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Marina Villas Bôas: memórias da maior aventura brasileira do Séc. XX

Posted: 22 de dez. de 2011 | Publicada por por AMC | Etiquetas: , ,


Em 1963 uma enfermeira de 24 anos de idade desembarcava de um avião da FAB num precário campo de pouso ao norte do Mato Grosso, para ficar uma semana. Chamava-se Marina e ainda não sabia que, em terra, iria encontrar Orlando Villas Bôas, um dos maiores defensores dos povos indígenas brasileiros. Apaixonou-se pelo homem e pela quimera. Casaram e a enfermeira Marina acabou ficando não uma semana, mas 20 anos no Parque Nacional do Xingu. Entrou no combate com as armas que tinha e que eram, no fundo, as que a profissão lhe dava. Enquanto Orlando se ocupava da defesa política dos direitos dos índios, Marina cuidou de cuidar da saúde dos xinguanos. Até porque, por mais eficaz e bem sucedida a peleja de Orlando pelos 'Corredores do Poder', todos sabiam que fosse quando fosse, mais dia menos dia, «de qualquer jeito», em alguma hora «os brancos» haveriam de «entrar».
Orlando faleceu em 2003. Marina ficou ainda e, com ela, a memória viva de uma das maiores aventuras do Brasil do Séc. XX.


Marina Villas Bôas ofereceu saúde aos xinguanos, e hoje guarda a memória de uma das maiores aventuras brasileiras do século 20

TEXTO JANICE KISS
FOTOS ERNESTO DE SOUZA



TESOUROS guardados em casa por Marina: milhares de objetos amealhados durante suas andanças e as fotos que registram a criação do Parque Nacional do Xingu
Uma casa do bairro paulistano Alto da Lapa guarda um pedaço do Xingu. Nessa residência, instalada numa quieta rua onde o barulho da metrópole faz sua trégua, mora a mãe de muitos xinguanos, Marina Villas Bôas. Em 1963 a enfermeira de 24 anos de idade desembarcou de uma avião da FAB num precário campo de pouso ao norte do Mato Grosso, para ficar uma semana. Passou 20 anos no Parque Nacional do Xingu. Lá encontrou Orlando Villas Bôas, o maior defensor dos povos indígenas brasileiros, com quem viveu e se casou oficialmente nove anos mais tarde. Discreta, de fala mansa, Marina ficou conhecida como a esposa de um dos brasileiros mais importantes do século 20, falecido em dezembro passado. Porém, mais do que isso, ela foi um dos pilares do projeto idealizado pelo marido. Juntos, levaram uma vida em duplicata. Foram brancos e índios ao mesmo tempo. Enquanto Orlando e o irmão Claudio estruturavam o Parque, a moça nascida em Borborema, SP, percorria de avião, barco, jipe ou bicicleta os 25 mil quilômetros quadrados da reserva, onde vivem 6 mil índios e 17 etnias distribuídas em 30 aldeias.

CESTO UAUAPI
(maiaucu, segundo os índios), com dupla função: é usado para pegar peixinhos e serve de suporte para as panelas. Todas as tribos do Alto Xingu confeccionam peças como essa
Não fosse seu dedicado e obsessivo trabalho de enfermeira, um incontável número de crianças e adultos não teriam sobrevivido. Malária, da qual foi vítima umas 40 vezes, gripe e leishmaniose recaíam sobre a população indígena. Os recursos eram escassos, o que não impediu o controle das enfermidades e a redução a zero do índice de mortalidade infantil, trabalho reconhecido pela OMS - Organização Mundial da Saúde, na década de 70. Nessa luta Marina foi protagonista, ao lado de profissionais da saúde da Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo.
A população do Parque é grata a essa senhora, hoje com 65 anos de idade. Se Orlando é o d'junuá, o pai deles, Marina é a mãe, ama ou mama. Mas ela é quem agradece a convivência em uma sociedade organizada que respeita suas crianças e seus idosos. "Aprendi a viver com muito pouco", analisa. A modéstia contrasta com o grandioso tesouro guardado por Marina em um amplo estúdio de sua casa. Objetos, fotografias, manuscritos e outros registros dos anos de convívio no Xingu formam um acervo único, a memória de uma das maiores aventuras brasileiras do século passado. São a prova material de que é possível estabelecer uma relação de convivência e respeito entre culturas diferentes. Marina acha egoísmo reter esse material para a família. Após o falecimento do marido, ela se dedica à criação da Fundação Orlando Villas Bôas. Crê que seja uma forma de preservar a memória dos irmãos e permitir às novas gerações entender o significado da utópica história da reserva indígena que devolveu o Brasil aos brasileiros originais. link

