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BRINCOS txucarramães, confeccionados com penas de tucano (vermelhas e amarelas) e de mutum (pretas) | BORDUNA é uma arma usada para agredir o inimigo na cabeça. É típica dos txucarramães, considerados os índios mais bravos |
Quando Marina aportou no Xingu, os irmãos Villas Bôas - Orlando, Claudio e Leonardo - já eram reconhecidos não só pela criação da reserva indígena, mas também pela expedição Roncador-Xingu iniciada na década de 40, que tinha o propósito de desbravar o Brasil Central quando a região não passava de uma desconhecida geografia. E a moça se encantou com tanta atenção dispensada por Orlando, que a recebeu pessoalmente no campo de pouso. No meio de inúmeras histórias sobre o apaziguamento dos índios, as dificuldades de sobreviver na floresta e a dura lida no sertão, Marina, que até então assinava Lopes de Lima, se apaixonou.
Não se pode dizer que foi amor à primeira vista, porque ela conhecera o sertanista na clínica médica, onde trabalhava, em São Paulo. Orlando era amigo de seu ex-chefe, o cirurgião Murillo Villela, que a havia incentivado a fazer um estágio no Xingu. No entanto, a bela enfermeira não havia passado despercebida pelo indigenista. E Orlando deve ter rezado para todas as divindades indígenas para que mandassem uma chuva torrencial no dia de sua partida. Ela só conseguiu sair de lá um mês depois, mas para retornar a São Paulo com o pedido de transferência para o Parque Nacional do Xingu.
"Muita gente achou que tinha endoidecido ou estava desiludida da vida", relembra, sorrindo. Mas ela encontrara sua razão de viver. E a busca incessante pela vida nos territórios indígenas fez com que, certa feita, os xinguanos dessem pela ausência de mortos para o Quarup, cerimônia religiosa dedicada aos que faleceram. Além do controle da malária, doença que aos poucos definha o sistema de defesa do organismo, a enfermeira mantinha um trabalho preventivo. Orientava os moradores para que, por exemplo, pegassem água somente no meio do rio na época das cheias. "As margens estavam poluídas com bichos mortos, insetos ou excesso de folhas das árvores", explica. Sufoco mesmo eram os partos complicados. Nesses momentos, a agilidade era instrumento necessário para desenrolar o cordão umbilical do bebê ou para uma respiração boca a boca, a fim de que o líquido amniótico engolido pela criança fosse retirado antes de ir para o pulmão. "A rapidez fazia a diferença entre a vida e a morte", conta. link
Cesariana
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DE CASCA DE MADEIRA, a bolsa da tribo caiabi para as viagens. Caso chova, o produto nela guardado não se molha, pois suas laterais incham e se vedam.
Assim, protegem o mantimento ali guardado. |
Sair do Xingu era uma tarefa quase penosa. Como deixar as crianças, os adultos e os velhos sem seu olhar protetor? Mas houve um motivo muito forte para uma dessas vezes. Marina teria seu primeiro filho, Orlando Villas Bôas Filho, carinhosamente chamado de Villinha. "Precisei de cesariana", explica. Caso contrário, o parto seria de cócoras, igual a todas as índias. Depois de seis meses em São Paulo, ela retorna e apresenta o filho ao Xingu. Como os demais indiozinhos, Villinha também foi zelado pelas outras mães. Mas a tranqüilidade de Marina ia-se embora à noite quando o risco do garoto ser picado por algum bicho duplicava. A preocupação lhe tirava o sono. "Dormia pouco como toda mãe do Xingu ou da cidade".
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O MÉDICO SANITARISTA Noel Nutels (centro) apoiou os irmãos Villas Bôas e foi um dos primeiros a dar assistência médica no parque. Ele podia contar com a dedicação da enfermeira Marina (à dir.) |
A saída de vez da reserva indígena foi em 1974, quando o menino precisou de escola. Um ano depois, ela teve o segundo filho, Noel, nome que homenageia o amigo e médico Noel Nutels, um dos primeiros a integrar a equipe dos irmãos Villas Bôas. É certo que, de tempos em tempos, Marina e Orlando voltavam ao Xingu levando as crianças. Elas passavam férias nadando nos rios, escalando árvores e, acima de tudo, convivendo com os xinguanos.
A readaptação à sociedade branca teve momentos penosos. A família precisou se desfazer do apartamento de São Paulo para comprar uma casa. Motivo: Orlando Filho entrava em pânico no elevador. Afora as datas e convites esquecidos - índio não faz a contagem do tempo como o branco - foi necessário se readequar a uma sociedade à qual já não mais pertenciam. "Por que as crianças estão sempre peladas?" ou "por que você não se arruma para sair?", foram perguntas que cansou de ouvir. O difícil era tentar explicar que tudo isso são apenas artifícios para viver. Em casa, Marina se encarregou de zelar pela saúde do cunhado Claudio, fulminada pela selva, que o levou à morte seis anos atrás. Mais do que cuidados médicos, ela tornou-se sua única interlocutora. Claudio não conseguiu retornar à civilização branca e preferiu os livros de filosofia à readaptação. link
Oca democrática
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FERIMENTOS são comuns no dia a dia da reserva. Acima, Marina faz curativo no braço de um índio txicão, uma das últimas tribos a serem apaziguadas |
Da capital paulista, Marina continuou seu trabalho de enfermeira ligado à Funai - Fundação Nacional do Índio. Buscava xinguanos doentes no aeroporto, atendia-os e, não raro, hospedava-os em casa até ficarem recuperados. Por sinal, a residência dos Villas Bôas é uma verdadeira oca democrática. Ali, são recebidos pesquisadores, historiadores e até excursões de escolas, numa mistura tamanha que mais se assemelha a uma enorme pajelança. A casa deles no Xingu já era assim. E depois que os hóspedes iam embora, o casal lavava as roupas de cama na beira do rio. "Ai, era tão romântico", relembra. Quando tem saudade, ela recorre à música de Chopin para relembrar tudo o que viveu, inclusive o primeiro beijo trocado com Orlando à beira do Rio Totuari.
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CHAPA PINTADA e decorada para fazer beijus (bolinhos de massa de tapioca) |
No mês passado Marina andava às voltas com um documentário que está sendo produzido sobre os irmãos Villas Bôas. Recebeu o amigo Pirakuman, da etnia yawalapiti, do Alto Xingu, que traduziu os depoimentos de seus familiares para o português. A sua estadia em São Paulo tinha, ainda, outro caráter: Pira, como é mais conhecido, é quem organiza o Quarup de Orlando, a cerimônia dos povos do Xingu para homenagear seus mortos, em geral caciques, pajés, grandes guerreiros ou pessoas que marcaram sua existência junto à comunidade.
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PANELA em formato de animal serve para o cozimento de pequenas porções, como mingau ou pequi. Ao mesmo tempo, tornam-se peças decorativas para a tribo wauaurá, no Alto Xingu |
Ao lado de Pirakuman, a enfermeira toma as providências para a cerimônia religiosa que vai mobilizar todo o parque e deve contar com pelo menos mil convidados. O Quarup será realizado no meio do ano, e marcará o regresso de Marina e dos filhos ao Xingu. Segundo a crença, Orlando chegará ao Ivát-Ivát, o céu do céu, onde não mora ninguém, apenas a sabedoria. "É para lá que foi Iãcatu, sua alma boa e eterna", diz a mãe branca do Xingu. link |
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