consultas públicas.
- Quanto a mim, meus documentos são públicos. Estão na Fundação José Sarney mais de 400 mil documentos para todas as consultas públicas, poderia dizer que sou um homem que nada tem a esconder - assinalou.
Está em tramitação no Senado o PLC 41/10, que regulamenta o acesso a informações de interesse coletivo produzidas ou custodiadas pelo Estado. De acordo com o projeto, uma Comissão Mista de Reavaliação de Informações, que deverá ser composta por ministros e representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, terá a missão de enquadrar as informações públicas por grau de sigilo em ultrassecretas, secretas e reservadas. Para cada uma dessas classificações há um prazo para a permissão de divulgação: 25, 15 e 5 anos, respectivamente, sendo prevista uma renovação.

(13.06.2011)
(...)

por Ricardo Setti *

Collor e Sarney, antes inimigos irreconciliáveis, hoje trabalham juntos contra a liberdade de informação

Não me estranha nem um pouco, mas não posso deixar de considerar pavorosa a posição do ex-presidente da República e presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), favorável ao sigilo eterno de determinados documentos em poder do governo. Ele hoje citou como exemplo os documentos relativos a fronteiras negociadas pelo patriota e maior diplomata da história do país, o Barão de Rio Branco (1845-1912).
A Sarney se juntou outro político de movimentado currículo, o ex-presidente e senador Fernando Collor (PTB-AL), que mantém postura semelhante sobre o projeto de lei complementar nº 41, de 2010, enviado pelo ex-presidente Lula ao Congresso no ano passado. O projeto, em que a presidente Dilma estava empenhada e que gostaria de haver sancionado já no dia 3 de maio passado, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, regulamenta o acesso a “informações de interesse coletivo produzidas ou custodiadas pelo Estado” e que, na prática, liberaliza o cofre blindado com que se mantêm documentos até sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870).
Quando Collor emergiu para a política nacional, em 1989, era o anti-Sarney: fez boa parte de sua campanha eleitoral com críticas pesadíssimas ao então presidente, a quem em mais de uma ocasião chamou de “ladrão” e para o qual, em comícios, chegou a pedir “cadeia”.
Agora, sorridentes colegas de Senado, conspiram juntos contra  liberdade de informação.
Sarney e Collor estão fazendo tudo para atrapalhar a aprovação do projeto, e parece que vão conseguir: a nova coordenadora política do governo Dilma, a ex-senadora Ideli Salvatti, já deu sinais de que, em nome de outros temas de interesse do governo que estão no Congresso, vai recuar em relação a esse precioso instrumento de liberdade de informação que poderia ser a nova lei.
Sarney, Collor e os que estão ao lado de ambos estão recusando aos brasileiros um direito básico, elementar, de que não se pode abrir mão de forma alguma: o direito de conhecer a própria História.

* jornalista

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