Desbravadores


BRINCOS txucarramães, confeccionados com penas de tucano (vermelhas e amarelas) e de mutum (pretas) BORDUNA é uma arma usada para agredir o inimigo na cabeça. É típica dos txucarramães, considerados os índios mais bravos
Quando Marina aportou no Xingu, os irmãos Villas Bôas - Orlando, Claudio e Leonardo - já eram reconhecidos não só pela criação da reserva indígena, mas também pela expedição Roncador-Xingu iniciada na década de 40, que tinha o propósito de desbravar o Brasil Central quando a região não passava de uma desconhecida geografia. E a moça se encantou com tanta atenção dispensada por Orlando, que a recebeu pessoalmente no campo de pouso. No meio de inúmeras histórias sobre o apaziguamento dos índios, as dificuldades de sobreviver na floresta e a dura lida no sertão, Marina, que até então assinava Lopes de Lima, se apaixonou.
Não se pode dizer que foi amor à primeira vista, porque ela conhecera o sertanista na clínica médica, onde trabalhava, em São Paulo. Orlando era amigo de seu ex-chefe, o cirurgião Murillo Villela, que a havia incentivado a fazer um estágio no Xingu. No entanto, a bela enfermeira não havia passado despercebida pelo indigenista. E Orlando deve ter rezado para todas as divindades indígenas para que mandassem uma chuva torrencial no dia de sua partida. Ela só conseguiu sair de lá um mês depois, mas para retornar a São Paulo com o pedido de transferência para o Parque Nacional do Xingu.
"Muita gente achou que tinha endoidecido ou estava desiludida da vida", relembra, sorrindo. Mas ela encontrara sua razão de viver. E a busca incessante pela vida nos territórios indígenas fez com que, certa feita, os xinguanos dessem pela ausência de mortos para o Quarup, cerimônia religiosa dedicada aos que faleceram. Além do controle da malária, doença que aos poucos definha o sistema de defesa do organismo, a enfermeira mantinha um trabalho preventivo. Orientava os moradores para que, por exemplo, pegassem água somente no meio do rio na época das cheias. "As margens estavam poluídas com bichos mortos, insetos ou excesso de folhas das árvores", explica. Sufoco mesmo eram os partos complicados. Nesses momentos, a agilidade era instrumento necessário para desenrolar o cordão umbilical do bebê ou para uma respiração boca a boca, a fim de que o líquido amniótico engolido pela criança fosse retirado antes de ir para o pulmão. "A rapidez fazia a diferença entre a vida e a morte", conta. link

Cesariana



DE CASCA DE MADEIRA, a bolsa da tribo caiabi para as viagens. Caso chova, o produto nela guardado não se molha, pois suas laterais incham e se vedam.
Assim, protegem o mantimento ali guardado
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Sair do Xingu era uma tarefa quase penosa. Como deixar as crianças, os adultos e os velhos sem seu olhar protetor? Mas houve um motivo muito forte para uma dessas vezes. Marina teria seu primeiro filho, Orlando Villas Bôas Filho, carinhosamente chamado de Villinha. "Precisei de cesariana", explica. Caso contrário, o parto seria de cócoras, igual a todas as índias. Depois de seis meses em São Paulo, ela retorna e apresenta o filho ao Xingu. Como os demais indiozinhos, Villinha também foi zelado pelas outras mães. Mas a tranqüilidade de Marina ia-se embora à noite quando o risco do garoto ser picado por algum bicho duplicava. A preocupação lhe tirava o sono. "Dormia pouco como toda mãe do Xingu ou da cidade".
O MÉDICO SANITARISTA Noel Nutels (centro) apoiou os irmãos Villas Bôas e foi um dos primeiros a dar assistência médica no parque. Ele podia contar com a dedicação da enfermeira Marina (à dir.)
A saída de vez da reserva indígena foi em 1974, quando o menino precisou de escola. Um ano depois, ela teve o segundo filho, Noel, nome que homenageia o amigo e médico Noel Nutels, um dos primeiros a integrar a equipe dos irmãos Villas Bôas. É certo que, de tempos em tempos, Marina e Orlando voltavam ao Xingu levando as crianças. Elas passavam férias nadando nos rios, escalando árvores e, acima de tudo, convivendo com os xinguanos.
A readaptação à sociedade branca teve momentos penosos. A família precisou se desfazer do apartamento de São Paulo para comprar uma casa. Motivo: Orlando Filho entrava em pânico no elevador. Afora as datas e convites esquecidos - índio não faz a contagem do tempo como o branco - foi necessário se readequar a uma sociedade à qual já não mais pertenciam. "Por que as crianças estão sempre peladas?" ou "por que você não se arruma para sair?", foram perguntas que cansou de ouvir. O difícil era tentar explicar que tudo isso são apenas artifícios para viver. Em casa, Marina se encarregou de zelar pela saúde do cunhado Claudio, fulminada pela selva, que o levou à morte seis anos atrás. Mais do que cuidados médicos, ela tornou-se sua única interlocutora. Claudio não conseguiu retornar à civilização branca e preferiu os livros de filosofia à readaptação. link

Oca democrática



FERIMENTOS são comuns no dia a dia da reserva. Acima, Marina faz curativo no braço de um índio txicão, uma das últimas tribos a serem apaziguadas
Da capital paulista, Marina continuou seu trabalho de enfermeira ligado à Funai - Fundação Nacional do Índio. Buscava xinguanos doentes no aeroporto, atendia-os e, não raro, hospedava-os em casa até ficarem recuperados. Por sinal, a residência dos Villas Bôas é uma verdadeira oca democrática. Ali, são recebidos pesquisadores, historiadores e até excursões de escolas, numa mistura tamanha que mais se assemelha a uma enorme pajelança. A casa deles no Xingu já era assim. E depois que os hóspedes iam embora, o casal lavava as roupas de cama na beira do rio. "Ai, era tão romântico", relembra. Quando tem saudade, ela recorre à música de Chopin para relembrar tudo o que viveu, inclusive o primeiro beijo trocado com Orlando à beira do Rio Totuari.
CHAPA PINTADA e decorada para fazer beijus (bolinhos de massa de tapioca)
No mês passado Marina andava às voltas com um documentário que está sendo produzido sobre os irmãos Villas Bôas. Recebeu o amigo Pirakuman, da etnia yawalapiti, do Alto Xingu, que traduziu os depoimentos de seus familiares para o português. A sua estadia em São Paulo tinha, ainda, outro caráter: Pira, como é mais conhecido, é quem organiza o Quarup de Orlando, a cerimônia dos povos do Xingu para homenagear seus mortos, em geral caciques, pajés, grandes guerreiros ou pessoas que marcaram sua existência junto à comunidade.
PANELA em formato de animal serve para o cozimento de pequenas porções, como mingau ou pequi. Ao mesmo tempo, tornam-se peças decorativas para a tribo wauaurá, no Alto Xingu
Ao lado de Pirakuman, a enfermeira toma as providências para a cerimônia religiosa que vai mobilizar todo o parque e deve contar com pelo menos mil convidados. O Quarup será realizado no meio do ano, e marcará o regresso de Marina e dos filhos ao Xingu. Segundo a crença, Orlando chegará ao Ivát-Ivát, o céu do céu, onde não mora ninguém, apenas a sabedoria. "É para lá que foi Iãcatu, sua alma boa e eterna", diz a mãe branca do Xingu. link

Marina, interpretada no filme por Maria Flor no filme Xingu, de Cao Hamburger

Sobre o filme Xingu, aqui no Conexão:

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